Reparar uma narrativa de séculos sobre a escravatura

“Desde o momento em que fui raptado e conduzido a uma ‘fábrica’ e daí, da maneira própria do tráfico, brutal, básica, mas na moda, fui levado para Granada, que os pensamentos dolorosos que então senti ainda aparecem no meu coração; embora os meus medos e as minhas lágrimas tenham há muito acalmado. E no entanto ainda é doloroso pensar nos milhares que sofreram de maneira similar ou que passaram por provações ainda maiores do que as minhas, às mãos de ladrões bárbaros e tarefeiros sem piedade; e que muitos agora mesmo ainda estão a sofrer na amargura extrema de uma dor e de um lamento que nenhuma linguagem consegue descrever.”

Isto foi escrito por Ottobah Cugoano e publicado em Inglaterra em 1787, num panfleto com o título de Thoughts and Sentiments on the Evil and Wicked Traffic of the Slavery and Commerce of the Human Species (Pensamentos e Sentimentos sobre o Maldoso e Cruel Tráfico da Escravatura e Comércio da Espécie Humana).

Ottobah Cugoano foi um escravo. Nascido no Gana, cerca de 1757, foi capturado por comerciantes de escravos e transportado para as Caraíbas por volta de 1770. Cugoano, ao contrário de muitos outros escravos dessa época, teve sorte e chegado a Inglaterra foi libertado e trabalhou como um homem livre em Londres, cidade onde se juntou a um grupo de abolicionistas africanos nos anos 80 do século XVIII. Faziam parte do movimento contra a escravatura que começava a ganhar apoio público e a fazer pressão junto do parlamento britânico nessa época. Em 1807, o Reino Unido era o primeiro país a abolir o comércio de escravos. (Portugal tinha sido o primeiro a abolir a escravatura dentro do território de Portugal continental.) O Brasil seria o último país a abolir totalmente a escravatura, em 1888.

 Olaudah Equiano Olaudah EquianoCugoano, e alguns poucos africanos daquela época, tiveram a possibilidade de partilhar a sua narrativa e o seu lado da História, mas ao longo do tempo, mesmo depois da abolição do comércio de escravos e da escravatura, faltou sempre fazer a história do ponto de vista dos africanos e daqueles que tinham sido escravos.

À escravatura seguiram-se regimes coloniais de dominação dos africanos. Só na segunda metade do século XX, com as independências africanas e com a luta pelos direitos civis nos Estados Unidos é que a escravatura começou ser analisada de outra forma. E talvez só no início do século XXI as sociedades comecem a estar preparadas para enfrentar essa parte da História.

Ottobah Cugoano foi só um dos milhões de homens e de mulheres que sofreram os horrores da escravatura. Os números apontam para seis milhões ao longo de quase três séculos. É um dos maiores crimes da história da humanidade e cujos efeitos perversos de desequilíbrio e de desigualdade começaram a ser compreendidos pelos negros africanos ainda antes da própria abolição do tráfico de escravos e da escravatura.

Livro de Olaudah EquianoLivro de Olaudah EquianoUm amigo de Cugoano, e mais famoso do que ele, Ouladah Equiano (c.1745-97), escreveu mais ou menos na mesma época uma biografia “romanceada” da sua vida enquanto escravo,The Interesting Narrative (A Narrativa Interessante). Equiano também se tornou um homem livre, aprendeu a ler e a escrever, trabalhou, casou e teve filhos em liberdade. Foi, obviamente, uma excepção. O seu livro, que continua a ser vendido hoje como um clássico da literatura e um importante documento para entender a escravatura, foi, naquela época, um best seller e um dos grandes instrumentos dos abolicionistas, que queriam mostrar aos ingleses que viviam distantes da realidade das plantações de toda a América, o que comportava de crueldade para os homens negros aquele sistema económico. Equiano era um homem negro real, que sofria e chorava como os homens brancos. No final do seu livro, Equiano analisa e prevê, com uma actualidade que a esta distância parece extraordinária, as consequências da escravatura nos homens, quer os que foram escravizados quer os que escravizaram. Se lermos apenas o final deThe Interesting Narrative, poderíamos pensar que falava, por exemplo, do regime colonial, de um tempo ainda muito recente, de memória viva:

“(…) tiram-lhes metade da sua virtude, e dão-lhes um exemplo, vindo da vossa própria conduta, de fraude, rapina e crueldade e levam-nos a viver num estado de guerra; e no entanto vocês queixam-se de que eles não são honestos ou leais. Vocês estupidificam-nos com correntes e pensam que é necessário mantê-los num estado de ignorância; e no entanto dizem que eles são incapazes de aprender; que as suas mentes são terreno tão árido que seria impossível adquirirem cultura: e que vêm de um clima, onde a natureza (embora pródiga a um ponto que vocês desconhecem) deixou apenas o homem inacabado e insuficiente, e incapaz de apreciar os tesouros que a natureza lhe dá!”

