Meninos negros vão ao cinema: a marginalidade como estética para um outro sonho de liberdade

Onde estão os meninos negros no cinema? Há um tempo atrás essa resposta seria fácil. Estão vendendo coisas na porta do estabelecimento, ou trabalhando dentro dos salões, ou até nas margens da tela. Mas hoje as coisas são diferentes. Estes mesmos meninos que eram vistos apenas como coadjuvantes da produção cinematográfica estão agora protagonizando suas próprias narrativas.

Neste ensaio, a decisão de ter meninos negros como protagonistas é de total afinidade pessoal. Enquanto professor negro atuando na educação infantil, sinto que vivi a experiência da infância de dois modos: na minha própria pele e de meus pares quando menino e agora novamente na minha pele mas também na do outro, como educador.

Ela parte também do crescimento recente de tornar as masculinidades, principalmente as negras, como categoria nas teorias de gênero. Não como uma categoria isolada ou contrária à ascensão dos movimentos feministas negros ou LGBT, mas sim como mais uma particularidade do discurso que põe em causa o patriarcado branco.

A hegemoneidade das masculinidades brancas são uma das principais facetas do conjunto de dominação, controle e repressão do aparato colonial que funda as sociedades ocidentais da contemporaneidade. Simplificando o debate, o homem branco justificado pelo simbiótico poderio religioso, econômico e bélico, cria uma relação de dominação social que o coloca no topo da cadeia civil, subjugando todos os diferentes e as diferenças a seus caprichos.

Ao homem negro, categoria oposta à masculinidade branca, para a garantia da hegemonia da mesma, é imposto um conjunto de símbolos e significados que o desumanizem, representando uma dupla conquista para o homem branco: sendo uma derrubada em sua potência de vida subjugando-o ao trabalho e impossibilitando-o de qualquer relação humana com a contraparte feminina. 

No caso da mulher branca, é uma conquista. Permite a continuidade da suposta imaculação feminina católica e também impede a miscigenação com as diferenças. A castração do homem negro afeta a sua correlata negra ao impedir a fundamentação de famílias negras, núcleo básico de qualquer organização civilizatória de origem africana. Sem contar o caso das afeições homossexuais que são totalmente sublimadas pelo aparato ocidental.

A lógica oposicional do pensamento ocidental opera através de dicotomias que ramificam o pensamento a partir de uma raiz comum em prol da edificação arbórea do conhecimento. Ao invés de enxergar os conhecimentos de forma horizontal, assemelhando-se à ideia rizomática de saberes plurais, diversos, conflitantes e interligados. Por esta oposição, para o homem branco ser o topo da pirâmide social, detentor do poder econômico, político e científico, o homem negro, sua contrapartida direta, tem que ser o completo oposto. Ou seja, se o homem branco é o patriarca, o empresário e o cientista, o homem negro tem que ser o total oposto se delimitando na lógica dominante no lugar do selvagem, do ignorante e do vagabundo.

Os meninos negros encontram-se, assim, na forma embrionária da representação negativa dos homens negros e começam a desenvolver os sintomas dos vícios que inferiorizam socialmente a visão dominante do homem negro. A própria hierarquização das relações de raça e gênero são danosas para todos os indivíduos da sociedade, pois os privilégios assimétricos podem criar recalcamentos que se desdobram em  psicoses.

No geral as coisas não estão meramente no preto e no branco, com as pressões sociais que alavancam o homem negro para uma posição mais humanizada, as tensões entre os conflitos raciais e de gênero estão criando uma ampla gama de sentidos, contradições e complexidades. Porém, ainda assim encontramos discursos redutores como forma de diminuir a humanidade de homens negros. 

Dentro do campo desta pluralidade, vemos nos universo cinematográfico um histórico de representações negras masculinas redutoras, principalmente da infância. No contexto brasileiro, encontramos a total ausência no período silencioso; a processo de estereotipo nas chanchadas; a marginalidade no cinema novo; e a cosmetização na retomada. Como em clássicos exemplos, os meninos marginalizados praticamente sem voz em Rio 40 graus (direção de Nelson Pereira dos Santos, em 1955) ou estilização dos marginais na contemporaneidade de Cidade de Deus (direção de Fernando Meirelles, Kátia Lund, 2002).

Nestes dois filmes, e tendo em conta todas as suas diferenças históricas, estéticas e conceituais, encontramos alguns pontos em comum. Em ambos, a situação de marginalidade dos meninos os fazem apelar para meios ilícitos para prosperar na vida. O trabalho ilegal, apesar de toda a sua problematização, é a única forma para muitos meninos negros se conseguirem manter vivos e ainda ajudarem a restante família. A ilegalidade, muitas vezes imposta como meio para manter a estrutura excludente e de aparato social, é uma forma de transgredir as amarras sociais e garantir o bem estar coletivo de uma comunidade.

Esta situação de trabalho e de marginalidade não se encontra somente no Brasil, como bem sabemos, mas encontramos paralelos cinematográficos pelo decorrer da diáspora transatlântica. Como em Na Cidade Vazia (direção de Maria João Ganga, 2004) em Angola, Moonlight (direção de Barry Jenkins, 2016) Bastien (direção de Welket Bungué, 2018) em Portugal, por exemplo, cada um com as suas especificidades.

