Navegando nas artes audiovisuais afro-amazônicas – uma conversa com Francisco Ricardo

Francisco Ricardo vive em Manaus desde sua infância e desde então vem desenvolvendo um olhar sensível e crítico para a arte. Em conversa com o artista conheci um pouco da sua trajetória no cinema como diretor de arte que culmina recentemente com o Kikito do Festival de Gramado de 2020 com o filme O barco e o rio (2019). A arte de Francisco conflui dentro de um cenário pulsante de artistas não brancos do norte brasileiro que questionam nossas relações étnico-raciais contemporâneas.

Arquivo pessoal do entrevistado Arquivo pessoal do entrevistado

Como se deu sua relação com cinema na infância e como isso desemboca no seu trabalho com arte atualmente?

Minha relação com cinema na infância era com televisão, com a sessão da tarde. As vezes ficava até tarde assistindo aqueles filmes do corujão também. Manaus era uma cidade com poucos cinemas e eu não tinha muito dinheiro pra ir a eles. Comecei a frequentá-los mais na adolescência lá pelos quatorze anos. Nessa época desenhava as coisas que via na tv. Sempre gostei muito de desenhar. Só quando fiquei mais velho que tive a oportunidade de escolher os filmes que queria assistir. A partir daí fui alugando filmes e comecei a assistir bastante cinema. Toda semana eu assistia uns cinco filmes porque gostava muito da relação das histórias de sair de um espaço que estou vivendo e poder viver outra realidade. Isso me interessava muito, assim como a arte me fazia viajar quando desenhava o que assistia. O cinema me ajudava muito nesse sentido da imaginação. 

O cinema foi ficando cada vez mais presente na minha vida e quando fiz a graduação em artes visuais na UFMA, tentei fazer algumas coisas lá relacionadas a cinema. Infelizmente, o curso de artes não tinha uma relação tão próxima com a sétima arte. Eram mais os cursos de comunicação que tinham cineclubes que passavam filmes e tinham discussões depois. Assim acabei me aproximando dos cursos de comunicação para ter mais contato com o universo do cinema. 

Por isso quando me formei achei que poderia trabalhar com alguma coisa no audiovisual. Então fui trabalhar dentro da produção, fiz alguns cursos, mas o que fez diferença mesmo foram uns amigos que já trabalhavam na produção, direção etc. Eles foram me apresentando para algumas pessoas e fui entrando nesse mundo. 

Queria parabeniza-lo pelo kikito no Festival de Gramado com O barco e o rio (2019) e aproveitar pra te perguntar como tem sido sua trajetória como diretor de arte e figurinista?

Quando comecei a trabalhar com cinema eu era professor concursado da Secretaria Municipal de Educação de Manaus em artes e estava muito doente. Cabeça e corpo mal. Isso porque estava só dois anos no sistema. Estava muito frustrado porque queria fazer alguma coisa voltada pra cinema porque era uma das coisas que eu gostava de fazer. Aí entrei num clipe de um amigo meu e vi que tinham várias coisas que eu poderia contribuir na produção, mas percebi que a área que melhor poderia somar era na arte. Assim tentei ver o que eu poderia trabalhar num contexto de uma produção muito sem dinheiro. Então sem ter capacidade de construir nada em questão de ambiente, pensei em trabalhar a arte especificamente voltada pro figurino. 

Acho importante pontuar esse contexto porque pra mim só começou a existir a realidade de ser pago, ao ponto que consiga viver de arte, no filme Barco e o rio (2019). Então faz pouquíssimo tempo que pude ser pago pelo meu trabalho. Fiz muito trabalho de graça e eu acho isso complicado de reproduzir. Entendo que o cinema negro não tenha a grana do cinema branco, mas acho importante que a gente entenda que nós precisamos ser pagos também. Principalmente quando trabalho para pessoas brancas, porque tem uma carga de trabalho e relações muito mais pesadas. Então fazer isso sem ser pago não é fácil mesmo.

Arte de O barco e o rio Arte de O barco e o rio

Diferente do cinema branco, a gente trabalha muito com a questão da realidade, da vivência que não necessariamente são lugares burgueses. Já tive oportunidade de trabalhar pra alguns diretores e me incomodava muito porque era uma relação muito distante da realidade de qualquer pessoa, era quase um musical da Broadway, sabe? O cara botava uns figurinos estranho nuns cenários superexagerados. Sei que isso tem lugar e acho sensacional, mas não me sinto confortável. Como se tivesse fakeando uma realidade, não falando de mim. Vindo de um reflexo de uma coisa que vem de fora e acho estranho. Essa foi umas das vezes que tive um baque mais evidente e percebi que o sistema do cinema era bem racista e que a partir daí eu queria fazer um cinema diferente. 

