Entrevista a Domicília Costa - 3ª parte

J - Os teus pais estiveram na clandestinidade 20 anos.

D - 21.

J - E nunca lhes aconteceu nada. Mas mantiveram uma casa clandestina 21 anos. Então em 1970, Domicília Costa, abandona o Partido Comunista, onde aos 13 anos tinha assumido funções, não é? Aqui tinhas?

D - Tinha 24.

J - Os teus pais, apesar de estarem há 20 anos na clandestinidade e serem militantes, não te disseram nada, não disseram o que achavam, não te tentaram demover e foste para Paris, ter com o teu marido, o teu companheiro.

D - Pronto, depois de chegarmos a Paris separámo-nos. Entretanto, eu depois de Viseu, ele deixara-me uns contactos, eu falo aí, só não digo os nomes, claro. As pessoas poderiam não estar interessadas. E, portanto, ele deixou-me contactos a quem eu podia pedir ajuda, de algum modo, fosse monetário ou outra qualquer, de forma a me aguentar aqui enquanto não fosse ter com ele. Aqui, quer dizer, em Portugal. O funcionário foi lá num dia, eu devo ter saído de casa imediatamente a seguir, não me lembro, mas deve ter sido isso que aconteceu. No dia imediatamente a seguir, provavelmente não foi naquele eu saí novamente de casa dos meus pais e fui procurar uma das pessoas que ele me tinha indicado.

Então, membros do partido, mas na legalidade, claro, eram dois comerciantes. Se à partida, qualquer um me receberia, ele já tinha de os ter contactado antes, Antes ainda de ir para a França, ele teve que os contactar. Ah, é que ele, entretanto, tinha escrito uma carta, uma carta aberta, não é? Carta aberta aqui, evidentemente.

J - Onde é que se publicava a carta aberta?

D - Fizemo-la nós, quer dizer, ele redigiu, logicamente, e eu ajudei-o com um stencil, não é? E depois tirou-se não sei quantos exemplares, não faço ideia.

J - Então mas depois distribuía-se onde? 

D - Então, entregava-se, não se publicava em lado nenhum, entregava-se a… Ele foi entregando em mão.

J - Às pessoas que conhecia.

D - Exatamente.

J - Não está aqui no teu livro, a carta.

D - Não, a carta não está no meu livro. Eu creio que tenha a carta, mas nem tenho a certeza se a tenho. O Pacheco Pereira deve ter.

J - Conheceu o Pacheco Pereira na Assembleia?

D - Não sei, porque eram homens do PPD. Porque ele em Paris ainda andou com, não sei se foi com trotskistas ou outros quaisquer, não me recordo. Mas sei que andou com outros grupos que não eram do Partido, evidentemente. Grupos de refugiados. Outros grupos que se formavam. Alguns já existiriam e outros que se criaram, não sei quantos. Não estou dentro disso, mas sei que existiam. E então ele cá foi divulgando, dentro daquilo que pôde, foi divulgando uma carta. Por isso é uma carta aberta, não é? Depois, já em França, eu soube que ele já em França depois publicou uma outra carta. É ele que me apresenta ao Santos Júnior, aquele que viria a ser o pai do Gil e do Rui. Calma, chegados a Paris, ele levou-me onde tinha que me levar para me arranjar a documentação, para não estar ilegal em França. Saídos daí, ele ia-me levar à CIMAD, eu refiro isso no livro, para me arranjar trabalho. Pelo caminho encontramos o outro… Não, eles encontraram-se, porque eles é que já se conheciam, de algum modo, eu é que não. Ele já era conhecido, porque já tinha estado na CIMAD em anos anteriores, em 60’s e qualquer coisa. E portanto, já tinham sido eles que na altura lhe tinham arranjado trabalho, e ele voltava lá porque ele tinha vindo para o Porto, em 68, quando foi do maio de 68 ele já não estava em França, tinha vindo no início do ano ou coisa que o valha, e depois só voltou em setembro, em setembro, disparate, em janeiro de 70, janeiro, quer dizer, em janeiro já não foi, porque ele ainda foi preso no dia 31 de janeiro no Porto. Portanto, para aí em fevereiro ou março… Portanto, ele ainda não tinha trabalho quando nós nos encontramos em Paris. Então fomos os dois à CIMAD. O outro foi à vida dele e eu fui com aquele camarada. Ele lá me apresentou a quem já o conhecia, explicou a minha situação. Eu precisava de trabalho e, se possível, alojamento. Eles arranjaram as duas coisas logo naquele momento.

Havia uma oferta de trabalho. Deram-me logo um contacto, onde eu me dirigi e fiquei. Pronto, comecei logo no dia seguinte a trabalhar. No dia seguinte, deve ter sido a 2 de maio ou coisa que o valha. Assinamos um contrato por três meses, que era o mínimo exigido por lei para ter autorização para estar em França, e fiquei a trabalhar. Logo no dia seguinte, imediatamente, com um alojamento.

Lá o ensino não seria diferente de cá. Nem eu tinha idade para andar na escola, não é? E o que me interessava era melhorar o francês. Eu, quando fui para França pensava que não era para ficar lá, não é? Era transitório. Enquanto não ia para Argel ou para Cuba ou fosse lá para onde fosse. Como à partida vi que não era nem uma coisa nem outra, ia ficar ali, não sabia por quanto tempo, portanto tinha que tratar da minha vida. E precisava, e gostava. Então se eu já cá, sem nenhuma intenção de alguma vez ir sequer de férias a França, se eu quis aprender francês, não era estando em França que não ia querer aprender mais. Mas havia horas, acho que o limite era às 23 horas, para entrar de novo no local onde trabalhava porque eu estava alojada lá.

J - Os passeios tinham de ter uma hora para acabar.

D - Então, às 11 horas da noite, a porta fechava e eu ficava na rua. 

J – Os teus pais foram lá?

D - Por 15 dias, sim. Foi-lhes oferecida uma viagem à União Soviética. E então, com passagem por Paris, era para onde toda a gente passava, não é? E então aí foi-lhes dada a possibilidade de se encontrarem comigo.

J - Mas já depois de 25 de Abril?

D – Não, quando o rapaz nasceu, em 1973. Quando ficaram a conhecer o meu marido, a minha cunhada e o neto. Andámos a passear por lá, ao Jardim do Luxemburgo e mais não sei onde. Isto quando eles iam ainda a caminho de Moscovo. De Moscovo, ou seja, onde é que foi, na União Soviética. E depois, na vinda, tornaram a passar por Paris e tornámos a encontrar-nos 

J - Ficaram convosco?

D - Claro. Por intermédio do Partido, como não podia deixar de ser.

J - Então entre 70 e 73 ainda conseguiste trocar cartas com eles, apesar de ter sido mais difícil?

D - Continuámos a correspondermos-mos, mas sempre por intermédio do Partido. Até 74.

J - Tinha que ser, não é?

D - Eram essas as normas. E portanto, isto manteve-se, já depois do 25 de Abril, em que eu finalmente tive autorização, eles tiveram autorização, passado algum tempo, alguns meses, não sei quantos, tiveram autorização para me escrever diretamente, e eu para eles, semi-diretamente, porque em vez de ir para a residência dos meus pais, que é aquela onde eu moro, eles já ali viviam naquela casa, mas as cartas para eles iam com a direção da sede do Partido Comunista no Porto, na rua Aníbal Cunha, com o nome que não era o do meu pai.

E aí foi a sede. No Porto, foi na Rua Aníbal Cunha, que é mais ou menos onde se chama a Carvalhosa, perto da maternidade de Porto, do Júlio Dinis, perto da igreja …Aquela Igreja Românica, a Igreja de Cedofeita, nessa rua aí, que é a rua Aníbal Cunha, foi aí a primeira sede do Partido Comunista, passados anos, com as nossas cotizações, contribuições, contribuições extras, é que o Partido depois abriu a outra, fechou aquela e abriu outra…

J - Depois voltaste a pagar cotas ao partido?

D - Sim, em 74 viemos cá e inscrevemos-nos os dois.