A necessidade do trabalho para os meninos negros presentes nos filmes citados anteriormente acaba os limitando a esse mundo da ilegalidade, impedindo que os meninos dediquem o tempo da infância a tarefas normalmente relegadas a adultos. Enquanto algumas outras crianças estão vivendo a sua infância em ambientes mais propícios, como a escola, a brincadeira, os meninos negros citados encontram no trabalho a sua possibilidade de brincar, criar e se divertir. Sabemos também que as meninas negras sofrem bastante com o trabalho forçado, através de elementos diferentes, porém, de suma importância mas que não são o enfoque central desse texto.

Portanto, o que seria do nosso mundo se, ao invés de precisarem gastar a sua criatividade, somente no trabalho os meninos negros em situação marginalizada pudessem estar estudando, brincando e inventando?

A proposta aqui não é tentar encontrar uma panaceia nas infâncias negras marginalizadas, nem romantizar a astúcia dos meninos em superar o sofrimento evidente cosmetizando a precariedade dessas existências, mas sim se aproximar dos sentidos criados por estes meninos. Estes meninos se encontram na base laboral que sustenta a sociedade. A marginalidade pode ser uma forma de exclusão mas também é uma possibilidade de se analisar os problemas do mundo hegemônico com uma certa distância, podendo ter uma perspectiva mais ampla, diferente daqueles que não conseguem perceber o quadro completo por estarem em uma posição central.

Não é preciso dar a voz para estes meninos, mas sim garantirmos os seus direitos de narrar suas próprias histórias, compartilhar as suas próprias experiências e fabularem seus próprios sonhos. O cinema e suas audiovisualidades são um dos artefatos mais potentes para se confabular o imaginado. O cinema não é a representação fidedigna da realidade, mas é uma criação humana sobre a própria realidade, então é uma potência para se pensar criticamente sobre os paradigmas inerentes em qualquer sociedade.

No cinema, a autoria principalmente relegada ao diretor, recebe uma centralidade que às vezes associamos à autoria de um filme com mais de cem pessoas, participando na produção a uma única pessoa. Sabemos da dificuldade de pessoas negras conseguirem participar da produção cinematográfica, principalmente da direção, então selecionamos três filmes com a direção de homens negros tendo o protagonismo, não só na direção, como na roteirização, como na fabulação de jovens e crianças negras, produzidos por organizações que se propõem a discutir esta nossa reviravolta argumentativa.

O primeiro filme é Lá do Alto (2016), dirigido por Luciano Vidigal do Nós do Morro, organização do Vidigal, Rio de Janeiro, que oferece formações em cinema e teatro para jovens de comunidades periféricas. O filme narra a busca de um menino sonhador em reencontrar a sua falecida avó, a caminho lá do alto do morro do Vidigal o menino precisa convencer seu irmão e seu pai que não há problemas em sentir saudades. Lá do Alto acrescenta ao nosso debate pois ele humaniza os homens negros ao tornar os seus sentimentos protagonistas de uma trama cinematográfica, reforçando que as emoções são constantes para as masculinidades negras e que a paternidade negra é uma realidade.

O Plano do Ano (2015) dirigido por Raphael Cruz e produzido pela Oi Kabum!, iniciativa que produz arte e cultura digitais junto a jovens artistas periféricos financiado como projeto social da empresa de telecomunicações Oi, trata sobre a imaginação de dois meninos que querem bolar um plano de salvar o mundo na virada para o ano 2000 da ameaça do aquecimento global. A tentativa dos meninos de solucionar um problema global é uma boa metáfora para nossas reflexões, através de experimentos científicos mirabolantes que até parecem diversão os meninos vão brincando com a sua inventividade. Seria muito bom poder ver outros meninos negros se tornando cientistas de verdade.

O último filme é Beco sem Saída (2014), produzido pelo coletivo Cafuné na Laje do Jacarézinho que desde 2013 produz filmes de maneira espontânea, lúdica e orgânica com crianças. A narrativa do filme se passa em uma onírica invasão Zumbi que persegue o entediado Yago que queria só poder ir pra rua brincar. A produção do Cafuné na Laje parte da coletividade e da afetividade da favela e acontece sem muito planejamento, as crianças propõe pros mediadores uma história que é narrativizada pro cinema, a criançada acompanha todo o processo produtivo do filme que depois é exibido para toda a comunidade. Beco sem Saída foi só um exemplo de diversos filmes compartilhados pelo grupo em seu canal no youtube.

Estes três filmes foram breves exemplos para evidenciar que a inventividade da infância é a fabulação de uma utopia contra a distópica realidade. Contando histórias a partir de suas próprias perspectivas e sentidos as comunidades marginalizadas e seus pequenos atores sociais estão criando um outro sonho de liberdade em cenários quase impossíveis de se imaginar pelo tamanho da barbárie mas que infelizmente se tornam realidade por causa da indiferença.

Narrativas que protagonizem as realidades de crianças negras marginalizadas e que tenham meninos negros como protagonistas distantes dos papéis comumente relegados a eles é uma dose de inspiração para organizarmos um outro cenário social.

Não existe solução se continuarmos a buscar respostas no árduo trabalho nas mesmas bases do sistema em questão, mas talvez uma alternativa exista na criatividade da brincadeira. O cinema por brincar com a confabulação do real pode ser a dose de imaginação que precisamos para romper com uma ideia de uma masculinidade negra perigosa já germinada na infância. Não acreditando em um lúdico salvador e idealizado, mas experimentando outras possibilidades baseadas em uma prática da incerteza. 

por Marco Aurélio Correa
Afroscreen | 8 Agosto 2019 | actor negro, cinema, representação