Escravatura nos nossos pratos: os trabalhadores imigrantes na agricultura

Uma das anedotas mais recorrentes para caracterizar os nossos tempos é a da criancinha que ignora de onde vem a comida do supermercado. Mas pior mesmo é como a maior parte das pessoas ignora (ou faz por isso) os trabalhadores agrícolas das nossas terras.

A evolução dos campos nunca foi tão rápida e avassaladora como hoje em dia. Em menos de meio século, a ruralidade alterou-se completamente e com ela o trabalho agrícola. O português abandonou a terra, fez-se “doutor” e, quanto muito, volta a ela como “empreendedor”. Os recentes protestos dos imigrantes da agricultura alertaram para o que se dizia ter ficado para trás com o 25 de Abril: a exploração do trabalhador agrícola. Algo que mesmo quem fez a reforma agrária teima em não ver, agora que já não existem “rurais”, com o abandono e a industrialização do campo. Já não existem sindicatos rurais ativos, mas pelas vilas o cante das conversas é mais racista para com a classe de trabalhadores rurais que não fala português. A solidariedade deixou de existir e, nos últimos tempos, apenas a associação Solidariedade Imigrante, a partir de Lisboa, lhe empresta o nome nas suas lutas por “papéis”.

Mas o brado dos imigrantes ecoa forte. O azeite do olival intensivo esventrou de vez os solos do nosso futuro, os frutos vermelhos das estufas plastificam a nossa paisagem e a destruição do território e do nosso horizonte humano é assumida entre dois campos separados: as lutas dos imigrantes e as lutas ambientais contra a imposição da agroindústria devastadora. A urgência de olhar de forma abrangente para essas lutas levou-nos dos olivais de Ferreira do Alentejo e Beja às estufas de Odemira e aos pomares do Algarve.

Viver fora da época

Já lá vai o tempo em que os trabalhos do campo ritmavam a vida das regiões. A sazonalidade na agricultura é uma realidade em mutação. Mantém-se como equivalente ao período, o mais longo possível, durante o qual um empregador visa lucrar com uma força de trabalho dócil, maleável e barata1. Na linha dos ratinhos, caramelos ou gaibéus das Beiras, e dos algarvios que se juntavam aos ranchos de ganhões nos campos alentejanos e ribatejanos, perdura a pior das memórias desses tempos: receber salários de miséria e pernoitar sob telheiros. A dificuldade na mecanização da apanha da azeitona ou da vinha prolonga a sazonalidade, ao passo que culturas anuais de estufa requerem a mecanização do gesto humano, na impossibilidade de maquinizar a recolha. 

Porém, a sazonalidade desapareceu dos nossos pratos. Não saber comer o que é da época significou romper com práticas culturais milenares e com os ciclos vegetais tradicionais de cada território: a conquista do consumo em massa, a vitória da “abundância fora das épocas”. O seu preço foi a destruição da agricultura familiar, da sabedoria camponesa, dos pequenos produtores e das zonas agrícolas tradicionais num contexto de concorrência internacional de baixos custos, e uma geografia global dos alimentos determinada pela “mobilidade” da mão de obra barata e pela legislação nas mãos das multinacionais. Quando a sazonalidade desapareceu dos nossos pratos, desapareceu o campesinato, não apenas europeu, mas sobretudo do sul global, provocando as migrações forçadas da mão de obra que a agroindústria precisa. Nada menos do que uma “deportação programada”2.