 

Problema contemporâneo

 

Preservar e ensinar a memória da escravatura não é fazer um mero exercício de história, mas é uma acção efectiva na luta contra o racismo | Foto Ampe Rogério/RAPreservar e ensinar a memória da escravatura não é fazer um mero exercício de história, mas é uma acção efectiva na luta contra o racismo | Foto Ampe Rogério/RA

A escravatura é – e talvez venha a ser sempre – um problema contemporâneo. Não se trata apenas de observar que continuam a existir no mundo modelos de exploração semelhantes ao da escravatura e que continua a haver tráfico de seres humanos.

Este tipo de escravatura moderna já não é exclusivo dos africanos, como lembra Vladmiro Fortuna, director do Museu Nacional da Escravatura, em Angola, mas é um facto, diz, que ainda é real “a discriminação dos descendentes das vítimas da escravatura [do comércio Atlântico] nos países onde o fenómeno da escravatura foi muito intenso.”

Isabel Castro Henriques, historiadora ligada ao projecto da UNESCO “Rota do Escravo”, em Portugal, vai um pouco mais longe e diz mesmo que “escravo” ficou associado a “preto” e que os longos séculos de escravatura transatlântica, de domínio europeu e americano, estão na base do racismo que continuou muito depois da abolição, fortaleceu-se durante os regimes coloniais europeus em África, e que continua a subsistir hoje.

Para os vários investigadores e historiadores com quem falámos, em Portugal e Angola, é importante passar a mensagem para a sociedade civil e para o poder político de que preservar e ensinar a memória da escravatura não é fazer um mero exercício de história, mas é uma acção efectiva na luta contra o racismo.

“Uma boa divulgação da história da escravatura – e da sua violência e crueldade – poderá despertar a atenção de determinados sectores da sociedade para fenómenos contemporâneos de racismo e de xenofobia, de forma a promover a coesão social e as relações inter-raciais”, resume Vladmiro Fortuna.

 

O caso de Belinda Royall

 

Recentemente, dos Estados Unidos ao Brasil, intensificou-se o debate sobre a forma como devemos conservar a memória da escravatura e cresceram também os apelos – e os argumentos a favor e contra – para que sejam feitas reparações, inclusive financeiras.

No Brasil, a Ordem dos Advogados anunciou, no início de Novembro, que estava a formar uma Comissão de Verdade para a Escravatura Negra. A Comunidade das Caraíbas (Caricom) que tinha estabelecido em 2013 uma Comissão para Reparações, decidiu há poucos meses fazer um pedido de indemnizações a vários países europeus, entre eles Portugal. Mas se este parece ser um assunto que tem ganho força no início do século XXI, quando o equilíbrio do poder no mundo se alterou e o mundo ocidental já não tem a hegemonia dos outros séculos, a verdade é que não é uma ideia nova o gesto das reparações – é pelo menos tão antiga quanto a própria ideia da abolição, até mesmo a ideia de compensação financeira.

Em 1783, em Massachusetts, no leste dos Estados Unidos, uma mulher livre que tinha sido raptada em criança, no Gana, e escravizada durante 50 anos fez um pedido às autoridades do Massachusetts para receber o que seria hoje considerado uma indemnização. Pedia que fosse poupada, ela e a filha doente, “da miséria mais extrema”. Descrevendo os anos de opressão, dizia ao juiz que se tratava de “uma devolução justa” receber parte da “imensa riqueza” que ela própria, enquanto escrava, tinha ajudado a “acumular” e “aumentar”. Essa mulher, Belinda Royall (Royall era o nome da família que fora sua “proprietária”), conseguiu que fosse estabelecida uma pensão retirada do património da família para quem tinha sido escrava. Ela foi, é claro, uma excepção e as indemnizações pagas foram-no, em grande maioria, aos proprietários dos negócios que dependiam dos escravos. De certa forma, foi preciso pagar para conseguir impor a abolição da escravatura.

