3ª Bienal de Arte Contemporânea de Coimbra – Anozero’19 A Terceira Margem

Que río és éste

por el cual corre el Ganges?

Jorge Luis Borges, «Heráclito» 

[…] no começo, na vinda das primeiras cheias do rio,
com chuvas que n
ão estiavam,
todos temeram o fim-do-mundo
 […]

João Guimarães Rosa, «A Terceira Margem do Rio»

Anna BoghiguianAnna BoghiguianÀ partida, poesia

Há algo de poético numa cidade entrecortada por um rio, como o Mondego fluindo imperturbável por entre as margens, a partir das quais se esparrama Coimbra. O rio é a imagem da continuidade e da impermanência, o seu tempo tangencia o infinito. As nossas existências, fugazes como as gentes que o atravessam, as pontes que o cortam e as águas que por lá passam, são o sumo da descontinuidade; o nosso tempo é ínfimo se comparado com o do rio.

A relação do Mondego com Coimbra alterou-se ao longo do tempo: durante séculos, a cidade ocupou quase exclusivamente a margem direita, o lado do centro velho e da Universidade, elevada em 2013 a Património da Humanidade. Desde então, a Universidade, até há bem pouco uma instituição exclusivamente masculina e religiosa, passou da Rua da Sofia para a zona Alta, de onde, como polo eurocêntrico de produção de saberes, se irradiou. Usada, na sua organização espacial, como modelo de planeamento urbano, e cultural, como difusora e impositora de valores europeus e portugueses, espraiou-se pelo mundo e fixou-se nas ex-colónias portuguesas.

Na margem esquerda do Mondego, no início do século XIV, foi estabelecido o convento dedicado a Santa Clara, fundadora do ramo feminino na ordem franciscana. Próximo ao rio e em virtude de sucessivas inundações, o edifício foi sendo alteado a ponto de obrigar a construção de um andar superior. Mas a insistência das águas de longas beiras obrigou as Clarissas reclusas a abandonar o antigo convento e a encontrar refúgio no Monte da Esperança, onde se situa, desde o século XVII, o Convento de Santa Clara-a-Nova.

Situadas em cotas altas, as duas instituições, hoje, como que se entreolham. Abaixo de ambas, segue o rio, reiterando a vacuidade das nossas construções, sólidas ou abstratas. O Convento estava abandonado até a arte o reivindicar, e o Mondego, como eixo da sua situação a um só tempo geográfica e simbólica, conduziu a bienal ao conto «A Terceira Margem do Rio», a intrigante narrativa que João Guimarães Rosa publicou em 1962. 

Belén UrielBelén Uriel

O narrador do conto é um homem que conta a história do seu pai, que, vivendo com a sua família numa aldeia junto ao rio, decide mandar construir uma canoa, pequena como para caber justo o remador, para no seu curso entrar e dele nunca mais voltar a sair, permanecendo, para sempre, rio abaixo, rio acima. Esta autorreclusão a céu aberto, decisão individual do protagonista para a qual não oferece nenhuma explicação à família ou à comunidade, configura um gesto radical de ocupação irreversível. É esse gesto que define o território — tremendo, instável, insondável e indizível — da terceira margem, que é a nossa contemporaneidade.

A Terceira Margem do Rio

Em «A Terceira Margem do Rio», a família — pai, mãe e três filhos — tem a sua dinâmica alterada em definitivo pela partida do pai, e o silêncio impõe-se como um dos protagonistas: Nosso pai nada não dizia. Nossa casa, no tempo, ainda era mais próxima do rio, obra de nem quarto de légua: o rio por aí se entendendo grande, fundo, calado que sempre. Pai e rio dividem um possível entendimento de silêncio e movimentam-se durante toda a história calados. O narrador busca incessantemente o olhar e a voz do seu pai, encontrando no seu lugar um parêntesis: Nosso pai suspendeu a resposta. O silêncio como encapsulamento do ser, lugar interior, de recolhimento, causador de perturbações externas profundas; entendido como tomada de atitude e como um instrumento da linguagem.

Bruno ZhuBruno Zhu

A deserção da figura paterna desencadeia uma série variada de reações familiares: tensão, morte, luto e fé. Tudo isso em consequência da invenção de um novo modo de ser. Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A partir deste momento, quem rege a família é a mãe. E a complexidade e interioridade das relações interpessoais que exploram a natureza ambivalente e disfuncional dos vínculos familiares, tão reconfortantes quanto opressivos, tornam-se visíveis. Essas relações ficam inacabadas, arrefecidas a ponto de serem interrompidas. O pai, que toma a decisão de se retirar, fundindo-se misteriosamente com o rio, observa à distância, à margem. Em contraposição à normatividade das margens onde se encontram os outros, o pai cria, inventa, uma margem metafísica que só ele conhece. 