Numa edição portuguesa do Observatório do Tráfico de Seres Humanos (OTSH), sob o tema do “Tráfico Desumano”, Tom Ellis e James Akpala3 concluem que “as crescentes disparidades de riqueza e os severos controlos sobre a migração são fatores que conduzem, todos eles, a compensações mais avultadas para os autores de crimes de tráfico de pessoas e de tráfico ilícito de migrantes”. O caso de estudo não é Portugal, mas a Nigéria, um dos países mais pobres do mundo. Porém, o que se observa é aplicável na íntegra ao sul da Europa: “a migração para fins de trabalho forçado cresceu como consequência dos efeitos extremamente variados da ‘globalização’, a qual, por seu turno, levou muitas economias nacionais a adaptarem-se à economia de mercado, às privatizações, à liberalização comercial (…). Os efeitos mais óbvios dessa adaptação têm sido a reduzida probabilidade de emprego no sector público, o desaparecimento de indústrias nacionais e a perda de postos de trabalho e subsídios por via de programas de ajustamento estrutural.” A agricultura estrutura-se partindo de fatores como a “pressão constante sobre os proprietários e os empregadores para reduzirem custos e aumentarem a produtividade, o crescimento das cadeias de subcontratação, (…) [o que faz com que os empregadores procurem] trabalhadores temporários que estejam disponíveis de imediato e possam ser despedidos logo que deixem de ser necessários”.

O exemplo clássico e terrível deste novo mundo agrícola está aqui ao lado em Almeria: uma imensidão de estufas à conta dessa moderna escravidão e sob uma tensão social fraturante. Aqui e noutros lugares, nas palavras de Nicolas Duntze, a “sazonalidade tornou-se anual, o culminar do sonho totalitário do produtivismo e dos gigantes da indústria: a submissão das leis naturais às ‘regras’ do mercado.”

Viver pelo mínimo

Em Ferreira do Alentejo, o olival industrial iniciado há mais de uma década, e as vinhas de Vala da Rosa, trouxeram as primeiras levas de imigrantes, na sua maioria romenas. Falámos sobre isso, numa noite de Dezembro passado, com o Luís e o André, dois jovens naturais do concelho ligados ao trabalho agrícola sazonal. ”Nos primeiros tempos a contratação era feita diretamente nos olivais, mas depois de dois ou três anos de produção tudo passa para as empresas de prestação de serviços ou de trabalho temporário”. A escala é a da empresa de aldeia, à qual se perde o rasto quando perscrutamos as suas ramificações internacionais. Agora a mão de obra é ”do Nepal e de outros países asiáticos, mais baratos que os romenos. E depois o que mudou foi que agora há empresas daqui e há empresas romenas que contratam diretamente na Roménia”.

O salário mínimo é à tabela: “20/25€ por dia, mais ter de pagar tanto por casa e alimentação”. A diária é menor para as mulheres. E “depois essas empresas também fogem, não declaram todos os dias do mês, descontam sempre o mínimo para a segurança social. Horas extras, umas vão à folha, outras não“. Os empresários agrícolas lavam as mãos de qualquer responsabilidade para com os trabalhadores, recorrendo a empresas que ficam com pelo menos metade do valor que é pago por trabalhador. São muitos os relatos das condições degradantes de vida destes jornaleiros. Luís fala do “casão com 200 pessoas em que o que os divide é uma manta. Cozinham todos lá dentro”. Tal como o transporte dos trabalhadores, o aluguer de casas é um negócio. A presença mais recente de contentores no campo surge das inspeções da Autoridade para as Condições do Trabalho, e são poucos os que não estejam sobrelotados e com as devidas condições de habitabilidade.

ilustração de Laura Marques ilustração de Laura Marques

Já no Monte do Paço, que em Ferreira do Alentejo resiste com a sua produção biológica, encontrámos Clément Fraisse, que veio para a apanha da azeitona galega. Chegou a Portugal em 2015 pela Confédération Paysanne (CP), grupo francês que faz parte da organização internacional de camponeses Via Campesina, no âmbito do grupo de trabalho “Trabalhadores Agrícolas e Migrações”. O diagnóstico feito resumia como a competitividade produtivista assentou na desregulamentação do trabalho levada para lá dos “limites socialmente aceites: exploração, maus-tratos, não remuneração, habitações precárias, servidão por dívida, privação de direitos”. Sinónimo de trabalhadores imigrantes e de agroindústria.