J - Mas nessa altura não vinhas para ficar ainda? Disseste que não vinhas

D - Sim, sim. Não, não vinha-para ficar, mas o meu marido, que tinha sido funcionário público, aproveitou as férias. Em agosto, a casa onde ele trabalhava fechava, a minha não. E então, viemos cá em 72, que foi quando eu conheci a Virgínia Moura e muita outra gente. E voltámos em 74. Em 73 não viemos porque o Gil tinha acabado de nascer.

Mas voltámos em 74. E, portanto, em 74, quando viemos em agosto, viemos aqui à rua António Serpa, inscrever-nos para…

J – Militantes, mas o Santos Júnior tinha alguma vez se afastado?

D - Nem tinha afastado, nem deixado de afastar.

J - Tu disseste que ias sair, a um funcionário. Mas ele não se desvinculou nem se…

D - Não, não, nem saiu nem entrou.

J – Porque é que ele foi para Paris então? Não queria ir à guerra?

D - Não, ele não tinha idade para ir para a tropa. Ele era muito mais velho do que eu. Tinha mais 16 anos do que eu. Não, ele foi para Paris a primeira vez porque ele foi preso justamente por denúncia de um funcionário e depois mais um outro e depois ainda um outro que não era funcionário. E, portanto, em virtude dessas denúncias e dele não ter aceite a proposta que lhe foi feita de ir para a clandestinidade. Ora, se propuseram ir para a clandestinidade é porque o consideravam do partido, não é? Não convidavam qualquer pessoa assim. Pronto, portanto, ele era do partido.

J - Então, no fundo, tu é que regressaste. Ele nunca se afastou.

D - Ele foi avisado de que um fulano, um fulano funcionário do partido, tinha sido preso, estava a haver prisões e, portanto, como o conhecia e sabia onde ele trabalhava, foram-lhe propor ir para a clandestinidade. Ele disse que não ia.

J - Ah, por isso é que ele vai a Paris.

D - Não, calma, a coisa não é assim. Portanto, ele não foi para a Clandestinidade, ficou onde estava e a PIDE passados dias foi lá prendê-lo. Quer dizer, não foi ao trabalho, foi a casa onde ele vivia. Primeiro foi ao tribunal, ao Tribunal das Contribuições e Impostos, onde ele trabalhava, foram lá confirmar se era a pessoa que eles estavam fartos de conhecer, só que não relacionavam. E eles foram lá confirmar se aquele fulano era a pessoa que já tinha cadastro. E o fulano, o chefe de serviço, teve que confirmar. Não podia dizer que não, que era mentira. E então, depois chamou o meu marido, e disse, olhe, Santos Júnior, a PIDE veio cá confirmar se você trabalhava e tal, e tal, e eu não pude dizer que não. Com certeza, ó senhor de tal. Agora, de repente, não me lembro do nome do senhor, mas também não é importante.

Aliás, já no outro dia quis-me lembrar-lhe, não sei se me venha a lembrar outra vez. Porque tinha sido com conivência desse senhor que ele se tinha tornado funcionário público já depois de ter estado várias vezes preso. Mas a polícia não relacionava.

J - Ah, pois, porque eles não podiam ser funcionários públicos sem o relatório da PIDE. 

D - Porque ele…A informação que toda a gente tinha, a ideia que as pessoas faziam, não era ele que andava a dizer, as pessoas pensavam que ele que era do Porto. Ora, ele não era do Porto. Ele não nasceu no Porto. Ele foi para o Porto já com sete ou oito anos. E esse senhor, que era o chefe de serviço dele era conhecido do pai dele. 

Não dividiram coisa nenhuma, porque, entretanto, os pais venderam a quinta e morreram. Não houve herdeiros. Portanto, ele estava registado como sendo de Tabuaço, para simplificar a coisa. Mas toda a gente o conhecia e pensava que ele era do Porto. Porque ele foi ainda em criança. Andou na escola no Porto. Fez sempre toda a vida no Porto. Depois que se instalaram no Porto, acho que nem nunca voltou à Quinta. Nem ele, nem as irmãs. Acho que não, também não tenho a certeza absoluta, mas acho que não, porque, entretanto, veio a guerra e os pais ficaram falidos e venderam aquilo. Há uns tipos que agora têm lá um empreendimento turístico, qualquer coisa.

J - E por isso é que ele entrou na função pública?

D - Com boas informações, inclusive do padre que também era amigo do avô, não, do pai era amigo do pai. Do dono da dita quinta.

J - E se calhar por isso é que depois também foi avisado por esse chefe de serviço que a PIDE lá tinha ido, porque ele já tinha um vínculo com ele também pessoal, através do pai. E ele deixou-se apanhar?

D - Sim. Ele deixou-se apanhar, esteve preso seis meses, Foi torturado.

J - Mas ele já tinha a informação que a PIDE lá tinha ido ao serviço, podia ter fugido, não?

D - Mas ele não quis. Fugido para onde? Para se entrar na função pública era obrigatório fazer-se um…assinar-se um documento em que se abominava toda a ideologia, etc. E ele assinou isso quando ele já tinha estado preso várias vezes. E a PIDE nunca se apercebeu que era o mesmo indivíduo. Portanto, ficaram danados porque sentiram que foram enganados. E queriam ver se através dele chegavam a outros.

J - Então ele está lá seis meses, é torturado e depois?

D - E depois acabam por libertá-lo ao fim de seis meses, porque segundo a lei que eles de algum modo às vezes respeitavam, ao fim de seis meses das duas uma ou tinham que o julgar, mas isso implicava que os outros, os que o tinham denunciado, comparecessem no tribunal, não é? E, portanto, acharam que era preferível…

J - Não tinham matéria.

D - Exatamente. Então, puseram-no na rua, pronto, ao fim de seis meses. É claro que ele ficou desempregado, não é?

J - Foi exonerado.

D – E, então, aí, houve camaradas dois, em concreto, que eram advogados, que lhe deram trabalho.

J - Mas ele também era de direito?

D - Não, mas eles conheciam-no, conheciam-no por ser do Partido, já o conheciam antes. Ele andava em manifestações, em concentrações, pelo 31 de janeiro, pelo 5 de outubro.

J - Arranjaram-lhe trabalho, em escritórios seus de advocacia.

D - Em 64, por aí, isto aconteceu. Pronto, até que ele por fim resolveu ir para França. Foi aí que ele foi a primeira vez para a França. E por lá andou, lá arranjou trabalho e, conforme eu te disse, pela tal CIMAD. Andou por aqui, por ali, por acolá. Foi conhecendo vários empregos. Até que, no princípio de 68, volta para Portugal porque ninguém o informou que ia haver o maio de 68 e porque ia haver eleições aqui em 69 para a Assembleia Nacional, não é? Em que se candidatou já o MDP - CDE. Houve o PS, que era a CEUD, o PS ainda não existia oficialmente. Mas existiam. E então ele veio para cá e, durante a campanha eleitoral, andou a angariar fundos, do norte mais ou menos até ao centro do país, andou a angariar fundos para a campanha da CDE. Deu-se as eleições, entretanto tinha havido o maio de 68, houve a invasão da Checoslováquia, aquela coisa toda. E ele resolve partir outra vez para França. Mas, antes, voltou a ser preso, no dia 31 de janeiro, numa manifestação no Porto. Voltou a ser preso, partiram-lhe a cabeça, foi ao hospital receber tratamento.

E depois, no seguimento daquilo, não sei se Abril, não sei quando, voltou novamente para França. Sempre a salto, porque é claro, não tinha hipótese de lhe darem passaporte. Portanto, tinha que ir a salto. E foi assim que nos conhecemos.

J - Tu não foste a salto?

D - Claro que fui. Como é que eu havia de ir?

J - Com o teu documento da Deolinda. os teus documentos falsos?

D – Não, não, foi o Silva Marques. Assim como ele teve de pagar a um passador para ir para a França, pagou para eu ir também. Então, no meu caso, deve ter sido idêntico ao dele. Não sei como é que ele teve conhecimento. Provavelmente ele já tinha ido, lembras-te que ele já tinha ido a…

J - A Moscovo e tudo.

D – À União Soviética. Moscou ou não Moscou, não interessa, provavelmente ele serviu-se das mesmas pessoas, não sei. E, portanto, foi para a França, não é? Pagando. 

