Uma noite do tamanho de um país

Na noite de 10 de Junho de 1995, Alcindo Monteiro era assassinado em Lisboa por neo-nazis, acordando o país para a questão da extrema-direita e do racismo impregnados no(s) Dia(s) de Portugal. Ponto de partida para um filme documental da produtora Maus da Fita e motivo para falarmos com o seu realizador Miguel Dores.


O documentário propõe-se descentrar o «caso Alcindo» da violência neo-nazi para dar visibilidade ao entorno de Alcindo. Como se sentiram ao longo dos anos estas personagens, vítimas secundárias ou omitidas na narrativa dos acontecimentos?

O documentário é sobre o processo social do qual decorre o caso Alcindo Monteiro – como uma noite longa, mas também como um despertar. Trabalhar sobre este momento traumático para história da cidade implica focar vítimas e agressores, mas implica também falar da estrutura social. Num breve retrato: um país com o mais longo império colonial, saído há duas décadas de uma guerra de grandes proporções pela manutenção das suas colónias e com acentuados fluxos migratórios vindos dessas ex-colónias, num momento marcado pela assinatura dos acordos de Schengen e por uma série de políticas nacionais de criminalização das migrações, vê, num dia de revisitação solar do seu passado colonial, um linchamento racial de largas proporções ser motivado pelas comemorações da efeméride. De todas as dimensões importantes deste tema, fazer um close up nos neo-nazis, subjetivá-los, é talvez a dimensão menos importante. Isso seria, a nosso ver, cair na esparrela dos racistas à paisana como Mário Soares e Cavaco Silva, que, na altura, trabalharam este gesto genocida como uma coisa «importada», «psicótica», «sem representatividade em Portugal». O racismo não é uma psicopatologia individual, nem uma importação, e tem representatividade em Portugal, sim. Como General D dizia na altura: «os neo-nazis representam a ponta de um iceberg do que é o racismo em Portugal». O documentário foca-se no iceberg. Como tal, as suas interlocuções mais relevantes são com vítimas secundárias e indiretas desse dia, pessoas cuja trajetória é intercetada pelo caso Alcindo Monteiro, seja porque foram à manifestação anti-racista do dia 16 de Junho de 1995, seja por serem amigas ou familiares de Alcindo, seja por terem estado no Bairro Alto nesse dia, etc. Estas pessoas não se sentem necessariamente omitidas da narrativa dos acontecimentos, embora não afaste a possibilidade de que o sintam, mas não acho que procurem ativamente notoriedade. O que sentem sobretudo é trauma, luto e vontade de justiça. Num presente marcado pela higienização completa de projetos fascizantes, por assassínios como o de Giovanni e de Bruno Candé, ou pela retomada de protagonismo de agressores dessa noite, como Mário Machado, João Martins ou Nuno Cláudio Cerejeira, é difícil que se sintam serenos e historicamente reparados.

Colonialismo e «brandos costumes» têm sido um terreno animado de discussão pública. Mas… porque continua a ser tão difícil de digerir?

A criatura ideológica do salazarismo não nasce só em 1933 e, sem dúvida, não termina em 1974 – é a grande tradição de pensamento do Portugal do séc. XX. E, como é óbvio, desmantelar o seu complexo teórico é o grande desafio pós-revolucionário deste país. No que concerne ao projeto imperial salazarista, o mito dos brandos costumes e o luso-tropicalismo (resgatado a Gilberto Freyre) são os seus grandes alicerces. Não apenas como sistemas de significação do seu passado colonial, mas como um arranjo ideológico que legitima, interna e internacionalmente, as continuidades coloniais tardias de Portugal. Salazar chega a defender, durante as guerras de libertação, que Portugal inventou o anti-racismo, e que os verdadeiros racistas eram os movimentos de libertação africanos, visto que não aceitavam o projeto multiculturalista e ecuménico de Portugal. O luso-tropicalismo tornou-se também, e por consequência, um alicerce da auto-amnistia em que Portugal se colocou no período pós-colonial, que se espraia em toda a sua relação com o passado: Dia de Portugal, CPLP, Lusofonia, Expo 98, etc. Há até um arquivo da RTP fantástico, de 1987, em que se mostra uma visita pessoal que Mário Soares fez a Gilberto Freyre em Pernambuco, para lhe comunicar que também os democratas portugueses reconheciam o legado universal do luso-tropicalismo e respeitavam a sua obra. Enfim, faço esta introdução à questão para ilustrar que, apesar de o mito dos brandos costumes e da vocação ecuménica de Portugal poderem parecer ideias fofas, inofensivas, é justamente na sua elasticidade que reside a sua capacidade de regeneração. É por isso que julgo que ainda vivemos num estado permanente de negação e de obsessão pela absolvição histórica – porque foi esse o principal projeto de continuidade imperial portuguesa do séc. XX. Como temos visto com as furiosas cambalhotas que a institucionalidade portuguesa faz cada vez que o Mamadou ou a Joacine assumem qualquer espécie de posicionamento crítico, por mais tático e suave que seja, trata-se não apenas de uma cortina de fumo, mas de uma muralha de aço.

O que mudou hoje na reação da juventude negra em Portugal e no seu posicionamento público?

Acho que mudou muita coisa na reação ao racismo em Portugal, mas é um diagnóstico difícil de fazer. Cada geração tem os seus desafios. Na altura do caso Alcindo, falava-se muito nas novas respostas das segundas gerações de imigrantes africanos – aqueles jovens pioneiros da cena do rap – e de como estes pariram uma vaga de insurreição perante o racismo e a reguetização. Talvez o tenham feito de forma diferente das primeiras gerações, que talvez estivessem ainda agarradas a uma postura mais cordata e mais influenciada pela ausência de direitos e pela irregularidade forçada. Hoje, os problemas são outros: temos comunidades negras e afro-descendentes mais sedimentadas em Portugal, com capacidade para construir uma voz pública mais articulada, mas os seus adversários políticos diretos também. A heroica batalha judicial dos jovens da Cova da Moura no caso da esquadra de Alfragide, ou as manifestações dos casos do Bairro do Jamaica, do Giovanni e do Bruno Candé são exemplos disso. Há uma maior articulação e ação reivindicativa, bem como uma clivagem política bastante mais vincada entre anti-racismo e negacionismo. Casos como o do Angoi, do Toni, do Musso, do Kuku, do PTB ou do Snake não aconteceriam hoje sem uma mobilização política muito mais acentuada do que tiveram na altura. Mas tudo isto é um trabalho que tem muito tempo, de muitos militantes e ativistas. Argumento, através deste filme, que as mobilizações em torno do caso Alcindo Monteiro são talvez o seu grande primeiro marco contemporâneo.

Artigo originalmente publicado em Jornal Mapa (edição #31, Julho|Setembro 2021).

por Filipe Nunes
Cara a cara | 11 Outubro 2021 | Alcindo Monteiro, colonialismo, documentário, Portugal, pos-colonialismo, racismo