Esta equação, refere-nos Clément, que esteve em Portugal em parceria com a Confederação Nacional da Agricultura (CNA), sediada em Coimbra e ligada ao Partido Comunista Português, “é uma temática difícil de abordar dentro da CNA ou mesmo da CP em França, com reações às vezes de incompreensão por parte dos membros das organizações de agricultores. Não é evidente e simples fazer entender que é a mesma luta. Em termos ideológicos, os pequenos agricultores ou trabalhadores agrícolas lutam por melhores condições de trabalho e vida, mas isso dentro da CNA ou na CP em termos práticos é complicado.”

Essa dificuldade encontra em Portugal raízes no fosso, aprofundado durante o processo da reforma agrária, entre pequenos e médios agricultores e trabalhadores agrícolas.  Clément fala-nos da dificuldade declarada pelo SINTAB, o sindicato agrícola afeto à CGTP, em falar com os imigrantes que viu em São Teotónio, a povoação de Odemira onde se instalaram os gigantes das estufas multinacionais e onde mais de metade da sua população é imigrante. Ante esse distanciamento anota que “talvez seja mais interessante ver na zona oeste (Estremadura e Ribatejo) esse encontro, onde temos muitos pequenos agricultores e a mão de obra sazonal. Aí tens agricultores que veem os vizinhos e empregar 800 búlgaros e tailandeses, veem isso e não percebem esse tipo de relação”.

A dupla punição: pelo patrão e pelas fronteiras

Numa Europa fortaleza, a agricultura tornou-se o sector de mais fácil acesso para os imigrantes. As formas de trabalho agrícola operam num quadro legal maleável: contratos sazonais por acordos bilaterais entre países e, sobretudo, por empresas de trabalho temporário (ETTs) internacionais que se desdobram e/ou se juntam a uma multiplicidade de ETTs e de empresas de prestação de serviços nacionais. A resposta à exigência da indústria baseia-se no desespero económico dos migrantes que trabalham hipotecados por mediadores internacionais e nacionais, procurando através do Estado obter a legalização da sua situação na Europa.

Um quadro legal que se encontra de mãos dadas com o trabalho ilegal não declarado e com esquemas mafiosos. Nos casos de tráfico humano e de trabalho forçado, a servidão por dívida imposta pelos mediadores é o mecanismo por excelência usado para submeter os trabalhadores. A vigilância mafiosa e a pressão dos capatazes são, nos casos mais extremos, acompanhadas de violência física e de ameaças às famílias. A retenção dos documentos e o ónus da expulsão culminam a estratégia de exploração dos imigrantes. De acordo com dados do Observatório do Tráfico de Seres Humanos, em 2015 foram sinalizadas 135 vítimas em Portugal (sobretudo romenos) para a exploração laboral na agricultura.

Mas a dimensão camuflada desta realidade é enorme. Quanto maior é o número dos envolvidos, mais cresce. O caso mais conhecido é o dos tailandeses trazidos para as estufas de Odemira através de empresas aqui criadas (como a Índico) pela TTM Manpower Inc, uma empresa de recrutamento internacional, sediada na Tailândia, fundada por empresários israelitas (país onde atua de modo a não empregar palestinianos). Quando em 2009 o embaixador da Tailândia visitava as estufas para serenar a opinião pública, gabava-se de como “em Israel, já lá estão mais de 35 mil. Há poucos trabalhadores tão disciplinados como os tailandeses”4.

A punição do salário

Yavor Hadzhiev, com 26 anos de idade, chegou a Portugal com 12 anos na vaga de imigração de leste, e aqui formou-se em sociologia. Inscrito num mestrado de estudos sobre a Europa, participava num curso sobre “formas modernas de escravatura” quando falámos em Tavira. Desde 2012 que trabalha nos pomares de laranja.