A lógica do pedido de reparações aos países protagonistas do tráfico de escravos e da escravatura de africanos em larga escala não é muito diferente da história de Belinda Royall e do mesmo raciocínio: se os países lucraram durante tanto tempo com este comércio, porque não devolverem parte desse lucro aos que contribuíram, sem qualquer reconhecimento, para

que essa riqueza existisse. As reparações financeiras colocam vários problemas, a começar desde logo pela dificuldade em calcular quantias concretas.

“Podemos até ter uma ideia do número de pessoas envolvidas no tráfico de escravos mas como calcular um valor para a violência e a crueldade?”, pergunta Vladmiro Fortuna. “A minha opinião, sempre que ma pediram, até por parte de instituições, tem sido sempre esta: não é dinheiro que pode pagar o crime que foi a escravatura.”

O director do Museu Nacional da Escravatura de Angola reforça a ideia de que são precisas, sim, reparações éticas, morais, históricas e científicas: “É preciso criar condições para a preservação da memória e colocar a história da escravatura no seu verdadeiro lugar – e com isso ajudar a diminuir os focos de discriminação das pessoas de descendência africana em países onde a escravatura foi muito intensa. É essa a melhor forma de reparar esse erro do passado.”

Também Isabel Castro Henriques acha que as reparações financeiras podem desviar as atenções daquilo que é realmente importante: “O problema do preconceito é um problema profundo e o que é preciso é que as pessoas mudem a maneira de pensar”.

A investigadora e professora, especialista em História de África, lembra que existe o perigo de se achar que “o assunto fica arrumado” por se ter pago dinheiro. Admite que em certos tipos de situação, compensações financeiras podem ajudar, mas que não é o caso de séculos de tráfico de escravo e de escravatura que moldaram relações entre povos e continentes.

“No caso de Portugal, é preciso desconstruir um imaginário que foi construído ao longo dos séculos”, diz Isabel Castro Henriques. “As pessoas em Portugal muitas vezes são racistas sem sequer se darem conta.”

Em Portugal, antes sequer de pensar em reparações, seria preciso dar importância à história da escravatura, reconhecer o seu impacto ainda hoje, debatê-lo de forma séria publicamente. Mas isso não está acontecer ainda.

Os projectos para um museu da escravatura em Lagos, no sul de Portugal, têm avançado a passo lento. E Isabel Castro Henriques lamenta que a tentativa de preservar um cemitério de escravos também em Lagos não tenha sido bem sucedida. No lugar onde tinham sido encontrados 155 esqueletos de escravos africanos e onde se poderia ter feito algo para honrar a memória destes homens, mulheres e crianças, foi construído um parque de estacionamento (os esqueletos foram retirados para serem estudados). É apenas um exemplo, para Isabel Castro Henriques, de como em Portugal ainda não é visto como uma prioridade a preservação da memória da escravatura. De certa forma, parece que continua a ser sensível o assunto em Portugal. É um dos países que maior papel teve no tráfico atlântico de escravos mas esse é o lado da história que mais custa admitir, contar, mostrar, ensinar.

 

Vencedores que são vencidos

 

Benjamin de Paula é um investigador brasileiro que chegou a Portugal há três meses para trabalhar no Centro de Estudos Sociais de Coimbra e ficou surpreendido com o estado do debate sobre este tema em Portugal; isto é, quase inexistente.

Benjamin de Paula acompanhou no Brasil o crescimento dos movimentos sociais negros e as ideias de reparações que não são directamente financeiras, mas que tentam corrigir o acesso às oportunidades da população brasileira negra. Para este investigador, já é possível hoje analisar as mudanças que ocorreram no Brasil, com a introdução, há pouco mais de dez anos, de políticas de acção afirmativa – ou “discriminação positiva” – que, por exemplo, impuseram quotas de estudantes negros nas universidades brasileiras para colmatar a enorme disparidade que existia entre aquilo que era a percentagem de negros na população brasileira e a existência de estudantes negros nas universidades.

“Casos como o meu, que sou negro, numa universidade brasileira, era quase exótico. No entanto, no Brasil 50 por cento da população é negra.” Hoje, diz, há médicos negros e engenheiros negros e professores universitários negros, graças a essa lei. Mas, para Benjamin de Paula, a medida mais importante que o governo brasileiro tomou foi, no entanto, a obrigatoriedade de ensinar a história afro-brasileira em todas as escolas.

Museu do Negro, no Rio de Janeiro | Foto Tomaz Silva/Agência BrasilMuseu do Negro, no Rio de Janeiro | Foto Tomaz Silva/Agência Brasil

Na história nunca há um só ponto de vista e passou a fazer parte da educação de todas as crianças e jovens brasileiros olharem a sua história também a partir dos escravizados, dos discriminados, dos que nunca tiveram direito à história. Não só isso, mas passou a fazer parte dos currículos até das universidades olhar para as diversas áreas de estudo da perspectiva dos vários continentes e não apenas da perspectiva eurocêntrica.

