Kiluanji Kia Henda to me
Entrevista realizada por chat, em vários momentos e dias diferentes, pontuada por quedas constantes da linha cibernética que desenha a triangulação transatlântica e ex-colonial entre Luanda, Angola – residência de Kiluanji Kia Henda, cidade onde nunca estive; São Paulo, Brasil – minha residência temporária, local do primeiro encontro entre mim e o Kiluanji, lugar próximo da origem da série que aqui se apresenta; Lisboa, Portugal – minha residência fixa, fonte do horário apontado pelo meu computador e ex-residência temporária do Kiluanji.
12:48 PM
me: Qual foi o teu ponto de partida para este projeto? Parece-me que o quiseste editar de uma forma bastante diferente das outras propostas de séries ou de exposições. Numa primeira leitura percebi de imediato que descentralizaste o assunto. Abandonaste a tematização da narrativa?
12:52 PM
K: É importante dizer que o título para esta série surgiu enquanto tinha uma arma apontada à cabeça. São imagens que estão forçosamente conectadas umas com as outras a partir desse momento.
12:55 PM
me: Isso aconteceu aqui no Brasil. Lembro-me bem do relato dessa situação quando cá estiveste, tinha acabado de acontecer, aliás.
12:56 PM
K: Sim, foi na Bahia.
10:30 PM
me: Eu vejo, através do fenómeno da hipermnésia e da ideia do conto “O Milagre Secreto” do Jorge Luis Borges, algumas possibilidades de exploração do teu trabalho.
10:31 PM
K: Sim, essa relação existe. Ela surge na descrição do momento da tragédia que eu procuro referir no título, e também na seleção das imagens que é uma retrospetiva dos trabalhos feitos durante os últimos três anos. A ideia de retrospetiva cria um paralelo com o estado de hipermnésia, com certeza.
10:32 PM
me: Como Hladik, o protagonista do conto de Borges, também tu suspendeste, qual milagre secreto, a possibilidade do disparo… É nessa suspensão, que dura um milésimo de segundo (ou o tempo da gota de chuva tocar e cair do seu rosto), mas que mentalmente equivale a um ano inteiro, que Hladik tem oportunidade de concluir o seu romance até então incompleto. Como descreverias a tua “gota de água”?
10:41 PM
K: Lembro-me que foi um momento de grande desespero. Lembro-me também que sentia que a minha cabeça não estava ali, que o meu cérebro tinha iniciado um resumo automático de toda minha vida, como se essa proliferação de ideias fosse capaz de me distanciar ou até de eliminar a situação vivida naquele preciso momento. É incrível como é que face a determinadas circunstâncias deixamos de ser nós para passarmos a ser espectadores da nossa própria vida, como se estivéssemos a negar a nossa existência ou a realidade presentes e dolorosas ausentando-nos deliberadamente da nossa materialidade intrínseca.
10:45 PM
me: “Há dias em que deixo o coração em casa…” parece, neste contexto, uma espécie de confissão ante mortem, um desabafo angustiado e desesperançado, formulado, em retrospetiva, da mesma forma que um testamento.
10:54 PM
K: Na minha cabeça e naquele exato momento, aquela frase significava que não haveria perdão, que a fatalidade estava anunciada. A intenção do agressor, um polícia, era de fazer com que eu perdesse toda a esperança depois de várias horas de lamento.
11:01 PM
me: E então o cérebro dispara. De que forma é que as imagens que escolheste reverberam as imagens que te surgiram, e como se materializa essa relação com o projeto atual?
11:08 PM
K: Acontece que as histórias representadas nestas imagens trazem em si várias questões relacionadas com o medo e com a insegurança sobre o futuro. A minha intenção, enquanto artista, foi de abordar questões variadas como a nuclear, do petróleo, dos diamantes, da negritude, da toxicodependência, etc., fatores que envolvem interesses desmedidos, que postulam a ideia de não se dever olhar a meios
para se atingir os fins e que nos levam muitas vezes a deixar o coração em casa… A ideia é contar histórias que podem acontecer num dia de vida, partindo de trabalhos pré-existentes, produzidos no âmbito de uma pesquisa sobre temas controversos e globais. O espaço temporal, assim como o espaço físico, o lugar que é indissociável da sua própria história, ambos existem entre as imagens e foram fundamentais para a seleção que agora apresento.
