Era uma vez um país

48 anos de ditadura, 37 anos de democracia, um filme – “48”, da realizadora portuguesa Susana de Sousa Dias – sobre a tortura nas prisões da PIDE. Cinco dos participantes de “48” contam histórias de antes e depois da tortura, vidas inteiras que fizeram a história do país tal como o conhecemos hoje. Em reposição, com entrada gratuita, no DOC_EUROPA III dias 17, 18 e 19 de Junho.

 

Era uma vez um país/ onde entre o mar e a guerra / vivia o mais infeliz/ dos povos à beira-terra. (…) Ora passou-se porém / que dentro de um povo escravo / alguém que lhe queria bem / um dia plantou um cravo. (…) Quem o fez era soldado/ homem novo capitão/ mas também tinha a seu lado/ muitos homens na prisão.

“As Portas que Abril Abriu”, José Carlos Ary dos Santos

Manuel Martins Pedro. Preso em 1958, 1959, 1969

No meio de um espancamento, deu por si a arregaçar as mangas. Puxava com força, mas as mangas não subiam, porque o casaco era emprestado e estava-lhe apertado. Os carrascos pararam a olhar para ele, para aquele espectáculo, e foi só quando pararam de lhe bater que ele, surpreendido, percebeu o que fazia. Sorriu.

Manuel Martins Pedro foi preso três vezes, ao todo esteve preso 11 anos, e tem várias histórias em que sorri. Ainda hoje quando conta algumas dessas histórias, ri-se. Alguns camaradas ficam chocados: “Ó Manuel Pedro, pá, como é que te podes rir?” Mas ele não consegue evitar. Quando entrava na sala de espancamento um chefe de brigada a tresandar a perfume, Manuel Martins Pedro olhava para ele – um pide, sim, podia arregaçar as mangas – e sorria.

E lá está ele de novo a rir-se, divertido como um menino, um senhor de quase 80 anos, sentado num banco à sombra da Igreja da Memória, na Ajuda, com vista para o rio Tejo e o Cristo-Rei.

Também houve momentos em que perdia a cabeça, enfurecia-se, deixava de parecer franzino, de fraca saúde. Ainda hoje, pouco antes da entrevista, quando a filha comentou que herdou dele o feitio, veio-lhe à cabeça a cara de um pide e lembrou-se que esteve quase a dar-lhe uma cabeçada. Tinha visto a cara do pide perto, muito perto, e começou a fazer contas, é agora, é agora… E quando ia avançar, ele parou de lhe bater. Era uma reacção desaconselhada pelo manual “Se fores preso, camarada”, que tinha lido atentamente, mas o manual não podia ter em conta os feitios de todos os membros do partido clandestino comunista português. Então, esta manhã, em casa, pensou: “Se lhe tivesse dado uma cabeçada, ele tinha-me esfrangalhado todo.”

Quando vai fazer visitas guiadas à prisão de Peniche, o que as pessoas mas querem que conte é sobre as torturas. Se ele não falar do assunto, os grupos de escolas perguntam. E depois de ele contar, a pergunta seguinte é: como é que aguentava?

A resposta nunca fica completa, porque para isso seria preciso contar a história do país, ou pelo menos a história do bairro da Ajuda, onde nasceu, cresceu, onde regressou às poucas horas do dia 27 de Abril de 1974 depois de ter sido libertado de Peniche, onde ainda vive, com a filha e a neta perto, onde quer morrer. Seria preciso fazer uma visita guiada evocando o bairro operário, onde as casas não tinham água nem electricidade, e contar que antes do 25 de Abril só se lembra de ser livre aos sete anos, quando ainda andava na escola e tinhas as tardes livres, à solta. E então, perceberiam que o riso que acompanha as histórias não é para fazer bonito, passar por herói. É uma expressão de desprezo, ódio mesmo.