Os seus companheiros de trabalho eram de início búlgaros e alguns romenos, mas neste último ano são mais do Bangladesh e do Nepal. Também aqui há habitualmente uma ideia de que os últimos são mais dóceis que os primeiros. No fim de contas, o português deprecia os primeiros como ciganos. Para Yavor “não é bom generalizar, mas penso que os búlgaros, os romenos e os ucranianos, quando começaram a chegar, também tinham um pouco de espírito servil, mas conforme se foram estabelecendo, começaram a contestar mais, a exigir mais respeito. Depois, conhecendo os nepaleses e os bangladeshianos, vejo que o espírito deles não é mais submisso. Nalgumas ocasiões até parece que têm mais coragem. No entanto, estão mais dependentes dos patrões no processo de legalização. Não podem simplesmente ir-se embora porque não podem ter interrupções nos descontos senão o SEF pode criar problemas”. Há sempre a diferença de estes terem “passado por muita coisa que um búlgaro e um romeno não passou, para esses é apanhar um autocarro na Roménia, e sair com alguém à espera. O pessoal do Bangladesh e do Nepal passa pelas mais difíceis das provações”. O Mediterrâneo de naufrágios junto a Tavira recorda-nos isso.

A história que Yavor nos conta confere à agroindústria, definitivamente, o papel de um laboratório de liberalização do trabalho. O trabalho sazonal funciona como argumento para inventar novos tipos de contratos para tudo aquilo que vá no sentido da flexibilização e da precarização. Nos laranjais, são as empresas de prestação de serviços que operam o ano inteiro. “Fala-se muito do precário, mas as pessoas não têm ideia do que é o extremo do precário e a apanha da laranja, pelo que conheci durante 4 anos. Se não é o extremo da precariedade está muito próximo. Nós não sabemos o que é subsídio de férias, de natal, feriados pagos a dobrar, horas extras como a lei diz, até uma coisa muito básica como ter os descontos todos da segurança social. Estarmos sujeitos à arbitrariedade do patrão e não dizer nada. O patrão ganha ao quilo e nós ganhamos ao palote, uma caixa de plástico grande que leva em média 200 kg de laranja. Dos 10 euros que ganha por palote, dá-nos 5,5 no verão, 4,5 ou 5 no inverno. Temos dias em que ganhamos 15 euros ou 10 porque o campo é mau. E a justificação que nos dão, a areia que nos atiram para os olhos, é que isto é à empreitada”.

Yavor conclui: “o que acho extraordinário é a ideia que dar trabalho é uma coisa extraordinária e que tudo o mais é estarmos a ser gananciosos…”

Pôr as mãos na terra

Oposição à agroindústria em Odemira (e noutros lugares)

Em Odemira, portugueses e estrangeiros reunidos no “grupo de reflexão de iniciativas neorrurais”5 descrevem a narrativa que não querem contar às gerações futuras: “A expansão territorial da agroindústria na charneca litoral (intensificação das monoculturas e da pecuária, do uso de agroquímicos e de organismos geneticamente modificados) e a contaminação do solo e de aquíferos”. Uma visão negativa do futuro consolidando a dimensão social presente na “importação de mão de obra barata do estrangeiro, sujeita a níveis de exploração que ofendem a dignidade da pessoa e que, pela sua dimensão, têm impactes significativos nas comunidades locais – desestabilizando a estrutura social, com uma crescente fatia da população excluída do sentimento de pertença e da participação na vida da sociedade“. Em suma, uma oposição ao “conceito de desenvolvimento, assente na perspetiva estreita do progresso, entendido como o crescimento dos indicadores económicos, [que] sacrificou a identidade e a vivência local em nome do valor financeiro e de uma cultura de consumo ostensivo”.

É preconizado, ao invés, um “território inclusivo” e um desenvolvimento económico que, “assente em valores e princípios éticos, assume-se como marca da identidade presente em diversos sectores de atividade, do turismo ecológico e de desenvolvimento pessoal, a uma fileira agrícola que promove o emprego local, contribui para a qualificação das pessoas e para a regeneração dos valores e recursos naturais”. Este “empreendedorismo social e ecológico” resulta essencialmente na diminuição da escala capitalista das relações e dos modos de produção. Não representa uma cultura autogestionária mas porta valores de mudança à discussão. Não anda longe da CNA que, na resposta à “crise climática”, “aposta na agricultura familiar e na pequena agricultura, em modelos de produção mais sustentáveis e na relocalização do consumo alimentar”6.