J - Sim. Mas como é que foi a viagem? Foi como?

D - Depois que falei com o controleiro dos meus pais, nem desfiz as malas, porque não valia a pena, fui procurar um dos comerciantes que o Silva Marques me tinha indicado, na Mealhada. Pronto, ele recebeu-me. Fiquei lá uns dias, uma semana, duas, não sei. Não me lembro. E, entretanto, o irmão dele, do Silva Marques foi-me buscar.

J - De carro?

D - E levou-me para casa dele. Tinham uma criada. Despediram a criada e eu fiquei lá como sendo a criada. Em Leria. Ele era de lá. Ele e os irmãos. De lá, quer dizer, do distrito. Portanto, eles viviam em Leiria. E foi para lá que eu fui. Até que trataram da minha viagem para França. Foi ele que me levou, ele o irmão, claro. Levou-me até ao passador. Portanto, lá está, deve ter sido a mesma pessoa com quem ele já tinha ido. Levou-me, passei lá uma noite. No dia seguinte de manhã, peguei num saquito. Ele ficou com a minha mala, com aquilo que eu ainda tinha. Já não eram as duas malas grandes, de certeza. Devia ser só uma, já não me lembro. Mas ainda era alguma coisa, porque…E então…ele levou-me até ao passador. No dia seguinte, de madrugada, deve ter sido, pegou na mulher e nos filhos, que eram pequenitos ainda, e atravessou a fronteira, legalmente, claro. Só era preciso ele, porque ele era casado e tinha duas crianças, portanto só ele é que precisava de se identificar. Portanto, ele atravessou a fronteira, E eu fui com a mulher do passador, a passadora, atravessei a pé.

J - Onde foi?

D - Em Rio de Onor. É? É, não é?

J - Então ele foi de Leiria levar-te a Rio de Onor?

D - Sim, mais ou menos. Não sei exatamente onde é que foi, mas pronto. Levou-me a casa do passador, pronto. Lá onde era exatamente a casa, não sei. E pronto, no dia seguinte de manhã a senhora foi-me chamar.

J - Então vocês foram a pé à noite?

D - Não, de manhã cedo.

J - Eram agricultores?

D - Pois, exatamente. Entretanto, apareceu um carabineiro, perguntou onde é que a gente ia. É claro que eles já se conheciam. É a gente dali. E até o carabineiro devia saber perfeitamente que eles eram passadores. Não era por isso que eram presos. Era um negócio, não é? Que se calhar até era compartilhado com os carabineiros, sei lá eu.

J - Uma viagem a pé de quanto tempo? Tens ideia? Uma hora?

D - Não, não foi tanto. Eles deviam morar ali mesmo, perto da fronteira. Da fronteira que não existia, não é?

É terreno, é campos e de forma que pronto o fulano viu-nos às duas, eu com um saquito pequeno onde eu levava sei lá uma muda de roupa ou mais qualquer coisa e de forma ela disse: ah vamos ali às compras e tal”, “ah vão lá”, é que eu não sei o nome do sítio, da estação de comboio. Havia uma estação de comboio ali na fronteira, só que ao invés de irmos por ela, fui pelo campo. mais metro, menos metro, estava lá o carro à minha espera.

J - Do irmão.

D - E então entrei no carro, seguimos viagem, lá me despedi da senhora, não é? Seguindo de carro com eles, já de noite, atravessámos a fronteira com a França e ninguém me perguntou nada, eu ia atrás com as crianças, eu passei por ser a criada da família. À frente ia o casal, ele identificou-se, tinha o passaporte, que era obrigatório. Ela provavelmente nem passaporte tinha, ou então estava no mesmo passaporte que ele, que era o comum. As crianças eram as crianças e a criada era a criada. Pronto, ninguém perguntou nada

Não, não fomos até Paris. Ficámos num sítio qualquer, que eu não me recordo se era Baiona Não sei, ali para aqueles lados. Pouco depois da fronteira. Estava lá o Silva Marques à nossa espera. Eu fiquei com ela, com quem era a minha cunhada, de alguma maneira, e com as duas crianças. Eles ficaram os dois a conversar. Não ouvimos a conversa entre eles os dois. E depois eles, provavelmente, voltaram para casa. Não sei se ficaram ainda ali ou não ou se voltaram logo para casa. Provavelmente ficaram por lá para descansar e para deixar as crianças também descansar, de algum modo. Eles deviam ter saído de casa de madrugada para ao princípio da manhã me apanharem ali, tiveram de fazer a viagem de madrugada. Portanto, também tinha ficado por lá para descansar e eu segui a viagem com ele.

J - De carro?

D - Não, fomos de comboio. Para Paris. e a partir daí eu, tu já sabes. Nada disto, eu conto no livro porque eu quis centrar para já, conforme tu sabes e eu digo na introdução, a ideia inicial era escrever a história só para o Gil e para o Rui, não era para mais ninguém. Em segundo lugar, quando eu comecei a pensar, e o próprio Rui a incentivar-me, escreve, faz, foi então quando eu comecei a prolongar a coisa e, portanto, a minha ideia foi, conforme diz o título, descrever o que era uma vida na clandestinidade. Uma das muitas que houve

J - Sim, mas esta parte também tem a ver com a clandestinidade.

D - Sim, tem, mas pronto, eu conto aquilo que julgo ser essencial, sem incriminar ninguém, quer dizer, embora não houvesse já a Pide, mas não ia agora contar às pessoas, contactá-las para perguntar, posso pôr o vosso nome?. Pronto, eu conto aquilo que eu entendi que é essencial para a história. 

Passados poucos meses, ele recebe o cartão, eu não. Devia estar ainda em estudo, se mo davam ou não. Mas, atendendo a que os meus pais eram funcionários, acharam por bem que, para não criarem problemas, acabaram por me entregar também o cartão. Mas eu só o recebi meses depois dele. Era assim, será que me vão dar o cartão ou não?

J - Então como é que é a tua militância, no princípio, a partir daí?

D - Nada de especial, porque, entretanto, tinha o Gil, que ainda era muito pequenino e, portanto, eu não podia. O que eu tratei, em primeiro lugar, foi de fazer a quarta classe. E a ideia era arranjar trabalho, e para isso era preciso a 4ª classe, no mínimo. Mas eu queria estudar, já que não tinha podido estudar antes, queria estudar. Portanto, fiz a 4ª classe, o exame da 4ª classe. Inscrevi-me no 1º e 2º ano do ciclo. Mas, no segundo ano de ciclo, fiquei grávida do Rui. O Rui nasce. Na altura em que ele nasceu, estávamos nas férias da Páscoa Pronto, eu acabei aquele ano. Reprovei a duas disciplinas, mas podia continuar. reprovei a matemática, que eu não gostava nada do professor. E não sei, é uma outra disciplina. Eu acho que era física ou química, que eu não era especialista em nenhuma, que ainda me deu o 10, que era o mínimo, para transitar de ano. Bom, seja como for, eu podia ter continuado, mas claro que não tinha condições, porque tinha que tratar da casa, mas aquele ano eu concluí. O sétimo ano eu fiz. Mas era para arranjar trabalho. Simplesmente, além de estar grávida, havia o problema dos retornados. E, portanto, disseram logo que…não havia hipótese, porque a ideia do meu marido era eu arranjar também para a função pública. E tu lembras-te do Armando Bacelar? Diz-te alguma coisa? Pronto, o Armando Bacelar era advogado, foi do Partido Comunista e nos anos não sei de quantos, se calhar nos 40 e tais, ou 50 ou qualquer coisa, deixou de ser, mas era um democrático. E era conhecido do Joaquim porque era, acho eu, do Porto. Já te disse, ele conhecia montes de gente, quer pelo trabalho que ele fazia, quer da atividade política. Andava pelos cafés todos que havia no Porto e mais pela UNICEP e mais o Cineclube. Portanto, ele conhecia montes de gente, era conhecido por montes de gente. E, portanto, uma vez, quando estávamos ainda em Paris, mas já depois do 25 de Abril, ele encontrou (eu não o conhecia a não ser de nome, ele ia encontrando vários portugueses lá), e um dia, encontrou o Armando Bacelar. E ele convidou-nos a ir até ao café, até a casa dele. Também conheci lá o Mário, o Mário Cal Brandão que depois de 25 de abril chegou a ser governador civil do Porto. Que era também uma família de… Ele, o Mário Cal Brandão e o Carlos Cal Brandão. E o Armando Bacelar disse-me para concluir a quarta classe que haveria muita necessidade na função pública em Portugal.