Depois da escola, quis ser serralheiro, mas o pai que não, que ele era raquítico. Quis então ir para a marinha, mas o pai que não, que ele não dava para marinheiro. Foi então para “groom” no Tavares Rico. Não gostava. A única coisa que lhe agradava era ouvir os empregados de mesa galegos a conversar. Gente diferente, que tinha estado do lado dos republicanos, e tinha fugido com a derrota na Guerra Civil Espanhola. Em 42, enviavam-no às bancas dos jornais para trazer notícias da Segunda Guerra Mundial, e ele vinha, orgulhoso da missão, contar batalhas como a do cerco de Estalinegrado. Via entrar no restaurante António de Oliveira Salazar, via sair satisfeitas grandes figuras do regime. Apontava num caderninho os preços: champanhe – 600 escudos, o dobro do salário mensal do pai operário. Depois do trabalho, voltava para o pequeno quarto que tinha alugado no Bairro Alto. Deitava-se a pensar no pai e na vida no bairro da Ajuda e então, aos 11 anos, tinha saudades da infância.

Adelino Silva. Preso em 1963

Quando acaba de falar, e se levanta para ser fotografado, Adelino Silva fica subitamente desconfortável como se percebesse que naquela sala despida, na sede do PCP, na Rua Soeiro Pereira Gomes, cabe o mundo todo. Para ter o que fazer com as mãos, agarra os documentos pessoais que trouxe, documentos que cada vez menos lhe parecem pertencer só a ele e à sua família.

Trouxe a sua “Biografia Prisional”, em que a história da sua vida na PIDE começa assim: “Preso por esta polícia em 31-1-1963, por ser ‘membro’ e ‘funcionário’ da associação secreta e subversiva que denominam por ‘partido comunista português’.”

Mostra o Boletim de Casamento, emitido pela Conservatória do Registo Civil de Oeiras, a 6 de Abril de 1966, em que se regista o casamento de Adelino Pereira da Silva, de profissão “estudante”, “residente em Cadeia do Forte de Peniche”, com Maria Alice Diniz Parente Capela, de profissão “doméstica”, “residente em Forte de Caxias”. Ele tinha 27 anos, ela 25. Não se viram e não se beijaram no dia do casamento.

Trouxe também uma folha de carimbos com que a PIDE ia registando os seus movimentos uma vez fora da prisão; e um pacote de postais que fazia para o filho, com fios que faziam bonecos mexer. Dentro, escrevia para o “Frédinho”, “com muitos beijinhos e chi-corações do paizinho muito amigo”. Por cima, punham o carimbo da censura.

E, finalmente, trouxe uma fotografia recente da mulher, Alice Capela, que também participa em “48” e que não pode acompanhá-lo hoje. É uma mulher de cabelo curto, loiro, ar jovial. Conheceu-a quando ela tinha apenas 18 anos, não muito longe da actual sede do PCP de Lisboa, e o casamenteiro foi o António Dias Lourenço.

Dias Lourenço tinha-lhe pedido que montasse uma casa clandestina, e explicou-lhe que vinha morar com ele uma mulher. Disse-lhe: “Vocês vão montar uma casa, não é para serem companheiros, mas se vocês se entenderem, como são jovens…”

Quando chegou à rua combinada, viu-a ao longe com o Dias Lourenço. E ela viu-o a ele, e pensou que não podia ser aquele rapaz, não devia ser, seria demasiada sorte. Achou-o bonito.

Viveram uma história de amor nessa casa e quando desconfiaram que estavam prestes a ser descobertos, saíram precipitadamente. Levaram as roupas e os papéis importantes, mas já na casa nova, Adelino deu conta de que lhe faltavam documentos. Alice implorou-lhe que não voltasse atrás. “Até fechou a porta à chave, e dizia, ‘não vás, que eu tenho um pressentimento’”, conta. “Quando lá cheguei, já lá estava a PIDE.”

No filme “48”, durante a entrevista de Adelino Silva, para além das suas fotografias de cadastro, aparecem também as fotografias de cadastro da mulher, da sua mãe, do seu pai. Os pais da Alice também estivam presos na mesma altura. E o filho, com três anos.