Ao mesmo tempo que eu procuro trazer com este projeto temas de escala alargada, há em paralelo uma aproximação pessoal. Fala-se muito, por exemplo, da Guerra Fria como algo que ficou para a história, mas eu questiono até onde cada um de nós é ainda afetado por ela no presente.
11:27 PM
me: Então quando falas de uma dimensão pessoal referes-te à tua vivência num contexto político específico e às implicações íntimas e psicológicas dele resultantes?
11:29 PM
K: Falo da necessidade de entender o indivíduo através do seu contexto político e histórico.
11:30 PM
me: Para além disso, onde colocas e como interfere a tua própria subjetividade e o afeto patentes no nome atribuído ao projeto?
11:48 PM
K: De facto, o título é incrivelmente afetivo, mas ao mesmo tempo refere-se a uma falta de afetividade latente. Refere-se à nossa enorme capacidade destruidora que tantas vezes coloca o coração fora de jogo, ou simplesmente o deixa guardado num local que consideramos ser casa, o local que cuidamos enquanto andamos a errar pelo mundo.
11:55 PM
me: É então a isso que o teu trabalho se propõe? A cuidar de casa? Achas que a tua obra tem um potencial transformador no sentido em que aponta, com a imaginação como motor, para a construção de uma outra imagem de África?
12:01 AM
K: Acho que seria muito pretensioso se pensasse assim… Simplesmente procuro encontrar certos fatores em comum entre vários pontos do planeta, para encurtar as distâncias e melhorar o diálogo. Mas claro que o epicentro é África, ou Angola, para ser mais específico. É importante termos a noção de quanto há do resto do mundo em nós.
5:06 PM
me: As imagens selecionadas foram reintegradas de séries que reconheço. Fazem parte de outras histórias, são fragmentos dessas narrativas que aqui operam conjuntamente para a construção de uma história maior. Projetam-se igualmente em todas as dimensões da tua vivência como se ela pusesse significar todas essas convulsões.
5:10 PM
K: Há muita coisa nelas que nasce a partir de certos traumas pessoais e estes momentos traumáticos estão diretamente ligados à história do país onde vivi. No entanto, para mim, eles transbordam as fronteiras continentais e por isso assumem, simultaneamente, uma dimensão pessoal, política e global.
5:14 PM
me: Sentiste-te empurrado pela história ou tiveste a sensação de interferir nas tuas imagens, no sentido de forjar a partir delas um poder de transformação do mundo, não só da gente ou do poder político?
5:15 PM
K: Sempre tive um sentimento de ter vivido as consequências diretas da globalização das guerras. Desde miúdo aprendi que em Angola éramos parte ou vítimas de uma grande estratégia internacional, que o que acontecia não era só movido pela nossa vontade. E assim, és obrigado a posicionar-te. Acho que isso suscitou em mim a preocupação de abordar os temas numa escala mais abrangente.
5:29 PM
me: Li um artigo recente com algumas citações de um teu depoimento. Falavas exatamente dessas referências cruzadas, como a audição, em criança, da música do Michael Jackson num rádio soviético. Qual a importância para a tua formação da acumulação de repertórios tão diversos, que passa pela disputa e presença permanentes em Angola de todos os países que querem fazer parte ou determinar o seu futuro?
5:35 PM
K: Cresci num período experimental de um país tão jovem quanto eu, onde sempre houve, aparte as opções políticas, uma grande e permeável liberdade cultural e até religiosa. Por isso acho que temos uma identidade bastante contaminada pelo que nos chega através dos portos e dos aeroportos, e agora via Internet e satélite. Isto não acontece só com Angola mas também no resto do continente, que de repente deixou de ser o continente do passado para agora ser remetido ao futuro.
5:39 PM
me: E a ti interessa-te trabalhar essa imagem do futuro como uma espécie de apologia da ultrapassagem ou superação histórica? Essa preocupação insere-se no movimento afrofuturista, sobretudo conhecido na literatura?