Odemira será um terreno fértil no futuro. Face à agroindústria de estufas no litoral, há uma massa crítica que procura uma resposta para a satisfação das várias necessidades humanas e não apenas das mais básicas, que provém, sobretudo, do norte da Europa com recursos económicos e culturais e com o propósito de criar “comunidades alternativas”. Uma vantagem que enfrenta uma contradição a ser encarada: perante uma massa de imigrantes explorados a lutar pela vida, o neorrural surge no seio de um movimento de “lifestyle migrations”. O “estilo de vida” holístico, baseado na permacultura, parece manter-se indissociável do assistencialismo a norte e, não menos, da equação que leva à luta pela sobrevivência dos imigrantes a sul. Não ter em conta essa dicotomia é o primeiro passo em falso numa discussão séria sobre as alternativas. Esta só terá lugar desmascarando o capitalismo na raiz desigual dos fluxos migratórios.

Outro contraste foi observado pela francesa Zoé Chalaux quando percorreu Odemira pela Confédération Paysanne. Não se cruzou com o “empreendedorismo social e ecológico”, mas com o empreendedorismo das estufas organizado na Associação de Horticultores do Sudoeste Alentejano (AHSA), que contrastava com os agricultores e criadores de gado, envelhecidos e desanimados: ”Tá tudo errado! Esta política é completamente errada! Diz-me lá que segurança tem um agricultor que trabalha uma terra que não é dele? O que é se irá passar amanhã quando o proprietário lhe peça para pagar mais ou para se ir embora?”. Questionados porque não se organizam em cooperativas ou organizações de produtores, a resposta é imediata: por serem poucos e por não haver já força para o quer que seja7.

A questão da Terra 

Estes contrastes, seja nos perfis migratórios que podemos encontrar no campo, seja na  natureza de quem trabalha e de quem possui a terra, conduzem à discussão sobre a necessidade de uma nova organização do trabalho e da produção. E esta não pode ser cingida à questão camponesa ou sindical, mas à questão ambiental e social de fundo que representa, o que extravasa a própria esfera da ruralidade. Nesse sentido, podemos voltar a falar de uma “Reforma Agrária” não entendida como um dogma saudosista ou amedrontador. Hoje, perante os novos trabalhadores rurais imigrantes e a urgência de defender o território da sua extinção ambiental e social, impõem-se dois aspectos ao falar da questão da terra.

Um primeiro será retomar a bandeira a que se resumiu no final a reforma agrária da nossa história recente: a luta por melhores salários e pela dignidade do trabalhador agrícola. Porque se nos anos 70 o assalariado rural sentia-se como um proletário e não como um camponês, hoje essa sua condição industrial é definitiva. Ainda para mais quando a busca de uma vida melhor não o liga familiarmente a qualquer parcela de terra, à qual chega para trabalhar anónima e fugazmente. Depois, a sua condição imigrante não encontra eco no perfil proletário predefinido. A sua luta parece partir da estaca zero. Para eles os sindicatos rurais não existem e os poderes – a sul são em boa parte comunistas com o credo no campesinato – ignoram ou segregam-nos. Um poder que, ao invés, acarinha os patrões que não hesitam em declarar, como nas estufas da Longueira e Almograve em Odemira, que “não gosto quando começam a fazer muitas exigências salariais e de transporte. Quando acham que o salário é pouco…”8. O retomar desta bandeira requer novas formas de organização do trabalho, através de moldes cooperativos e de autogestão direta, autónoma e coletiva, combatendo a perniciosa ação da intermediação de empresas de prestação de serviços e empresas de trabalho temporário, no acesso à contratação de trabalhos sazonais para evitar discriminações por origem ou género.

Essas opções dificilmente podem surgir à margem de um segundo e definitivo aspecto, que implica a vontade de ultrapassar a anterior e limitada esfera: mais do que reformar há que revolucionar toda a forma de produção e consumo. Convergir equitativamente o trabalhador agrícola sazonal numa corrente autogestionária que privilegie cooperativas de pequenos e médios produtores ou outras formas solidárias, requer a articulação com o desenvolvimento de um sentido distinto de consumo, próxima da terra e de quem nela trabalha.