Só que entretanto, dá-se o 25 de novembro. Ele deixa de fazer parte do governo, evidentemente. Eu faço, a 4ª classe sim senhor, só que, como já te disse, com a mudança de governo. Depois… era aquela amálgama toda que houve, já com o CDS, PSD e aquela gente toda. E com os retornados? Pronto, disseram, olha, não há hipótese.

J - Estive a ler um livro1 agora sobre isso, acho que foram 45 mil, os retornados que eram funcionários do Estado nas colónias e que foram reintegrados cá.

D - Não tive hipótese e pronto, acabei por desistir de procurar trabalho, porque depois também não havia onde pôr o Rui, quase que não havia creches. Era preciso eu arranjar trabalho e que com o que eu ganhasse desse, no mínimo, para pagar a creche. Portanto, acabei por desistir. Não estudei mais, não trabalhei, quer dizer, não arranjei emprego.

J - Nunca mais voltaste, então, à escola?

D - Não, depois andei na escola, mas isso já foi depois do marido ter morrido, andei numa academia sénior em Gaia. Pronto, só por andar, para ver se aprendia um pouco de inglês, ver se não esquecia o francês, já não era para aperfeiçoar, mas para não esquecer.

J - E então, a vossa militância? Essa tua militância, como é que se dá? Ficaste com pena de deixar Paris? Sentiste que ficou lá alguma coisa?

D - Não. Nem tenho pena, nem deixo de ter pena.

J - Ficaste contente em voltar?

D - Sim, então se eu não quisesse vir, não vinha. Já não era assim tanto porque, de alguma maneira, estava casada e tinha uma criança. Se ele vinha para Portugal e tinha todo o direito de vir, não se justificava que não viesse.

J - E tinhas cá os teus pais, não é?

D - Nunca imaginei, nem nunca me pus a pensar se alguma vez voltava ou não voltava.

J - Não sentiste perda?

D - Eu não tinha qualquer perspectiva do tempo que iria ficar em França. Se era para o resto da vida, se era temporário. Ninguém sabia, ninguém previa que ia haver um 25 de Abril e quando é que isso ocorreria.

Ninguém tinha noção de coisa nenhuma, não é? Portanto, da mesma maneira que nós andávamos na clandestinidade sem saber quando é que seria o fim, se ainda morríamos antes, ou se sobreviveríamos, o mesmo se passou em França. Portanto, não havia perspetiva nenhuma. Era viver o dia-a-dia. Portanto, na medida em que o homem com quem eu, entretanto, me casei e de quem tive um filho, ambicionava e tinha todo o direito de voltar, tinha toda a lógica em acompanhá-lo. E, portanto, vim. 

J - Estavas a trabalhar onde, quando te despediste lá em França?

D - Eu estava a trabalhar perto da Praça da República, numa casa estilo La Redoute.

J - Vendiam roupas pelo correio, não é?

D - Exatamente. Uma casa dessas, pequeníssima. Éramos à volta de umas 100 empregados.

J -Pequeníssima, quer dizer, em Portugal é uma média empresa.

D - Eu trabalhei aí até me vir embora. E foram os patrões dele, os gerentes, os responsáveis por aquilo, que nos emprestaram o dinheiro que foi estritamente necessário para comprarmos aquilo para que não tínhamos dinheiro. E depois ficaram a descontar. Um tanto todos os meses. Entretanto, deu-se o 25 de abril e não tínhamos acabado de pagar. Então, tivemos que acabar de pagar aqui. E pagar o transporte das coisas para cá, mais a minha viagem de comboio, com o Gil. E fomos ali para casa dos meus pais. Era temporária e ficou até hoje.

J - Não sei se fiquei com essa ideia ou não, que essa casa onde tu vives ainda hoje, já vives há uma série de anos, que era uma casa dos teus pais, mas foi uma casa que eles tiveram ainda na clandestinidade.

D - Foram para lá em 70. Deve ter sido na mesma altura em que eu fui para a França. Eles tiveram que deixar a casa onde eu me despedi deles. e devem ter alugado aquela. Eles foram para ali e ficaram ali até à democracia. 

J - Então, como é que a casa onde eles estavam a viver, depois quando chega a democracia eles mantêm-se lá? Porque já era a casa onde viviam.

D - Com nome falso, mas pronto.

J - Eles saem da clandestinidade? Recuperam a sua identidade?

D — Eles não saem da clandestinidade. O Partido é que sai da clandestinidade ehehehe

Durante anos a casa continuou. Até que nós fomos impelidos a comprá-la, nessa altura já fui eu e o meu marido, ou foi o meu marido, porque era ele o chefe de família para todos os efeitos, como se costuma dizer. Portanto, só aí é que… É que o contrato foi feito connosco. Porque quando foi do 25 de Abril, é que os vizinhos ficaram a saber que o nome do meu pai não era o nome verdadeiro. E já não sei se foi imediatamente ou não, o meu pai disse ao senhorio que afinal de contas, o nome dele não era este. Não interessa, desde que lhe pagasse a renda de casa era o que interessava.

E então, até que nós fizemos a escritura da casa, a casa estava no nome falso do meu pai. Por acaso, já não foi ao senhorio, foi a um dos filhos do senhorio

J - E o teu pai ficou funcionário?

D - Sim, os meus pais ficaram. Até morrerem.

J - Eram os dois funcionários? Ali em Gaia?

D - Foram sempre. Não é ali em Gaia, foram sempre, até que morreram.

J - Não é isso. Quando é que eles vão para Arruda?

D - Foram para a Arruda em 91. 

J - Porque tinham ainda laços de família ou foram por questões do Partido?

D - Nem uma coisa nem outra, por desinteligências familiares. 

Quer dizer, a minha mãe já não fazia nada. A minha mãe já estava reformada por problemas de saúde. Não é que fosse velha, mas naquela altura a minha mãe já não era nova e tinha problemas de saúde. Teve mesmo que se reformar.

J - Para aquela casa que eu conheci.

D - Exatamente. O meu pai ainda trabalhava como carpinteiro. Depois do 25 de Abril foi sempre como carpinteiro. Aliás, antes do 25 de Abril, eu já te disse, ele ia trabalhando em várias oficinas. A partir do momento em que se abriu uma sede do Partido Comunista, ele passou a trabalhar na sede como carpinteiro. E foi sempre carpinteiro.

J - Mas eles ainda tiveram uma vida partidária lá na Arruda?

D - Sim, sim. Era mais ou menos o meu pai, porque também já tinha bastante idade, não é? Já não tinha idade para andar à procura de trabalho. Em 91, o meu pai tinha 72.  E o meu pai, nós não sabíamos, mas o meu pai já estaria com o início de Alzheimer. Nós é que nem sabíamos da existência da doença. E de forma que já havia um mal-estar. E foi isso que levou que eles viessem para a Arruda. Porque a minha mãe era dali da zona. Tinha uma irmã que morava na rua onde eles alugaram uma casa. Aquela casa que tu viste. A irmã mais nova morava nessa mesma rua. O irmão também morava perto. Uma outra irmã morava em Sacavém. O irmão morava ainda na casa onde fomos algumas vezes no verão passar as férias, na aldeia onde a minha mãe nasceu. Que pertence à Arruda dos Vinhos. E, portanto, eles resolveram vir para ali até que morreram. Primeiro um, depois o outro. O meu pai morreu em 1999 e a minha mãe em 2000. Mas foram, até ao final, funcionários do Partido.

J - Tens quase 30 anos e vens ver o teu país num regime que nunca tinha existido, a democracia.

D - Exato. E quais foram as mudanças que eu encontrei?