5:41 PM
K: Existem duas questões que são vitais para o contexto africano: a capacidade de escrever e conhecer a sua própria história, e a capacidade de projetar o seu próprio futuro. O afrofuturismo é um escape a partir do qual me procuro abstrair do presente. Não obedece a uma regra temporal, o que permite projetar um futuro supostamente utópico, por vezes interferindo com a herança do passado.
5:44 PM
me: A plena reestruturação e afirmação política de jovens nações, algumas das quais também jovens potências, depende da capacidade de recontar a sua própria história, contrariando a perpetuação de uma leitura eurocêntrica. É essa a proposta da tua obra, reescrever ou reinventar a história?
5:48 PM
K: Sim, quem não tem uma história, inventa!
5:49 PM
me: Essa ironia lembra-me o discurso do Sarkozy no Senegal que dizia que África nunca tinha “entrado na História” dos problemas dos africanos… É de autodeterminação que falas?
5:51 PM
K: O importante é sentirmos que temos legitimidade para definirmos o que somos ou o que pretendemos ser. A história forjada pelas universidades também possui lacunas e manipulações. Para além disso, é claro que o processo de descolonização mental vai muito para além do ato político de içar bandeiras, de realizar desfiles em praça pública e de promover discursos. Por isso acho que é muito cedo falar-se de pós-colonialismo, uma vez que ainda existem muitos países fragilizados em África, que por vezes são obrigados a tolerar este tipo de discurso paternalista. As independências em África são marcos históricos recentes, e as estratégias de dominação e neocolonização não são, infelizmente, um assunto do passado. A afirmação do Sarkozy é uma prova indiscutível deste perigo.
1:57 AM
me: Então contrapões uma espécie de projeto de falsificação histórica, que obedece a um determinado interesse e ponto de vista, como toda a história, mas cuja subversão é operada por ti usando o mesmo método para produzir o efeito contrário, como uma espécie de pirataria.
2:00 AM
K: Exato! Na verdade é o mesmo estratagema que foi usado de forma negativa para o continente africano, e foi eficaz: a mentira que nos convém a todos ouvir, e nos faz feliz. Falo do contexto africano apenas por uma questão pessoal. Como já o referi, considero que é uma história comum a outras partes do mundo. O facto de em cinco horas poder estar na Etiópia de avião, quando levou milhares de anos para os Bantus chegarem a Luanda, é algo que nunca poderia banalizar.
É importante repensar a maneira de como acedemos à globalização que, no nosso caso, foi de forma quase obrigatória e imediata: entender o “outro”, o estrangeiro, tornou-se absolutamente necessário para a sobrevivência dos africanos. Os navios que saíram daqui para o resto do mundo não eram propriamente ocupados com turistas, nem tinham um roteiro turístico…
2:16 AM
me: Essa comunicabilidade necessária, urgente, enformou uma atitude de abertura e de perceção do outro e de adaptabilidade.
2:18 AM
K: Sim, e também foi vital para a própria soberania. É incrível pensar a tremenda interdependência que existe hoje em toda a humanidade. Conhecer o outro e os outros nos conhecerem pode evitar tragédias como a do Iraque. Saber que o sistema de comunicação moderno depende de um mineral que vem das matas do Congo implica o nosso dever moral de sabermos mais sobre este país.
3:44 PM
me: Temos estado a falar da inscrição política do teu trabalho, que lhe está na origem e que parece ser inextricável dele. É o seu enquadramento e o seu deflagrador primordial. Mas quando é que descobres que a arte pode dar forma a essa inquietação?
3:47 PM
K: O meu interesse em produzir trabalho artístico sempre foi poder reproduzir situações extremas em que vivi e que muitas vezes superavam a ficção. Parte de uma interação com as ruas, as suas leis e os seus mitos. A marca do tempo sobre as coisas, a sensação de nostalgia e o odor ainda presente das outras vidas que habitaram a cidade, sempre chamaram a minha atenção desde criança. Talvez daí tenha nascido esse interesse em registar.