Vi que você participou do Laboratório de narrativas negras do Centro Afrocarioca Zózimo Bulbul, como funciona a produção audiovisual para pessoas negras em Manaus?

Então, a gente percebe que a produção audiovisual aqui é quase toda branca. Tem poucos cursos de formação acessíveis para pessoas não brancas porque são cursos muito caros no centro da cidade. As pessoas da periferia dificilmente têm acesso, mas existem projeto muitos bons como o Cine Bodó que leva oficinas de cinema para crianças das periferias de Manaus. Isso faz uma mudança de interesse muito grande.

Dentro das produções as pessoas brancas basicamente não trabalham em determinados setores como o maquinário e elétrica. Na direção de arte, por exemplo, eu conheço duas pessoas não brancas que trabalham na área. É assustador perceber que as coisas funcionam dessa forma. 

Existe um cinema de resistência que está começando a se construir aqui em Manaus feito por pessoas pretas. A Keila Serruya faz um trabalho sensacional, ela tem um trabalho com artes visuais e com direção que é muito bom. Eu basicamente tenho trabalhado com ela nessas produções de cinema, clipe e artes visuais. 

Sinto que estamos começando a trabalhar mais o cinema preto aqui em Manaus e no norte. Pelas experiências que tenho tido com esse cinema as coisas tem sido muito melhores porque como disse ele é menos hierarquizado. Então as pessoas não te tratam como se você fosse menor ou pior do que elas. A gente está ali pra construir coletivamente. Eu vejo que no cinema preto eu consigo fazer isso. No cinema branco eu sinto que sou apenas uma ferramenta ali fazendo parte do processo.

O curso do Centro Afrocarioca foi uma experiência muito boa, eles juntam pessoas bem experientes que podem contribuir bastante com a nossa formação. Vi que os alunos eram pessoas que já tinham experiência e foi muito interessante pra gente repensar o modo de fazer cinema. Perceber que conseguimos trabalhar melhor e mais fácil com uma lógica não branca no sentido de pensar na relação coletivamente ao trabalhar sem essa hierarquização que o cinema americano propõe. O curso foi sensacional pra mim porque conheci muita gente do norte que produz cinema que não conhecia. Foi incrível a troca. Tivemos a experiência de produzir um filme, como resultado dessa oficina, que foi totalmente diferente porque era fazer filme com distanciamento social. Então produziu cada um de um lugar diferente do país e acaba que é um tipo de coisa que não estou acostumado. Gosto de construir uma relação teórica ao pensar conceitos, cores e formas que o filme vai ter, mas também gosto muito de ir pra prática e senti falta disso. Mas o nosso cinema é magia negra. Como o cinema preto toca essas pessoas e esse país é uma coisa muito mágica que é difícil de mensurar.

Arquivo pessoal do entrevistadoArquivo pessoal do entrevistado

Em alguns uns festivais falei como pra mim o cinema negro é o real cinema brasileiro. O cinema branco hegemônico é uma reprodução muito mal feita de uma coisa que vem de fora, de histórias que não necessariamente nos representam. Quando a gente encontra o cinema preto encontramos histórias nossas sobre um país de maioria preta, sobre um país que não é rico e não mora em apartamento, de um país que não vemos na televisão. Pra mim a concepção do cinema brasileiro só existe na perspectiva do cinema preto ou do cinema não branco, na verdade. Porque tem uma galera indígena fazendo cinemas maravilhosos que não conhecemos, ou que não assistimos com muita frequência e é um cinema muito forte.

Você acha que existe alguma confluência entre as produções negras e indígenas no norte do Brasil?

Historicamente se estabeleceram algumas comparações da branquitude em relação a população negra e a indígena aqui no norte. O próprio processo histórico fez com que essas populações tivessem juntas com as mesmas pautas, como a gente vê em movimentos históricos como a cabanagem. Apesar de sua origem dentro dos quarteis e da hierarquia militar ele é quase todo formado por pessoas indígenas e pretas pobres. Foi um movimento muito forte aqui no norte. 