J - Sim, ou o que é que desses anos e desses anos até agora, o que mais te surpreendeu, ou não estavas a contar, ou as coisas que te fizeram mais feliz, ou menos, o balanço. No fundo tinhas lutado desde tenra idade, para uma mudança de regime e ele estava aí.

D - Tirando o ir fazer a 4ª classe, o 5º e o 6º ano, depois ainda o 7º. Praticamente não fazia mais nada, era o trabalho de casa. Pronto, houve o 25 de novembro, mas que eu só tive conhecimento através daquilo que o meu pai e o meu marido diziam, quando estavam em casa, não é? Não ia para isso com uma criança de dois anos. E, portanto, não tive conhecimento direto. Olha, houve um vizinho que foi morto. Segundo o que foi noticiado, parece que à porta ou nas imediações da CGTP no Porto, no 25 de novembro. Foi morto pela polícia.

Em relação, por exemplo, aos vizinhos. Os vizinhos, quando tiveram conhecimento, que os meus pais eram do Partido Comunista, claro que foi uma surpresa. Não reagiram muito bem.

Logicamente E então… Foi-se gerindo e eles foram se habituando à ideia que remédio tiveram, não é? Porque, entretanto, durante quatro anos, desde que os meus pais foram para ali, até ao 25 de Abril, o meu pai foi fazendo… Aquela casa tinha duas varandas, uma para a frente, que persiste, e a outra para trás, que era uma varanda aberta, que é muito ventosa, completamente desabrigada, não tinha nada por cima, e era ali que a minha mãe, a casa tinha, como todas as casas em geral, tinham um tanque para lavar a roupa. E, naturalmente, no inverno, lavar a roupa à chuva e para estender a roupa, para enxugar. Então, o meu pai… muito toscamente, mas fez uma marquise. Fechou aquilo com madeira velha. Não totalmente fechada, mas ficou uma espécie de marquise.

Entretanto, a minha mãe tinha comprado, tinham comprado uma máquina de lavar. Logo assim que a gente veio, porque além da roupa deles, havia depois a nossa, e havia o Gil, ainda com fraldas e aquela coisa toda. Portanto, os meus pais compraram uma máquina de lavar. Só que na cozinha não havia espaço para a máquina de lavar. Então pôs-se nessa dita marquise, na parte mais protegida. Mas na medida em que aquilo teve que ser desmanchado, teve que fazer então uma outra em alumínio com uma cobertura em plástico. E aquilo durou uns anos largos, até que o plástico também se foi, algumas vezes com o granizo mais forte, com bolas maiores, também foi fazendo buracos. O marido da minha vizinha ainda chegou a dar-nos um bocado ou dois bocados desse ondulado.

Antes do 25 de Abril todos se davam muito bem, mas como foi o homem que morava por baixo deles que foi morto, conforme eu te disse, no 25 de Novembro, o tipo de cima, sabendo que o homem era mais ou menos comunista (comunista se calhar até nem era, era sindicalista), seria socialista ou nem isso, era trabalhador. E o fulano de cima, que entretanto era do CDS, começou a infernizar a vida da viúva, que ficou com uma miúda com dois ou três anos na altura. Mataram-lhe o marido, ela trabalhava, é certo, mas também não era o suficiente. E a casa era alugada, todos nós vivíamos em casas alugadas

Denunciaram a debaixo, porque tinha feito um anexo nas traseiras da casa, sem autorização, que era o que toda a gente fazia. E o meu pai fez isso a vários vizinhos, sem levar dinheiro. Eles compravam o material, pagavam o material e o meu pai fazia. E, portanto, s meus pai era o suprassumo. Quando ficaram a saber que éramos do Partido Comunista, pronto, começaram a tentar chatear-nos. 

Depois fomos várias vezes à Câmara e tal, aos serviços da Câmara, que nem sequer era na Câmara, era na beira rio. Fui eu, fui com o arquiteto, fui mais um engenheiro. Até que finalmente lá consegui fazer aquilo. Gastei dinheiro, é claro. Mas vi-me livre daquela gente. Destruí o que estava feito em alumínio para fazer em alumínio. Com uma cobertura a imitar a telha, sem ser em telha, mas a imitar a telha. Tem um nome qualquer que eu já não me lembro. Os bons vizinhos são assim.

J - Isto vem a propósito de eu te pedir o balanço sobre a democracia. Já fizeste um balanço das repercussões a seguir.

D - Por exemplo, o vizinho de cima. O que é que eu fazia? Olha, quando havia, por exemplo, campanhas eleitorais, ia vender, montavam-se, mesmo em frente à Câmara, montavam-se lá umas mesas a vender crachás e outras coisas mais. E eu ia para lá, como iam outras, fazíamos bolos e outras coisas.

O meu marido só ia a reuniões no Porto, na rua do Almada, do Sindicato, havia lá não sei se era uma sede…

J - Do setor profissional dele.

D - Exatamente. Dos técnicos do Estado. Portanto, com gente que não era do Partido, havia quem fosse da UDP, de outros partidos assim, de esquerda. Eram sindicalistas que se reuniam para discutir qualquer assunto. Mas ele depois desistiu de ir, porque disse que aquilo não adiantava nada.

Íamos a manifestações, para isto ou para aquilo. Ele andou quando foi do 25 de novembro. Quando foi do 1º de maio em que mataram dois, já em 82, que mataram lá dois homens, feridos que houve e tudo mais. O meu pai ainda levou uma cacetada na cabeça, assim de raspão. E se eu falo ali, no livro, o meu marido não lhe aconteceu nada, a mim também não, porque me refugiei lá num prédio, mas o meu pai ainda levou de raspão e eu vi um fulano, estávamos ao fundo, as camionetas partiam do fundo da escadaria da estação de São Bento. E eu estava, já era pela meia-noite, estava à espera de uma camionete para ir para casa, sem saber nem do pai nem do marido, cada um para o seu canto. E vejo chegar a polícia e começar a desancar num homem que estava ali à espera de camionete também. Não sei, eles deviam ter vindo atrás dele ou não sei o que foi, porque entre tanta gente que estava ali, eles só se viraram ao homem.

Porque o que deu origem a isso foi haver uma manifestação da CGTP e outra da UGT, não é? E então, eu ainda estava na parte de cima, junto à Câmara, e havia pessoas que andavam por lá, avenida abaixo, avenida acima, e havia pessoas que estavam sentadas na relva. E eu não sei se era o mesmo homem ou se era outro. Eu vejo vir um polícia a correr e bater num homem que estava sentado na relva. Pois não sei se teria sido esse mesmo que depois levou adiante, ou se não foi, não sei. Pareciam…

E pronto, portanto, foi essa a experiência que eu fui tendo.

J - Então, se não tens uma militância muito ativa, tirando as reuniões do MDM e algumas participações porque é que sais então?

D - Porque, entretanto, em Oliveira do Douro, falam sempre de ir abrindo mini sedes para o país fora. Mas eu fui para lá, ainda não tinham. Em 75, ainda não tinham sede. O Partido reunia-se, quer dizer, abria-se às pessoas. Era para os militantes e para os residentes, numa escola, Eu fui aí uma vez ou duas, já não sei, mas sei que fui. E depois, entretanto, abriram uma sede, onde eu passei a ir regulamente. Houve umas eleições autárquicas. As primeiras eleições que houve para a Assembleia Constituinte, eu e o Joaquim não pudemos… Já estávamos cá, mas não pudemos votar. Antes de virmos, após o 25 de abril, fomos ao consulado em Paris e inscrevemo-nos para votarmos cá. Já sabíamos que vínhamos, não é? Só que quando quisemos ir votar, não pudemos votar.

Fiz parte da comissão de freguesia, do PCP até que em 91 saí.

J - Então, saíste em 91, naquela leva…

D - Exatamente.

J -O Barros Moura?

D - Sim, essa gente toda. Muitos que saíram.

J - O Pina Moura.

D - Talvez, os nomes já não me recordo. E então saímos os dois.

J - Mas qual era o motivo? A queda da União Soviética?