Da mesma maneira que a teoria do luso-tropicalismo – que via o Brasil como o país onde as raças se misturavam com harmonia – impediu um olhar honesto sobre a realidade do racismo na sociedade brasileira, Benjamin de Paula observa como ideias semelhantes se mantêm em Portugal, mascarando o racismo no país. Também os portugueses criaram o seu “mito”, herdado ainda do tempo da ditadura, de povo não-racista, que faz com que seja mais difícil um verdadeiro debate quer sobre o passado quer sobre o presente e sobre a forma como Portugal se relaciona com os países africanos de língua portuguesa.

“Se não há um debate sobre o passado histórico, não podemos rever o presente nem podemos ter desenvolvimento no futuro. As reparações passam primeiro por uma revisão histórica.” Portugal, diz, não ganha nada em querer fixar-se numa História de vencedores. “Portugal não ganha nada com continuar a olhar dessa forma [como “vencedor”] para a escravatura a não ser vergonha eterna.”

 

Papel de Angola

 

Segundo Vladmiro Fortuna, em Angola o debate existe a um nível institucional – e as instituições angolanas vão sendo confrontadas com a maneira como a discussão vai evoluindo internacionalmente – mas ainda não chegou à sociedade angolana, pelo menos não tanto quanto seria desejável. “A memória da escravatura em Angola ainda não é suficiente conhecida”, diz, “mas creio que é uma questão de tempo até a sociedade estar mais atenta a estes temas.”

A capela onde os africanos eram obrigados a converter-se ao Catolicismo | Foto Carlos Lousada © AustralA capela onde os africanos eram obrigados a converter-se ao Catolicismo | Foto Carlos Lousada © Austral

O director do Museu Nacional da Escravatura lembra que há muito trabalho por fazer para se conhecer a fundo a história da escravatura em Angola – para além da história do tráfico de escravos, há muito por explorar no que toca à escravatura dentro do país, nas antigas fazendas coloniais, por exemplo, entre muitos outros espaços que ainda não foram suficientemente estudados. Vladmiro Fortuna diz que o acervo do Museu Nacional da Escravatura é extraído, na sua maioria da região de Luanda, onde o edifício do museu está localizado, e que falta fazer trabalho arqueológico no resto do país.

Agora, lembra, no resto do mundo tem crescido a investigação sobre a escravatura e em muitos estudos internacionais Angola é referida. “No site Trans-Atlantic Slave Trade Database, os números mais recentes apresentados, colocam Angola como umas das regiões que mais exportou escravizados. Essa confirmação dá-nos [aos angolanos] mais responsabilidades no processo da valorização e preservação da memória da escravatura.”

Angola poderá ter um papel importante no desenrolar de como é pensada e preservada a memória da escravatura, que será sempre um trabalho global, com muitas ligações entre muitos países, vários continentes.

“É um assunto que deve envolver todos os povos do mundo no sentido de preservar a história para a educação das novas gerações, porque é essa a melhor forma de honrar as vítimas”, diz Vladmiro Fortuna.

Esse parece ser o grande consenso: que a verdadeira reparação começará quando nas escolas a história da escravatura seja contada de vários pontos de vista e seja tratada como um tema fundamental. Talvez quando os nomes e as histórias de homens como Equiano e Cugoano ou mulheres como Belinda Royall passarem a fazer parte do nosso imaginário.

 

Corrigir o passado

 

“Falar da história da escravatura no Brasil é falar de uma história de proximidade com a África Ocidental”, diz Sean T. Mitchell. Numa entrevista por email falámos com o investigador americano da Universidade Rutgers, que se tem dedicado a estudar questões de desigualdade no Brasil. Quisemos entender o debate em torno da herança da escravatura e das políticas de reparações no Brasil, num momento em que a Ordem dos Advogados brasileira anunciou uma Comissão de Verdade para a Escravidão Negra no Brasil, trazendo mais força a um tema que tem começado a mudar a sociedade brasileira nas últimas décadas. Quatro perguntas e respostas que abordam o movimento quilombo [de comunidades de descendentes de antigos escravos], as políticas de acção afirmativa no Brasil e a discriminação que continua a ser herança de séculos de tráfico de escravos e de escravatura.