A marginalidade entre as margens.

Ao invés de envelhecer naturalmente como os outros, a figura paterna, sob o impacto dos elementos — cheias, chuvas, sol escaldante, frio, vento, noite, escuro, fome, nudez —, vai-se modificando, transformando em bicho. É isso que o filho, adivinhando o sofrimento do pai e sofrendo com ele, conclui, ao mesmo tempo que se lhe assemelha progressivamente: algum conhecido nosso achava que eu ia ficando mais parecido com nosso pai. Há uma simetria na condição entre aquele que está na margem, que a habita placidamente, e aquele que está à margem da margem. O filho, ligado indissoluvelmente à figura paterna, masculina, animalizada, é uma personagem solitária, livre e prisioneira tanto quanto o pai, fazendo-se velho numa vida de espera e demoramento.

José SpaniolJosé SpaniolSe a determinação inquebrantável deste pai coletivo padece de um existencialismo militante, assiste-lhe também uma irredutibilidade na fé: uma espécie de homem santo, movido por um propósito firme; um anacoreta que em vez de se colocar acima do espaço comum fica flutuando no rio/tempo. Isso evidencia-se na repetição ritualística da palavra pai, pai nosso, nosso pai, como uma litania, uma oração encantatória baseada no uso de tríades linguísticas como «rio afora, rio abaixo, rio adentro», «rio, rio, rio», «cumpridor, ordeiro, positivo», «grande, fundo, calado». A narrativa oferece ainda outros elementos litúrgicos: O pessoal [acendia] fogueiras em beirada do rio, enquanto que, no alumiado delas, se rezava e se chamava. A beirada do rio e a relação com as águas configuram-se como altares de adoração daquele que só está presente na memória. A canoa, o caixão do pai, torna-se altar esquivo para onde se endereçam oferendas: Mostrei o de comer, depositei num oco de pedra do barranco, a salvo de bicho mexer e a seco de chuva e orvalho. Isso, que fiz, e refiz, sempre, tempos a fora

A passagem — protagonista-síntese — da vida interna e das casualidades da vida externa.

Habitante do longe, do não encontrável, na vagação, no rio, no ermo, a personagem paterna vai perdendo a sua materialidade, convertendo-se em espectro, fantasma, psicopompo. Nós, também, não falávamos mais nele. Só se pensava. Não, de nosso pai não se podia ter esquecimento; e, se, por um pouco, a gente fazia que esquecia, era só para se despertar de novo, de repente, com a memória, no passo de outros sobressaltos. Com a passagem do tempo, toda uma vida gasta, as presenças vão perdendo solidez, desfortalecendo-se e esboroando-se as fronteiras, restando em dejetos, em farrapos de lembranças, cada vez mais fluidas e difusas. Há, perto do final, o reconhecimento do filho pelo pai, o atendimento efetivo da evocação feita à margem, mas o súbito acovardamento do narrador impede a concretude do encontro; o retraimento do ser trai a própria condição humana.

Uma bienal para a arte contemporânea

Um rio não tem a primeira e a segunda margem: tem duas. Que dizer de uma terceira? Pois esta é a que não está, que vive em suspensão: é a margem formada pela linha entrecortada da vida humana, onde uma ponta se cola à outra, como mais uma margem de beiras largas formada pelas partes descontínuas da matéria frágil dos nossos corpos. A rigor, é menos pelo corpo e mais pela linguagem, pelas imagens e objetos que produzimos, que ousamos fundir-nos à eternidade, que pretendemos ser rio.  

Julius von BismarckJulius von BismarckArte confina com a ideia de rever e reapresentar o que se pensava conhecido; trazer sob um outro ângulo, insuspeitado. Jorge Luis Borges levantava a possibilidade de que todos os livros existentes fossem versões de um mesmo livro, a Bíblia. Giambattista Vico escreve que só podemos entender os nossos ancestrais porque eles eram movidos pelos mesmos sentimentos que nos habitam. Alguns impulsos repetem-se, algumas imagens são revistas e, frequentemente, dão lugar à invenção — não foi assim com a prosaica maçã de Newton?

Arte contemporânea é a margem mais avançada, a terceira margem da nossa sensibilidade e da nossa expressão. Que ela aconteça numa cidade como Coimbra serve como antídoto para sua consagração como património da humanidade, porquanto isso pode sugerir aos desavisados que ela parou. Antes pelo contrário. Ela é o que é por conta da inquietude dos espíritos daqueles que a construíram, e também da ousadia daqueles que hoje seguem a construí-la.