D - Quando foi o golpe de Estado em que ficou Yeltsin, saiu o Gorbachev, estávamos nós aqui em Oeiras de férias. E já nessa altura houve aqui uma reunião da malta do Partido que se insurgiu contra o apoio do PCP e nós quisemos ir, mas depois já não sei porquê não fomos. Depois chegámos a ir, ainda uma coisa do, já são tantos anos que já me esqueço. Fomos ver uma vez uma coisa, acho que com o Barros Moura, em Coimbra. Pronto, andámos assim. Tinha uma sigla que eu já me acordo qual era. e acima de tudo, o que fizemos foi subscrever um abaixo assinado, em que se reclamava que o Partido readmitisse os militantes que, entretanto, tinha expulso. E que caso o partido não os readmitisse, nós nos considerávamos também igualmente expulsos. E foi o que aconteceu.

Claro que não tivemos resposta. É claro que houve quem desse o dito por não dito, porque assinou, subscreveu a carta e depois continuou. Porque lá viu algum interesse nisso. Não foi por convicções, é daqueles que procuram aproveitar as oportunidades, mas nós saímos e acabou. A partir daí eu vou onde entendo que vou e normalmente não vou aos comícios, mas não faço discriminação. Quando entendo que devo ir, vou, e quando entendo que não devo, não vou, porque não me apetece, ou que eu entendo mesmo que não devo de ir. O ano passado fomos à festa do Avante, se não estou em erro. Claro, a festa do Avante está aberta a toda a gente. Ninguém nos pede o cartão. Já lá não ia há 20 anos. A última vez que tinha ido lá tinha sido com o Rui justamente e com a minha cunhada. Acho que ela nunca lá tinha ido.

Fomos os três em 2001, no ano em que o meu marido morreu. É aí que um conhecido dele, o que nos tinha ajudado a localizar o meu avô, quando cá viemos em 72, e que, encontramos no barco de vinda. Depois, é claro, mesmo dentro do Comité Central, havia muitos que não tinham conhecimento do que se passava. Casos como o meu, por exemplo. Porque, por exemplo, quando nós fomos em 2001, portanto, nós já tínhamos saído do Partido em 91. E, em 2001, voltámos à noite, viemos embora. Mas era preciso vir até ao barco.

E, entretanto, encontramos lá, por um acaso, um dos camaradas que tinham frequentado a minha casa ainda em Alverca, quando eu tinha seis anos. Entretanto, a minha mãe tinha morrido, e como ela morreu aqui em Lisboa, tinha sido um dos camaradas que a tinha visitado no IPO, onde ela morreu. E então, não houve muitos, mas houve dois ou três que a visitaram, e ele foi um deles e até lhe levou um dia, nem ela leu, nem eu ainda li o livro que ele ofereceu à minha mãe, As Calças Roladas, assim qualquer coisa de um escritor, já não sei se é cabo-verdiano, se é angolano, Germano de Almeida, se não estou em erro, Ele ofereceu-lhe o livro, mas a minha mãe já não estava em condições de ler, e eu também não li ainda. E então, pronto, encontramos-nos ocasionalmente. Reconhecemos-nos, trouxe-nos até ao barco, até Cacilhas. Em Cacilhas apanhámos o barco e às tantas aparece o tal que nos tinha ajudado a encontrar o meu avô. E começámos a conversar. E ele, às tantas, afastou-me um bocado do Rui e da minha cunhada e perguntou: É verdade que o Santos Júnior é do PPD, se passou para o Cavaco? E eu digo assim, quem é que disse? Mas eu já conhecia a história, porque já tinha havido um fulano que tinha encontrado o meu marido com o Público debaixo do braço e perguntado se ele comprava jornais reacionários. Também já não me lembro do nome dele, que também para o caso tanto faz. Um imbecil qualquer E, então, ele disse… Ah, e tal, não sei, ou ouvi, ou disseram, ou já não sei o quê. Eu digo assim: não, não é verdade, claro que não. E o amigo: era uma coisa que, pronto, eu conheci bem o Santos Júnior, éramos amigos e tal, custou-me a acreditar, mas eu quis saber se realmente… Eu disse “não, de maneira nenhuma”.

J - Os boatos que põem a circular.

D - De forma que… atrás de umas coisas vêm outras. Como no ano passado. Descerraram, junto à Câmara Municipal do Porto, uma lápide. Não sei se se chama uma lápide. Uma placa toponímica, ao lado de uma que já estava antiga, tinha havido uma outra mais antiga e que tinha sido retirada e substituída. Uma placa com o nome de uma antiga rua, que tinha o nome de Cancela Velha, é conhecido pela gente do Porto com esse nome, e que, após o 25 de Abril, lhe deram o nome de Guilherme da Costa Carvalho. Não sei por que motivo puseram ali, uma rua minúscula, que passa despercebida, mas pronto. E eu recordo-me, nunca tirei nenhuma fotografia, mas eu recordo-me que na placa com o nome dele tinha qualquer coisa escrito, que de algum modo identificava, não sei se com o Partido Comunista, não sei com o quê, não sei se com o Tarrafal, não sei o quê. Mas dava uma ideia de quem tinha sido aquela pessoa que, entretanto, tinha morrido em 73. Ora bem, passaram uns anos, acho que foi o Rui Rio que fez uma remodelação das placas e essa indicação desapareceu ficou só lá o nome. E eu, entretanto, tinha conhecido uns anos antes a filha, e até tinha falado nisso. Falei assim, olha, passa-se isto assim, assim. Acho que ela tinha ideia disso, porque é claro, ela já há muitos anos que está cá em Lisboa.

E eu contei este episódio. E então, o ano passado, ela diz-me, olha Domicília, a câmara vai pôr uma placa, junto à que está existente, a dizer…

J - Resistente antifascista?

D - E eu, naquele dia, naquela hora que ela me informou, apresentei-me. Juntou-se ali, sei lá, vinte, trinta pessoas, talvez, e às tantas aparece uma fulana que eu conheci no Porto. Ela não é de lá, mas quando foi do 25 de Abril acho que estavam lá, a viver no Porto. E eu conhecia, através dos meus pais, porque ela chegou a trabalhar com a minha mãe nessa tal primeira sede em Aníbal Cunha. E quando o Gil fez, talvez três anos, já não estou bem certa, mas talvez 3 ou 4 anos, nós convidámo-la, ou convidámos as filhas, ela tinha 3 miúdas, pequenas ainda, mas nascidas ainda na clandestinidade, e nós convidámo-las a ir ao aniversário do Gil. E as miúdas estiveram lá e tudo mais. Entretanto, ela depois também veio para a margem sul, ela, o marido e as filhas. E depois vemos-nos uma vez na festa do Avante, já há muitos anos. E acho que ainda tenho o contacto dela Bom, o que é que acontece? Acontece que o ano passado, quando fomos a essa cerimónia do descerrar da lápide, estava lá a família, estava a filha. não sei se o filho também estava nisso, não me recordo, provavelmente estaria, mas estava a filha, estavam os netos, estava uma das netas quase a ter criança, nasceu depois, isto foi no início de Abril, e a criança nasceu no dia 26 de Abril. Portanto, passados uns 15 dias, ou coisa que o valha, da homenagem, nasceu a bebé… estava lá a família e depois estava… A Ilda Figueiredo, que tu conheces com certeza de nome, quanto mais não seja, falou em representação da Câmara Municipal, porque ela é vereadora, falou um outro qualquer, que eu não me recordo, em nome do Partido Comunista, e pronto, eu estava lá, porque tinha sido avisada pela filha, pronto, E aparece-me aquela fulana, a tal, cujas filhas foram lá à casa, pelos anos, e olhou para mim: “estás aqui?” Como que a dizer… 

J - Estás aqui a homenagear uma pessoa do PCP, era isso?

D - Eu penso assim, esta tipa é imbecil. Não sei se lhe disse alguma coisa. Nem sei se lhe respondi. Sinceramente, não me lembro.

J - Ao teres passado as tuas memórias para a escrita, é porque tens noção de que é uma experiência que importa deixar registada e que conta para as gerações futuras, para a nossa história, portanto terás orgulho, sentes orgulho.

D - O motivo porque escrevi o livro, conforme também digo aí, foi porque eu fui incentivada primeiro na ideia, pela São José Almeida.

J - Ah, eu lembro-me disso. Numa entrevista que ela fez, não foi?

