Sair da grande asfixia: devaneios cinematográficos na pandemia

Tomando fôlego

a genialidade do fascismo está no fato de que qualquer

estrutura política pode hospedar o vírus,
e praticamente qualquer país desenvolvido
oferece um caldo de cultura adequado

Toni Morrison

Em nossas rotinas aceleradas nunca poderíamos imaginar que precisaríamos de nos isolar para proteger as nossas vidas. Não imaginaríamos também que o confinamento em casa poderia ser tão sufocante, mesmo para os muitos que reclamavam por mais tempo em casa. O isolamento da atual pandemia se mostra sufocante para todos, desde aqueles afogados nas novas demandas do trabalho em dome office, os sobrecarregados pela intensidade do convívio doméstico forçado, ou aqueles que estão em estado de asfixia por não conseguirem praticar o seu trabalho. Além do terror com a rápida escalada dos números de mortos, uma outra realidade nos apavora: nós mesmos. Talvez não tão letal quanto a doença, mas o distanciamento de nossas antigas rotinas nos faz - forçadamente ou não - ter mais contato com si próprios.

Pensar em excesso causa ansiedade, principalmente quando nos dedicamos a pensar demais sobre o que ainda não aconteceu; a ansiedade, juntamente à depressão, forma o casal que representa as patologias do século XXI. Se para muitos conseguir diagnosticar tais patologias é um privilégio, trata-las é um maior ainda, em tempos de crise, esses privilégios se destacam cada vez mais. Seja pela ostensiva ostentação nas residências espaçosas e mobilhadas, das rotinas equilibradas e produtivas e muitos outros privilégios que só o dinheiro pode nos dar. Sem precisar entrar na questão de direitos básicos, como o direito de respirar, que é tomado pela desigualdade da maioria de nossos sistemas de saúde.

Por tantas dificuldades, é uma tarefa difícil cogitar e organizar pensamentos em forma de escrita. Enquanto queimo a cabeça para escolher as melhores palavras desse texto, algumas pessoas se angustiam pensando em como darão um nó em pingo d’água para sobreviver mais uma semana. Por este fato pensei em me abster a discussão – excessiva, porém necessária - sobre os tempos atuais, apesar dos poucos privilégios que possuo sempre recorro à escrita como síntese e assentamento de percepções e impressões sobre o mundo. Porém, afirmo, esse texto não tem a intenção apresentar a ideia de que irá adiar o fim do mundo, nem hipotetizar um possível cenário pós pandemia, esse texto é um recorte e colagem de pensamentos, experiências e reflexões cotidianas através das coisas que venho lendo, vendo, ouvindo e sentindo.

Tentando assim fugir de mais um maniqueísmo barato, ou qualquer juízo de valor raso, ou até um oportunismo cínico de me autopromover devido aos holofotes gerados pelas lives no isolamento, trago alguns devaneios a partir do meu posicionamento como mais um homem negro na multidão. Um dos gatilhos que me levam a essas divagações partem da discussão de privilégios quando mais uma vez as valas comuns se enchem de corpos negros no decorrer da história. Será que a experiência do isolamento é igual para todo mundo? Falava-se antes sobre uma possível democratização das mortes, mas as desigualdades mostraram o contrário.

Para fugir da enxurrada de conteúdos sobre a epidemia e o temor gerado pelo consumo não consciente destes, recorro a alguns mecanismos de fuga para nossa tenebrosa realidade atual. Dentro da ambiguidade de sentidos dessa minha última frase, abrem se várias janelas de possibilidades, mas me atenho aqui somente a uma delas: as imaginações do cinema. O cinema tem a potência de nos levar a outros mundos, a outras realidades, muitas vezes sem percebemos que não nos movemos nem um único centímetro do mesmo lugar. Apesar desses devaneios, os tempos de isolamento nos fizeram perceber que o acesso ao audiovisual - e talvez o seu maior meio de reprodutibilidade: a internet - são bem menos democráticos do que imaginávamos. Exemplo disso é a ideia, já fracassada, do homeschooling onde escolas fingem que ensinam, crianças fingem que aprendem e as famílias fingem que pagam. Em nações onde o analfabetismo funcional é uma realidade, a ascensão dos recursos audiovisuais via smartphones ganham uma importância discursiva. Vide o contexto brasileiro onde opiniões sem fundamentos são compartilhadas com afinco pelas redes sociais ao ponto de refutarem pesquisas científicas. Não que a ciência elitizada e esterilizada de laboratórios seja devidamente antenada as demandas sociais, mas refutar o básico, como a saúde pública, beira a insanidade.