Como artista eu percebo uma diferença entre as pautas indígenas e negras porque as relações com a terra e com o urbano são diferentes, mas percebo que temos muito mais em comum e pra trocar do que a branquitude. Aqui falamos muito sobre afro amazônico e afro-indígena. Existem muitas denominações e construções sociais na Amazônia porque é um espaço geográfico muito grande. Cada rio, cada beirada deles possuem suas especificidades. Não tem como dizer que todo mundo é igual. Os artistas trabalham bastante isso apesar de achar que não é dado o devido espaço a eles que fazem o processo. Nas galerias de artes visuais aqui de Manaus quando vão falar sobre um processo de nações indígenas são na grande maioria das vezes pessoas brancas falando. Me parece muito apropriação de uma cultura. Agora que tenho começado a ver uma construção de populações indígenas que se reconhecem, percebem e constroem em cima disso que não é só mais um branco pintando não ser branco. Por exemplo temos a Úyra Sodoma que é uma drag da cidade que trabalha sobre essas questões indígenas em relação da floresta, temos a Keyla Serruya que trabalha com questões de negritude nas periferias da cidade de Manaus. Mas os espaços que a Keyla e Úyra ocupam dificilmente chegam no centro da cidade. Existe uma relação com uma parte específica em torno do teatro amazonas – que é o templo da cultura do estado –, ele é um lugar muito embranquecido, então é muito difícil nós acessarmos esse espaço. Acaba que criamos uma relação de artes da periferia para a periferia sobre a periferia. 

Acho engraçado que quando percebo essa perspectiva de outros estados da percepção da negritude, principalmente do sul e do sudeste, vejo que é bem diferente daquilo que nós entendemos e percebemos aqui. Sinto também uma diferença de tratamento e de entendimento do que é o norte e o nordeste porque sempre tem uma pouca informação. Na verdade, as pessoas tem informação, mas existe falta de acesso porque as pessoas não procuram. Então acabam dizendo que o norte e o nordeste é a mesma coisa.

Quando vejo produções de cinema aqui quase sempre tem essa mentalidade de que essas regiões são iguais, então eles trazem atores do nordeste para fazerem personagens aqui de Manaus e acham que é só botar uma linha na boca dele que ele vai conseguir falar de boas. É uma concepção muito complicada que o sul e sudeste tem sobre o norte do país.

Vejo que até as pessoas dos movimentos negros não olham tanto pro norte como se não quisessem dialogar. Não sei, percebo um certo distanciamento. Não na arte mas em outros lugares. Conheço pessoas que tem que se impor muito mesmo dentro dos espaços negros para serem ouvidos quando falam do norte porque existe uma mítica que no norte não existem pessoas pretas. É uma coisa que lutamos até hoje pra tentar estabelecer que pessoas pretas vivem na Amazônia; que pessoas pretas vieram há muito tempo pra cá também, não só no processo de escravidão, mas outros processos de diáspora que atraíram pessoas pretas de outros lugares. Como os barbadianos, há filhos e netos de barbadianos aqui em Manaus. A galera veio fazer a estrada de ferro Madeira Mamoré em Rondônia e uns ficaram lá outros foram pro interior. 

Nós temos uma relação de fluxos migratórios, tipo os haitianos que chegaram a menos tempo e mudaram uma percepção e expuseram uma realidade racista na cidade.

Arquivo pessoal do entrevistadoArquivo pessoal do entrevistado

Com seu trabalho como um artista que cruza várias linguagens você acha que a arte e a educação podem transformar nossa sociedade nesses tempos difíceis?

A construção da arte na escola, pelo menos como ela está agora, é muito difícil de poder proporcionar essa transformação, mas acho que a arte tem um potencial de mudança na vida das pessoas sim. Isso envolve uma série de relações de se perceber na arte, de se entender como participante do mundo como uma figura sensível. 

Eu como arte educador tinha como ideia principal sensibilizar os alunos. Se a arte educação de fato acontecesse nesse país ia ser sensacional. Não digo que isso é culpa dos arte educadores, porque acho que não é. Digo que a culpa é de um processo político mesmo que a gente não valoriza o arte educador.

Temos uma cultura indígena enorme, uma cultura negra gigantesca que poderia ser usada pra transformar a vida dessas pessoas. Acho que a arte tem muito desse poder, mas também acho que a arte sozinha não vai conseguir fazer isso.

Tem uma coisa do cinema que eu acho que sensacional é que ele é muito bom para fazer que as pessoas se reconheçam e se vejam nos lugares. Se consumíssemos um cinema em que a gente se visse a autoestima da população ia aumentar cem porcento. Porque elas iam entender que elas podem estar na televisão e que elas podem ocupar espaços que são negados a ela. Temos que ter pessoas pretas e não brancas nesse lugar de escolha e poder. Então é importante que tenham diretores de arte preto, um diretor indígena etc. É importante ter várias cabeças não brancas nesse espaço para aí sim podermos nos enxergar de fato. 

por Marco Aurélio Correa
Cara a cara | 4 Maio 2021 | afro-amazônica, arte, audiovisual, cinema, relações étnico-raciais