D - Exatamente. Ela fez uma entrevista que publicou2.

J - Eu li. Ela entrevistou algumas pessoas.

D – Entrevistou-me três vezes, foi publicada. E foi ela que foi insistindo quando o Jorge Araújo, eu falo no livro só não digo o nome, foi o Jorge Araújo foi quem me telefonou a convidar para eu escrever a história dos meus pais. E eu disse-lhe que não conhecia, quer dizer, não sabia muitos pormenores, quer dizer, havia muita coisa dos meus pais que eu não tinha conhecimento. Eu não sabia lá quando é que o meu pai se tinha inscrito no partido ou inscrito, porque não havia inscrições, quando é que se tinha tornado militante, como era, pronto. Expliquei, ah, e tal, mais frito, mais cozido, e isto, posteriormente aos artigos da São José. Portanto, houve alguém, ele disse-me, não sei se é verdade ou se mentira, que quando saíram os artigos ele não estaria em Portugal e que foi, passado um mês ou dois, foi que ele me telefonou. Lá arranjou um contato não sei como, se foi mesmo à lista telefónica, vinha lá o nome.  E, portanto, o fulano disse que não me tinha telefonado há mais tempo, mas que alguém tinha falado daquela entrevista e tal, e então se eu escrevia a história dos meus pais. E eu disse, mas os meus pais já morreram e há muita coisa que eu não sei. E, portanto, provavelmente não tenho matéria para escrever a história deles. Acima de tudo, era isso. Por outro lado, também nunca tinha escrito nenhum livro, quer dizer, não se escreve assim um livro do pé para a mão. E diz ele, ah, e tal, mas isso não interessa e tal, a gente trata disso, a gente escreve. Ah, a gente escreve, era só o que me faltava.

E então, quando eu achei que não sabia mais do que aquilo telefonei-lhe e disse-lhe que está escrito e tal. Está bem, então venha cá. Lá levei aquilo. Mas, entretanto, eu tinha telefonado à São José Almeida e tinha lhe dito, olha, passa-se isto assim e assim. No caso do livro vir a ser publicado eu quero lhe pedir que me faça o favor de escrever um prefácio. Não, mas faço questão disso, porque se não fosse a sua entrevista, nunca ninguém me tinha telefonado a pedir para escrever. Ela disse está bem, vou pensar. E depois ela escreveu.

Voltámos-nos a encontrar. Ela deu-me a ver o que tinha escrito. Eu ri interiormente, porque estavam lá aqueles dois parágrafos. Que não agradou a sua Excelência. Mas eu não lhe disse nada. Era a opinião dela, era o que ela achava. Tudo bem. Vai assim. Se aceitar, aceitou. Se não aceitar, não aceitou. É claro que quando eu fui lá para saber se ele editava ou não editava o livro conforme eu tinha escrito, eu levei-lhe o prefácio. E ele torceu de nariz. E diz ah, e tal. Este parágrafo assim, aquele parágrafo assado. E eu disse, olha, é assim, eu vou lhe perguntar. Se ela concordar, tudo bem. Porque eu duvido. Mas se ela não concordar, não há livro. E pegando aquilo, levei outra vez comigo. Cheguei a casa, telefonei à São José outra vez. Eu disse, olha, não há livro. Ah, então como? Porque ele diz isto assim, assim. E diz ela assim. Ele que não altera nenhuma vírgula. Eu disse, não altera não. Ah, mas é uma pena e tal. Olha, não ponham o prefácio. Eu digo assim, ai ponho, ponho. 

E então diz ela assim, pronto, uma vez que já não vai publicar agora, não se limite aos seus pais. Escreva a sua história. Porque é uma coisa que ainda ninguém fez. E foi então que eu comecei a pensar, a rebuscar nas minhas memórias, naquilo que eu vinha escrevendo, porque eu tinha começado a escrever em cadernos, que eu cheguei a falar nisso aos meus pais, mas o meu pai já não estava em condições, mas disse que sim, sem alcançar provavelmente aquilo que eu estava a dizer, mas ele disse que sim, a minha mãe também, sim senhor, achava bem que eu escrevesse, só que entretanto, pronto, eles foram piorando, um e outro, morreram, ambos, esta história já foi depois de eles terem morrido, não é? Por isso é que ele queria que eu escrevesse sobre a história dos meus pais, mas eu não tinha em que me basear, a não ser na minha, naquilo que eu me lembrava de ter ouvido.

Porque a minha ideia ao escrever aquilo, que era para o Gil e para o Rui, não era para mais ninguém, não era para publicar, era para lhes deixar ficar, era a minha herança. Que era a minha e dos meus pais. Era para eles saberem quem eram os avós, quem tinham sido os avós, os bisavós e os pais. Pronto, não era para mais ninguém, não era para publicar.

D - Ficámos ali as duas a olhar uma para a outra [a viúva do Guilherme da Costa Carvalho], acho que foi ela que atravessou e veio ter comigo. Ela sabia quem eu era, ela: “não aparece ninguém?! Não sei o que é que se passa”. Eu acho que, acho, naquela altura, não achei coisa nenhuma. Nessa altura, eu acho que ainda não sabia, partia-se do cemitério, junto onde era a PIDE, a sede da PIDE, no Porto, vinha- se desfile até à Avenida, até à Praça. Ora bem, eles ainda deviam vir a caminho e nós ali à espera e não havia ninguém, “Olha, e se fôssemos ali ao café? Sei que começámos ali na conversa, nunca tínhamos conversado uma com a outra. Começámos cada uma a contar a sua história. Ao fim de duas horas, lembrámo-nos, levantámo-nos, chegámos à Praça mas não estava ninguém.

J - Perderam o 25 de Abril.

D - Mas ficámos amigas, trocámos contacto uma com a outra, nenhuma de nós tinha telemóvel.

J - Por falar nas pessoas, nesses anos de clandestinidade, nas pessoas que vocês foram conhecendo guardas alguém com mais carinho. 

D - Bom, este Guilherme foi único na minha vida. Tirando isso, quer dizer, eu nunca tive… Eu era uma miúda ainda, não é? Mas tenho uma boa recordação do Pires Jorge, do…

J - Porque até houve pessoas que te ensinaram o francês, não foi?

D - Foi a Fernanda Paiva Tomás. Sim, sem paciência nenhuma, mas ensinou-me alguma coisa. Além do Guilherme, foi o Julio Fogaça. foi o Pires Jorge.

J -Lembras-te com carinho do Júlio Fogaça?

D - Sim, foi ele que uma vez me levou, já que eu tinha 15 anos, levou-me o Pim Pam Pum. O Pires Jorge foi quem me ofereceu, quando eu fiz 11, 12. ou 13 anos? Quando ele me ofereceu a Lã e a Neve, do Ferreira de Castro, que eu, entretanto, perdi nestas andanças todas, mas li, gostei, e por via disso comprei mais tarde o livro. Depois houve outros também. Lembro-me do Blanqui Teixeira, que cantava, após a fuga dele, foi engraçado porque nós vivíamos numa casa quando ele foi preso. Depois mudámos para a Cova da Piedade e quando ele fugiu foi para a Cova da Piedade, para a nossa casa.

J - A Cova da Piedade tem cá uma história, antiga.

D - Em dois anos tem bastante.

J - Não, e antes. Estava-te a dizer que eles também, nesta altura da reorganização, tinham tido reuniões numa casa da Cova da Piedade. Isto foi em 40, 41, ainda não tinhas nascido.

D - E portanto, ele que assim à socapa, não podia ser em voz alta. Dentro da tipografia, ele fingia que tocava e ia cantar Fados de Coimbra. Ele era assim brincalhão. E foi ele que ainda na casa anterior, portanto antes de ser preso, é lógico, era ele o nosso controleiro. E foi ele que uma vez inaugurou o nosso lustre, que era um globo que o meu pai tinha encontrado no lixo em qualquer sítio. E depois faltava-lhe um bocado, mas o que tínhamos no teto da sala era uma lâmpada. E então o meu pai… Isto é bonito e tal, lavado e tal. Levou para casa. A minha mãe lavou aquilo e o meu pai colocou lá um globo bonito.