Por isso penso que essa nossa relação com o audiovisual é um dos pontos chave para a compreensão do atual. O ato de assistir algo, não se limitando só ao caráter visual, é uma janela para nossos próprios horizontes mais desconhecidos. O fantasiar presente em qualquer obra audiovisual - aqui enfatizo o cinema - abaixa nossas guardas pessoais, permitindo que nossos subconscientes fervilhem no contato com essas experiências. 

Dentro do contexto do isolamento fugir dessa realidade é um privilégio. Não se pode pensar no cinema como um artefato em neutralidade também, assim como toda criação humana o cinema é feito dentro de uma perspectiva estética e política. 

Mergulhando no inconsciente

Se pararmos para pensar o que pode parecer ser o apocalipse para o sistema capitalista-liberal-financeiro é apenas mais um dos apocalipses que as populações subalternizadas vivem. Os indígenas vivem um cenário pós apocalíptico há séculos, desde o genocídio colonial que fundou também o estado de extermínio das populações negras sequestradas em nome do lucro colonialista. A maafa de Marimba Ani é o trauma inicial de toda a experiência apocalíptica para as populações negras que até hoje lutam para sobreviver. Não que a pandemia se torne menos importante para essa parcela da sociedade, pelo contrário, ela só potencializa as políticas de austeridade adotadas com o avanço estrutural do conservadorismo liberal.

Historicamente, para sobreviver ao constante apocalipse essas populações reinventaram suas formas de sentir o mundo, criando outras formas cotidianas de existência. Desde outras formas de cosmogonias, cosmovisões e espiritualidades como até com expressividades estéticas corporais, estes povos sublimados recriam outros sentidos de viver. Não podendo como meras formas de alienação, mas sim com um posicionamento outsider que abre rizomas de perspectivas do problema centralizante. 

Aqui pontuo a experiência do cinema como uma dessas formas de suspensão da realidade. Este age como um duplo agente que pode de a mesma maneira agir como mais um dos tentáculos da máquina genocida do capitalismo liberal, como também pode agir como uma janela para se efabular outros sentidos de mundo. Se atentando ao seu caráter capitalizado, o ápice do cinema se dá com o aceitar de sua irreprodutibilidade na maior máquina de se criar fantasias com o advento de Hollywood. A chave aqui é pensar em quais eram essas fantasias criadas e disseminadas pela indústria do entretenimento norte americana; dominada por uma elite fundamentada nos padrões eurocêntricos as narrativas desenvolvidas pelos principais estúdios reproduziam um senso de desejo a estética da branquitude – com seus mocinhos e mocinhas – fundando assim uma forma de pacto narcísico, como define Cida Bento. 

Apontando de si para si, a inteligência do cinema criaria, inconscientemente ou não, uma estrutura estética onde a diferença seria maniqueisticamente significada como o mau, ou seja, qualquer não branco não teria as qualidades estéticas para ser um protagonista. Enquanto isso, as populações negras são bombardeadas historicamente com a estética branca no cinema que cria uma espécie de recalque nelas próprias ao tentar se aproximar, sem sucesso, da própria estética que o oprime. Encontramos aqui desta maneira paralelos entre o genocídio - atualizada nos dias de hoje na ideia de necropolítica - com o epistemicídio e consequentemente um esteticídio, que seria a forma como as expressividades que fogem da norma seriam subjugadas como inferiores, irracionais e infantis. Definido por uma elite branca quem merece ou não o direito de existir plenamente. É o que acontece com a cultura negra brasileira por exemplo, que só acaba sendo aceita como parte da identidade nacional ao assumir seu caráter lúdico, como visto na tríade samba, futebol e capoeira.