Expandindo o conceito e recorrendo à literatura como estratégia de reforço da natureza multidisciplinar da cultura, a «terceira margem» de Guimarães Rosa pode bem referir-se à situação de suspensão generalizada em que vivemos, a instabilidade expressa nas vagas de gente acumuladas nas bordas dos países e dentro das cidades que os compõem, no tenso debate entre aqueles que pressentem catástrofes e aqueles que dão de ombros; na oportunidade aberta nas redefinições identitárias de toda a ordem, faceando os que reagem agarrando-se com firmeza às boias da tradição. À luz da poética de um dos maiores autores brasileiros do século XX, a 3a. edição da Bienal de Arte Contemporânea de Coimbra pretende dar a ver obras históricas juntamente com outras fundadas na contemporaneidade, em sonhos e pesadelos que dão conta da sua crise existencial e que, simultaneamente, a permitem continuar a fluir. 

Vivemos um tempo perturbador trespassado pela incerteza. Resta-nos fazer perguntas, dado que as respostas, por excessivas e prenhes de certeza que são, não dão mais conta deste mundo. Daí a nossa aposta na arte, nesta Bienal maioritariamente instalada no Convento de Santa Clara-a-Nova, que, neste inverno, pela segunda vez, ficará iluminado por algumas horas da noite, agigantando-se com a Universidade; enquanto o Mondego, como sempre, seguirá o seu caminho se estendendo grande, fundo, calado que sempre. O próprio rio perpassa o edifício:  monge rosiano ou clarissa reclusa enclausurados em rio aberto com a arquitetura do mosteiro como margem-limítrofe.

Luis Felipe OrtegaLuis Felipe Ortega

Maraiana Caló e Francisco QueimadelaMaraiana Caló e Francisco Queimadela

 

A Terceira Margem/The Third Bank  

A Terceira Margem/The Third Bank tem uma curadoria tripartida e desdobra-se em três partes de igual importância: uma exposição, um livro e um programa de ativação. Cada uma destas pontes do projeto foi desenvolvida por uma pluralidade de vozes: curadores, artistas, autores e estudantes. Cinco frases-temas retiradas da narrativa rosiana acima acercada servem como eixo conceitual para desdobramentos dessas três partes. Elas sugerem silêncio — nosso pai nada não dizia; marginalidade — passadores, moradores de beira; invenção — executava a invenção; militância — chega que um propósito; e passagem — longe, no não-encontrável.

 

A exposição apresenta trabalhos de 39 artistas, metade dos quais comissionados, e ocupa diferentes lugares da cidade, ativando fortemente o seu património arquitetónico e imaterial. Além da ocupação do espetacular Convento de Santa Clara-a-Nova, a bienal espraia-se pelas ruas do centro da cidade (Edifício Chiado, Sala da Cidade e Cinema Avenida), pelos edifícios da Universidade de Coimbra (Colégio das Artes e Museu da Ciência — Laboratório Chimico e Galeria de História Natural) e pelos espaços do Círculo de Artes Plásticas de Coimbra (CAPC Sede e Sereia).

O programa de ativação é desenvolvido pelos alunos do Mestrado em Estudos Curatoriais do Colégio das Artes da Universidade de Coimbra em colaboração com a Esfera CAPC e pretende tecer diálogos e encontros entre a bienal e as diferentes comunidades locais. Este programa fortalece o vínculo do Anozero com a cidade, os seus moradores e a universidade, oferece aos alunos formação em contexto e garante a ativação laboratorial dos seus conteúdos expositivos.

O livro reúne ensaios dos artistas participantes especificamente criados em resposta ao formato editorial. Eles são ensaios visuais ou literários, que servem de antecipação, continuação, desdobramento ou expansão experimental dos trabalhos apresentados na exposição; aos quais se somam ainda textos de Peter Pál Pélbart, Clara Rowland, Isabel Carvalho, João Paulo Borges Coelho e Samuel Titan Junior.

A partir e em torno das relações entre a poesia visual, concreta e experimental, portuguesa e brasileira, a bienal inclui ainda a exposição ShipShape, que, com a curadoria paralela do artista participante Tomás Cunha Ferreira, apresenta um núcleo central de trabalhos em que os parêntesis (sinais de pontuação, notação espacial e linguística dentro e fora da página) assumem um papel preponderante. «I can play both sides of the street, and maybe even the third»: a exposição ecoa as palavras de Lou Reed, que parecem traçar uma possível imagem para a definição da poesia visual — nem pintura nem escrita, mas uma terceira (im)possibilidade entre ou para lá das duas. 

Fotografias de Jorge da Neves. 

por Lígia Afonso, Agnaldo Farias e Nuno de Brito Rocha
Mukanda | 19 Dezembro 2019 | Bienal de Coimbra, Guimarães Rosa