Simples, mas bonito. Com a parte que faltava mas virado para dentro, que era para quando se abrisse a porta… Também ninguém abria a porta. Aquela porta não se abria. Eventualmente, se se abrisse a porta da sala de jantar, não se via o bocado que lhe faltava. E a minha mãe, que era uma pessoa assim… Era uma pessoa muito especial. Tenho dificuldade em caracterizá-la. Era uma pessoa muito… E de forma que… E sei que ela é que tinha estas ideias. Atendendo ao que ela ia apreciando. Ela era muito perspicaz. Coisa que a filha não é.

E então, o que é que ela se lembrou de fazer? Eles não podiam ir lá à casa sem saber se podiam avançar. Eu também conto essa história, quando ele foi preso. Apareceram lá inopinadamente dois, pensando que o meu pai estava preso e o meu pai estava lá em casa. Ele telefonava para saber se estava tudo bem, e a minha mãe a dizer-lhe conforme estava combinado. Era durante o dia. Ela não ia dizer, olha, está em casa. Então dizia, está a trabalhar, está tudo bem e tal. Quer que lhe dê algum recado, era o sinal de que podia avançar. Não havia problema com a casa. Portanto, ele telefonou. Ficámos a saber que ele ia lá. E, então, a minha mãe, enquanto ele não chegou, arranjou uma fita qualquer, não sei o quê, uma fita, e pôs, assim, de um lado ou outro da porta.

Nós não nos servíamos da porta da sala. Entrávamos e saíamos pela porta da cozinha. Então ele entrou e tal, e para entrar para a sala, para depois eventualmente até ir à biblioteca, à tipografia, tinha que passar por ali.

Entrava para a cozinha, passava por um coiso que servia de corredor, mas não era corredor, a casa não tinha corredor, entrava na sala e depois ou ficávamos ali, para reunir ou então, se fosse caso disso, passar para ir à tipografia. Quando ele chegou, a minha mãe apresentou-lhe uma tesoura para ele cortar a fita, como fazia.

J - Então a ideia da inauguração veio da tua mãe.

D - E ele alinhou perfeitamente. Portanto, ele era assim de um plano que nem todos se prestavam a isso. Foi ele que pôs àquela casa o nome de Balneários, porque todo o chão da casa era em cimento, quartos, tudo era em cimento, cimento, assim, um vermelho ainda mais escuro, talvez, do que aquele. Sim, toda a casa, incluindo o meu quarto, não é? E, então, algumas vezes, ele brincou comigo, eu tinha 10 anos, ele brincou comigo às escondidas. E, então, eu, para me esconder, tinha que ser dentro da casa. E, então, houve uma vez que eu me escondi debaixo da minha cama. O que é que acontece? Quando saí de lá, a roupa estava vermelha. Aquilo não era mosaico, não era coisa, portanto…

J - Essa era a casa de qual?

D - Vila Nova de Caparica. Foi aí que eu tive que estar um mês, cerca de um mês, fechada, durante a semana, em casa, a falar muito baixinho. Porque era suposto estar em Lisboa a preparar-me para os exames. Para o exame da 4ª classe. Foi aí, nessa casa.

Só quando os meus pais vieram para Lisboa, acho eu, o Partido começou, pediu a todos, presumo que a todos, pois claro, era natural, a documentação de antes do 25 de Abril, Eu entreguei tudo, exceto uma coisa, que foi a Voz das Camaradas. Aquilo não, aquilo é meu. O resto entreguei tudo. Tínhamos a coleção do Avante, do militante, isso tudo. Manifestos, tudo aquilo que nós ttínhamos. Porque os militantes, quando não eram apanhados, faziam coleção dessas coisas, não é?

J - Guardavam os números.

D - Exatamente. E então, isso tudo entreguei. Portanto, os meus pais disseram-me que, já não sei quem é que foi, alguém, foi lá buscar aquilo tudo. Os meus pais é que só nessa altura me disseram que os camaradas iam lá buscar a tipografia que estava na despensa. Só aí é que eu soube que aquilo era uma tipografia. Mas, entretanto, por um livro da Margarida Tengarrinha, eu soube que a minha mãe ia a Lisboa, se não estou em erro, entregar Avantes. Portanto, os meus pais parece que ainda chegaram a trabalhar com Avantes. Ou com outra coisa qualquer. Só lendo o livro da Tengarrinha.

J - Porque depois, associada à tipografia, tinha que haver a seguir a rede de distribuição, quem é que ia lá buscar…

D -A dada altura, na época em que nós tínhamos a tipografia, não havia mais. Havia uma tipografia, tanto quanto eu sei, havia uma tipografia do Avante e do Militante, e havia a nossa…

J - Que era a do Camponês e do Corticeiro.

D - Que era o Camponês, o Corticeiro, e, eventualmente, e depois quando publicámos, quer dizer, imprimimos muitas coisas, quando foi da campanha do Humberto Delgado, trabalhar de dia e de noite. Eu não, mas os meus pais. E outras coisas. Fazia-se tarjetas, era esse o nome que dávamos. Não sei se era outro nome, mas era assim que nós dizíamos. Os manifestos eram os grandes, ou maiores ou mais pequenos, podiam ser deste tamanho. Geralmente não eram. Era um A4 ou coisa que o valha. E depois havia tarjetas que podiam ser deste tamanho ou até metade disso. E pronto, a propósito de qualquer coisa, de repressão, para comer, ao 1º de maio.

E a minha mãe, nessa altura, só ia a casa, foi algumas vezes, não terão sido muitas, mas foi algumas vezes, a casa dos pais da Luísa Basto, entregar material também, que era como a gente lhe chamava. Mas, habitualmente, era o meu pai que ia.

J - Tengarrinha que morreu agora este ano, não foi? Ainda foi ver o filme que fizeram sobre o seu livro. Tu não me contaste uma vez que os teus pais participaram na fuga, naquela célebre de fuga de Caxias do carro?

D - Não, não foi de Caxias, foi de Peniche.

J - Com os pregos? A tarefa que eles tinham, que tinha sido nessa noite, colocar pregos na estrada. Que era para os carros…

D - Sim, fomos nós os três. Nós morávamos no Alto Santo Amaro. Estava a, ia dizer a Ana, que era assim que a gente a tratava, a Fernanda Paiva Tomás, estava a viver connosco. E na véspera da fuga, foram-nos levar de madrugada, umas folhas de cartolina branca. E levaram um tinteiro ou dois, já não me recordo. Não nos disseram para quê. Só nos disseram que, já não nos deitámos. Passámos a noite com a tinta que havia a pincelar a coisa. A cartolina, não é? De manhã, o meu pai foi comprar corda grossa e pregos, uns pregos, assim, compridos, fortes, não é? E eu, pela primeira vez, conto no livro, pela primeira vez, apanhei um táxi sozinha, nunca tinha andado de táxi sozinha, apanhei um táxi sozinha, fui a Belém, a um sítio, já não sei localizar, fui lá a uma loja, comprei não sei quantos tinteiros, voltei para casa para continuar a pintar e, depois daquilo seco, espetarmos os tais pregos. Na cartolina.

O que é que eu li mais tarde, agora há meia dúzia de anos, li um livro qualquer., foi um que também esteve implicado nos preparativos da mesma, e em que ele diz que foi um absurdo fazerem aquilo porque os carros, como aquilo era cartolina, os carros, ao passarem os pregos não iam furar os pneus.

J - Tinha que ser uma chapa dura.

D - Exatamente. Só assim. Só se os pregos estivessem pregados em alguma coisa, não era numa cartolina. Por isso, simplesmente, tiveram sorte de não ser perseguidos, porque se fossem, tinha sido trabalho inglório.

 

Ler parte 1.

Ler parte 2. 

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  • 1. GEORGE, João Pedro, O Cemitério do Elefante Branco – Literatura, Retornados e Ficções do Império Português, Edições 70, 2023.
  • 2. São José Almeida, “Cilinha, a criança que se fez mulher na clandestinidade”, jornal Público, 23.10.2015, republicação da entrevista de 2003.

por Josina Almeida
Cara a cara | 11 Julho 2025 | Domicilia Costa