3:51 PM
me: É interessante falares em reprodução. A minha imagem do continente africano, com a qual eu cresci e me formei, é uma imagem fotográfica. Quando acontece em ti a necessidade de passar do reproduzir ao ficcionar?
3:57 PM
K: Neste momento considero que vivo uma mudança de pele como artista. Decidi intervir sobre aquilo que supostamente seria uma mera imagem documental, que passa a ganhar outra importância quando entra neste processo de manipulação. Dar a comer do mesmo veneno do qual fomos alimentados. O sensacionalismo, a omissão ou o despiste podem ser ferramentas do bem quando usadas no contexto artístico. Esta é a liberdade mais importante para mim quando se entra nos territórios da ficção. “[…] Now if six turned out to be nine, I don’t mind”, como cantou Hendrix.
4:04 PM
me: Como começaste a fotografar?
4:05 PM
K: No meio familiar, com os irmãos mais velhos. Chegámos mesmo a ter um estúdio em casa. Depois conheci alguns fotojornalistas que para mim eram como heróis, como o Carlos Louzada e o John Liebenberg, durante a minha adolescência. O Liebenberg, que agora é um paparazzo, possui um dos maiores acervos fotográficos da guerra.
Para mim foi impressionante o quanto aprendi sobre mim mesmo nas suas imagens. Foi também onde descobri a fotografia como uma arma de intervenção e de denúncia: na África do Sul foi, aliás, um dos principais meios utilizados para desmascarar o Apartheid…
4:13 PM
me: Na altura em que o conheceste já fotografavas?
4:14 PM
K: Não. Na altura era um estudante e estava mais ligado à música. Isto nos finais dos anos de 1990, quando eu tentei formar várias bandas que resultaram sempre em projetos frustrados. Acho que estive ligado à fotografia mais no seu lado contextual porque na verdade estávamos sempre a analisar imagens. Tinha as fotos do Cassiano Bamba, meu irmão, que como não fazia fotografia para vender tinha uma grande liberdade naquilo que fotografava. As suas imagens estavam muito relacionadas com a vida de Luanda, desde os musseques (favelas) até as passagens de modelos na cidade, e documentavam uma espécie de renascimento do glamour após a independência.
Mas estranhamente eu quase não fotografava… Só voltei a ligar-me à fotografia quando voltei para Luanda em 1998, depois de dois anos em Joanesburgo. A relação com os artistas da baixa foi muito importante para esse reencontro, no sentido de me incentivar a perseguir uma atitude ou um conceito artístico naquilo que fotografava.
12:01 AM
me: Como Liebenberg com o Apartheid, tu escolheste inserir neste projeto muitas imagens de Lunda Sul, cenário principal dos massacres relacionados com os “diamantes de sangue”. Algumas destas imagens são, no entanto, bem enigmáticas, diria quase abstratas, como no caso de Lunda in the Sky with Diamonds II, cujos protagonistas são as solas brancas de dois sapatos.
12:28 AM
K: Essas botas pertencem a um mineiro. Eles não podem abandonar a zona de exploração sem lavarem as botas, porque qualquer pedra, por insignificante que seja a olho nu, pode ser super valiosa. Até os pneus dos camiões têm que ser lavados. A experiência que tive na Lunda Sul foi muito profunda, e possui uma dupla conotação de afetividade e conflito.
12:47 AM
me: Porquê afetividade?
12:50 AM
K: Porque tinha um irmão adotivo que fez a tropa lá, e foi morto durante uma das batalhas. Cresci com o nome desta província na cabeça por causa das histórias que ele me contava, a partir das quais eu me esforçava para criar imagens de como seria este sítio, já que não tinha fotos. Muito mais tarde, quando viajei para lá, foi incrível! Era muito excitante pensar que ia desvendar um mistério que tinha vivido desde sempre no meu subconsciente. Só ouvia falar das riquezas do subsolo, mas na verdade nunca tinha visto um céu mais lindo.
Entrevista publicada no catálogo da exposição BES Photo 2011, Co-edição: Banco Espírito Santo / Museu Colecção Berardo, Lisboa, 2011.