E onde essa peleja toda vai parar no mal estar contemporâneo? Se pensarmos que a pulsão de morte oriunda da branquitude hegemônica, suprime a existência das diferenças, de altericídio, a própria cria um estado similar a guerra, onde o oprimido para sobreviver representa uma ameaça para a própria hegemonia que o aprisionou no estado de oprimido. Toda essa tensão causa um estado de medo coletivo instaurando o mal estar coletivo. Em outras palavras, em um surto psicótico na manutenção de sua soberania a branquitude precisa criar um estado de insanidade coletiva para conseguir subalternizar pretos, indígenas e qualquer grupo desviante que represente ameaça a sua hegemonia.

Em contrapartida o cinema aparece também como uma outra possibilidade a esse paradigma; da mesma forma que historicamente as estéticas negras reinventaram a existência nas diásporas, o cinema permite esse navegar em outras águas que refletem realidades de outras formas de se viver que não sejam no sufocamento imposto pela civilidade das branquitudes. Sabemos que de fato acontece um processo de democratização nessa luta de narrativas, mas não devemos nos contentar com escassez. 

Eles vieram pegar o que é de direito

Para não perder o hábito, aproveito e convido aqui um filme para me acompanhar nesses devaneios solitários. Atlantique, filme dirigido pela senegalesa Mati Diop, ganhador do prêmio do júri no Festival de Cannes 2019, fazendo história por ser o primeiro filme dirigido por uma mulher negra indicado ao maior prêmio do festival conta o romance de Ada e Souleiman em um Senegal contemporâneo. No enredo do filme os dois jovens tem o seu romance proibido interrompido pelo sumiço repentino de Souleiman. Descobrimos que enclausurado pela falta de pagamento na obra faraônica que trabalhava, o jovem tenta se aventurar a barco para a Europa tentar uma vida melhor mas acaba sofrendo um acidente que mata ele e outros colegas de trabalho afogado no atlântico. Misteriosamente como se estivesse reencarnando, Souleiman e seus colegas possuem o corpo dos vivos que ficaram – como se estivessem os contaminando – para exigir de seus patrões o futuro que os pertenciam. Enquanto os colegas exigem seus pagamentos com um enterro digno para seus corpos tragados pelo mar, Souleiman só quer passar mais uma noite com sua amada Ada.

Atlântique, de Mati DiopAtlântique, de Mati Diop

Atlantique foi um afago para mim nessa quarentena, pensei em quantas outras vidas foram interrompidas sem a oportunidade de um adeus. Pensei na quantidade de pessoas, desde o tempo do atlântico, também perderam suas vidas sem conseguir respirar. O que os mortos pelo vírus nos diriam caso tivessem a oportunidade? Ficam assim mais perguntas no ar. O cinema proporciona esse momento de introspecção, como se estivéssemos, assim como Narciso, vendo nossa imagem refletida na água, como na decepção por não conseguir ver a própria imagem nas águas escuras da noite. O cinema é uma janela que nos permite sonhar, criar, efabular outros mundos, outros horizontes.

Apesar de ainda ser uma posição privilegiada ver e refletir filmes como Atlantique, apesar de estar disponível no catálogo da Netflix, penso como essa posição à margem, quase que auto imposta, pode ser uma forma de se observar os problemas à distância. Porém, só de olhar e analisar à distância não é o suficiente, precisamos agir como uma pantera que recua para a atacar. Precisamos de atacar e derrubar de vez as barreiras que marginalizam as diferenças.

por Marco Aurélio Correa
Afroscreen | 12 Maio 2020 | Atlatique, Brasil, cinema, Coronavírus, pandemia