Todos iguais em África? Não, todos diferentes

De Luanda a Maputo – longe como de Lisboa a Atenas –, é preciso deixar um oceano e olhar para outro, atravessar um continente. Cabo Verde está no meio do mar, que é como quem diz, voltado para muitas coordenadas, não só africanas. São Tomé e Príncipe, outra ilhas, a olhar para outro ponto da costa afriana. A Guiné-Bissau vive entre outras Guinés e outras culturas. Viajando estas distâncias, podemos continuar a falar português. O que não quer dizer que nos podemos entender.
“A língua é o elemento de comunicação, mas nós não comunicamos a língua”, lembra-nos ao telefone de Maputo, um jovem escritor de 29 anos, Lucílio Manjate. “Nós comunicamos valores e identidades.”
A palavra PALOP – palavra-sigla, de tom kafkiano–, provoca suspiros do outro lado da linha telefónica, nos tais PALOP, os países africanos de língua oficial portuguesa. Por essa tendência de colocar realidades diferentes no mesmo saco, a João Melo, escritor angolano, director da revista África 21, a palavra PALOP faz-lhe impressão.


Quando Isabel Lobo, uma angolana que há mais de 20 anos escolheu para casa Cabo Verde – “o mar, o sol, a liberdade” –, viveu em Portugal, estudava “literatura africana de expressão portuguesa”, que mais tarde se chamou “literatura africana de língua portuguesa”, e só recentemente “literatura cabo-verdiana”, “literatura angolana”, “literatura moçambicana”, etc. Cabo Verde, um país que é pequeno se pensarmos na geografia das ilhas, realça a linguísta e professora de literatura, mas grande para lá das ilhas com os cabo-verdianos pelo mundo fora (falando inglês, holandês ou italiano), vai continuar a afirmar a sua literatura cabo-verdiana de língua portuguesa.
A primeira coisa que podemos escutar, se quisermos ouvir, – vindo desse continente que não só os portugueses, mas os europeus em geral, teimam em olhar, preguiçosamente, de forma genérica – é que não podemos falar de uma língua portuguesa em África, mas de várias línguas portuguesas, em países multilingues e multiculturais como em Portugal temos dificuldade em imaginar.

Nacional como a mandioca
Em Moçambique fala-se cerca de 20 línguas. Quando um escritor escreve em Moçambique, não escreve numa língua só.
“O escritor aprendeu uma determinada língua mas pensa noutra”, explica Lucílio Manjate, e ainda que não use directamente palavras das línguas bantu, a lógica e visão do mundo para as quais remetem as várias línguas nacionais estão presentes na escrita em português.
Como escritor, Lucílio Manjate, reserva-se o direito de criar a sua própria linguagem. Como cidadão, e cidadão inteiramente crescido num país independente, ainda é preciso resolver o fantasma do colonialismo e sentir o português não como uma língua de fora, da qual se desconfia, mas de dentro.  
Isto é cada vez mais verdade em Angola, onde, quando se realize um censo, se espera descobrir que um terço da população tem o português não como segunda língua, mas como primeira, sobretudo nos centro urbanos, sobretudo entre as gerações mais jovens.
“Hoje, em Angola, a língua portuguesa é tão nacional como a mandioca”, diz o escritor e jornalista João Melo. E como fizeram quando importaram a mandioca, juntam-lhe outros ingredientes, modificam-na ao seu gosto.
Na escola, aprende-se a norma do português de Portugal, mas se andarmos nas ruas de Luanda ouvimos outro português, muitas vezes com semelhanças ao português do Brasil.
Ao contrário do que muitas pessoas pensam, diz João Melo, essa influência não é um feito da rede Globo. Durante o século XX, a colonização portuguesa e a ditadura militar no Brasil contribuiram para um afastamento entre Angola e o Brasil, mas os laços que actualmente se retomam são muito antigos. “Quem for estudar o século XVII, verá que a relação entre Angola e Brasil era uma relação directa, não passava por Portugal.” A própria língua portuguesa como é falada no Brasil, incorporou uma série de vocábulos de línguas angolanas – principalmente do quimbundo – levadas pelos escravos.

Uma questão de afectos
Para um escritor em Angola, o mercado brasileiro é aliciante, não apenas pelo potencial de vendas – “uma questão de escala”, resume João Melo – mas também pela afinidade cultural. Se João Melo ler a sua obra para uma plateia brasileira, esta sabe do que fala. “Luanda é hoje uma metrópole terceiro-mundista”, diz, e a literatura angolana, fortemente urbana, fala a quem vive nas grandes metrópoles brasileiras.
Talvez Angola possa ser o país que venha a reequilibrar a discussão da lusofonia, até aqui pesando sempre entre Portugal e Brasil, sem encontrar um papel para África.
Para João Melo, se Angola se afirmar como uma potência económica regional isso terá que ser acompanhado de políticas culturais, incluindo a criação de políticas próprias de promoção da língua portuguesa.
Mas para já, está tudo por fazer. Neste momento, Angola não tem leitores e a João Melo custa-lhe pensar em todas as vocações que se estão a perder, porque num país com pouco acesso ao livro é difícil produzir escritores e literatura.
O caso é semelhante em Moçambique, onde, explica Lucílio Manjate, é quase impossível comprar um livro fora da capital.
Para ele, que escreve em português e que quer que os seus livros tenham leitores em Moçambique, Angola, Cabo Verde, Portugal, Brasil e onde quer que se leia em português, o “sonho da lusofonia” vale a pena. Para isso, é preciso encontrar as razões certas, que não podem ser só razões políticas. Para ele, “a utopia tem que ser cultural, humanitária, dos afectos”.  

uma versão mais curta deste artigo saiu no Público 10/6/2010

Fotos de ML (Kruguer, Maputo, Beira)

por Susana Moreira Marques
A ler | 17 Junho 2010 | língua, lusofonia, português