 

A Ordem dos Advogados brasileira anunciou recentemente que está a constituir uma Comissão de Verdade para a Escravidão Negra no Brasil. Que tipo de impacto pode ter o trabalho de uma comissão deste género na sociedade brasileira e nas percepções sobre desigualdade racial no país?

 

A Ordem dos Advogados brasileira é uma instituição poderosa e penso que uma comissão de verdade pode ter um papel importante para trazer a história e a herança da escravatura para primeiro plano nas discussões políticas e legais no Brasil.

Os historiadores especialistas da escravatura no Brasil sempre se confrontaram com uma dificuldade: em 1890, Rui Barbosa, que tinha sido um importante abolicionista, e era então Ministro das Finanças do Brasil, ordenou que se queimassem todos os registos públicos relacionados com a escravatura. O seu motivo era, provavelmente, poder contornar pedidos de indemnização de antigos proprietários de escravos – era um objectivo louvável, mas tornou bastante difícil fazer pesquisa sobre a escravatura no Brasil. Essa dificuldade, assim como a herança do luso-tropicalismo, que deixou muitos brasileiros com a ideia errada de que a escravatura no Brasil tinha sido menos violenta do que em outros lugares do hemisfério ocidental, enfraqueceram os discursos legais e políticos em redor da escravatura no Brasil. Penso que uma comissão de verdade pode ajudar a trazer uma perspectiva mais realista da herança de violência e de desigualdade da escravatura.

 

Que tipo de reparações faz sentido discutir e quais poderiam efectivamente reduzir a desigualdade? E vê o movimento das comunidades quilombo como um movimento de reparação?

 

Sean T. Mitchell |Sean T. Mitchell |O movimento quilombo é parcialmente um movimento de reparações, porque foca-se em corrigir erros históricos com origem na escravatura e procura, para isso, conseguir ter o apoio de políticas públicas. Mas o movimento quilombo tem aspectos importantes que não estão claramente ligados a ideias de reparações da escravatura: 1) em muitos casos, o movimento procura essencialmente proteger a terra que as comunidades quilombo já possuem, mas que está ameaçada por outros interesses [económicos], e 2) muitos líderes do movimento quilombo também procuram incentivar o orgulho na identidade afro-brasileira que foi historicamente reprimida por políticas de “embranquecimento”.

Depois da abolição da escravatura em 1888, o Brasil instituiu uma espécie de reparação inversa: as políticas favoreceram os imigrantes europeus em relação aos antigos escravos, como parte de uma política de “embranquecimento”. Essas políticas tornaram realmente a ascensão social dos antigos escravos e dos seus descendentes muito difícil.

A conversa que tem começado a ser travada no Brasil sobre as reparações é um passo importante para ajudar a reduzir a desigualdade racial no Brasil, que tem raízes na história brasileira mas também no racismo actual.

Historicamente, as instituições poderosas da sociedade brasileira tentaram quase sempre obscurecer as desigualdades que têm origem na escravatura. Mudar isso já é um passo importante. Mas não vai eliminar completamente a desigualdade, que tem origem em muitos outros factores, incluindo o mercado de trabalho, as políticas de tributação, e a falta de acesso à educação no Brasil.

 

Qual é o seu ponto de vista sobre as políticas de “discriminação positiva”?

 

O Brasil tem começado a implementar formas de “acção afirmativa” (ou “discriminação positiva”) nas duas últimas décadas e penso que essas políticas já começaram a ajudar a reduzir alguma da desigualdade racial no Brasil. Uma das mudanças mais significativas é o aumento do número de estudantes afro-brasileiros, brasileiros indígenas e brasileiros pobres nas universidades federais brasileiras, que eram, até há pouco tempo, universidades altamente exclusivas.

 

Que impacto podem ter medidas como esta comissão de verdade nas relações entre o Brasil e os países africanos de onde os escravos foram exportados, como Angola?

 

Pode ter um impacto importante. Como o historiador Luiz Felipe de Alencastro mostrou no seu livro, “O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XVI e XVII”, a navegação de norte a sul da costa brasileira era muito complicada durante o período colonial. Era mais fácil navegar, de muitas partes da costa brasileira, para Lisboa ou para a África Ocidental. Por isso muitas regiões brasileiras tinham relações mais próximas com África do que tinham com outras regiões do próprio Brasil.

Falar da história da escravatura no Brasil é, inevitavelmente, falar de uma história de proximidade com a África Ocidental.

 

Artigo originalmente publicado no Rede Angola a 12/12/2014

por Susana Moreira Marques
A ler | 7 Janeiro 2015 | angola, escravatura, História, Reparação