 

Plástico invade os últimos redutos do litoral selvagem

A nova batalha ambiental no Algarve e na costa alentejana são as estufas. O “Manifesto por uma posição governamental urgente face às dificuldades de compatibilização entre agricultura intensiva e valorização dos recursos endógenos da costa sudoeste”9, apresentado em outubro último por 23 entidades, entre grupos ecologistas, autarquias e regiões de turismo, espelha a indignação do território do Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina. Na defesa do turismo de natureza e da valorização económica dos recursos endógenos, o Manifesto observa que já “depois de conhecerem o conceito de PIN (Projecto de Interessa Nacional), que não auscultou o verdadeiro interesse da região e criou excepções incompreensíveis à legislação em vigor”, surge agora uma nova realidade agrícola “traduzida em centenas de hectares de estufas e plástico sem o devido enquadramento paisagístico e ambiental [que] é encarada como uma nova ‘excepção à regra’, tornando o esforço conjunto de conservação dos valores locais questionável e sem um real sentido de futuro.”

Autarcas, ambientalistas e agentes turísticos juntaram-se para desafiar o sector agroindustrial, denunciando o dumping social e ambiental das estufas. Não nos enganemos, é uma luta interna do capitalismo, que foi eficaz na contestação à exploração de hidrocarbonetos no Algarve, mas que não questiona a lógica mercantil que apenas defende a “natureza” enquanto meio de produção, para salvaguardar o retorno de capital investido.

O alvo visado é a falta de fiscalização sobre a agricultura intensiva em plena área protegida, agravada pela perspetiva de duplicação da sua área nos próximos 2 anos. Indústria à qual, em 2011, o Plano de Ordenamento do Parque (POPNSACV) escancarou as portas por via do Programa Sectorial Agrícola do Perímetro de Rega do Mira da Associação de Beneficiários do Mira. Desde então diversas violações e destruições de habitats ocorrem sem qualquer atuação do ICNF, consolidando o tom próprio do Plano: mão férrea com os fracos (os pescadores, mariscadores, etc.), mas complacente com os interesses dos grandes investidores.

O Manifesto denuncia o impacte paisagístico dos campos de plástico, os impactes na água, solos e ecossistema. Mas igualmente os impactes sociais pela falta de enquadramento social dos milhares de trabalhadores imigrantes. Também no Algarve, outras iniciativas têm surgido contra a proliferação das estufas, incluindo no Parque Natural da Ria Formosa. 


Publicado originalmente no Jornal Mapa nº 15. Encontrar o Mapa à venda aqui. Assinar o Mapa aqui. 

  • 1. Nicolas Duntz “De la saison à l’univers concentrationnaire”, Plein droit 2008/3 (n° 78), p. 6-8. DOI 10.3917/pld.078.0006
  • 2. Idem “Agriculture industrielle, guerre sociale et esclavagisme du travail en Europe” http://bit.ly/2hc3z2S
  • 3. Ellis, Tom e Akpala, James (2010) “Compreender a relação entre o tráfico de pessoas, o tráfico ilícito de migrantes e a criminalidade organizada: O caso da Nigéria”in Tráfico Desumano Cadernos de Administração Interna nº1, Colecção de Direitos Humanos e Cidadania.
  • 4. http://bit.ly/2hmatHz
  • 5. Revisão do PDM de Odemira. Relatório de Participação Preventiva do Grupo de Reflexão de Iniciativas Neorrurais do Concelho de Odemira”, Janeiro 2016.
  • 6. http://bit.ly/2iqFKVT
  • 7. 10.08.2004 “Odemira: fracture entre deux agricultures” in Vue d’Europe et d’ailleurs, Le site des volontaires http://bit.ly/2iqEzFW
  • 8. http://bit.ly/2iqyY2x
  • 9. http://bit.ly/2id3xJK

por Filipe Nunes
A ler | 31 Janeiro 2017 | agricultura, imigrantes, trabalhadores