Depois de se casarem oficialmente, puderam começar a corresponder-se – entre Caxias e Peniche –, e escreviam sobretudo sobre o filho, que foi andando de casa em casa entre familiares e amigos. Alice foi libertada primeiro, depois Adelino. Reencontraram-se os três, o filho tinha dez anos, e foi uma euforia. Mas só depois do 25 de Abril poderiam ter uma vida “normal”, se bem que Adelino não sabe bem o que é isso de vida “normal”. É normal contar o amor da nossa vida para um gravador de jornalista?

Conceição Matos. Preso em 1965 e em 1968

Conceição Matos tinha medo de falar. Soube a história de uma mulher, do Barreiro como ela, que tinha falado. Conceição Matos era então muito jovem, impressionável, e tinha tido uma grande admiração por aquela mulher. Pensava: “Se aconteceu com ela, como será comigo?…”

O companheiro, Domingos Abrantes, dizia-lhe que não pensasse nisso, que não receasse, mas ela só teve a certeza de que não falaria no dia em que lhe entraram em casa com pistolas: “Mãos ao ar”.

Quando já estava presa em regime normal, um dia, no recreio, vê essa mulher. “Estava feita num farrapo”, conta Conceição Matos numa sala do Hotel Vitória, o edifício do PCP na Avenida da Liberdade. “Quando me vê, agarra-se a mim, a chorar, a chorar, a dizer: ‘o que é que eu fui fazer?’. Nunca mais a viu, porque ela emigrou quando saiu da prisão, mas ainda hoje pensa nela. A Conceição Matos pode custar falar sobre o período de torturas que descreve em “48”, mas pelo menos pode agarrar-se a isto: aguentou-se.

Conceição Matos é uma mulher desenvolta, atenta, e tem uma memória excelente. Lembra-se de muitas mulheres com quem se cruzou na prisão. Da Astrid, angolana, que todos os dias rezava o terço, recebia um padre muitas vezes, e só anos depois lhe contou  que costumava  perguntar ao padre onde estaria Deus naquele momento. O padre nunca lhe soube responder.

Conceição Matos tinha sido católica, mas perdeu a fé. Na sala de tortura, um dia entrou um pide a cantar: “A 13 de Maio, na Cova da Iria…” Se Deus era omnipotente como lhe tinham ensinado, então não estava a fazer bem o seu trabalho. Nesse caso, mais valia que fizesse ela bem o seu trabalho. A convicção na luta colectiva contra o regime passou a ser a sua fé – essa “fé tua companheira” como escreveu Zeca Afonso para o seu irmão, Alfredo Matos, em “Por trás daquela janela”.

Lembra-se de cantar com outra prisioneira, como numa reza: “Gafanhoto, a liberdade comeu.” Canta, e a sua voz rouca, enche uma das salas do Vitória. A voz reconhece-se, como se reconheceria um rosto, de “48”.

No filme, aparece também a fotografia da sua segunda prisão. Dessa vez, já não tinha medo de falar. Quando chegou à António Maria Cardoso, disse: “Podem fazer-me o que quiserem, podem ter a certeza que não falo”.

Quando foi posta em liberdade, apanhou um táxi à porta da PIDE, e o taxista perguntou-lhe se trabalhava ali. Ela, explicando que tinha sido presa, começou a dizer mal da PIDE. O taxista disse-lhe que tivesse calma: “Minha senhora, isto agora vai mudar, porque entrou o Marcelo. Não me diga que não sabe?”

Ela não sabia que Salazar tinha caído da cadeira. Mas duvidou que a situação mudasse, e continuou a insultar a PIDE. Era preciso tirar o gafanhoto de cima do povo.

Álvaro Pato. Preso em 1973

Aos 13 anos, estava a brincar na rua com outros miúdos, e uma mulher chamou-o:

- Conheces o João Floriano Baptista Pato?

- Sim, é o meu avô.

- Então, eu sou a tua mãe.

Álvaro Pato nunca tinha sequer visto uma fotografia dela. Do pai, Octávio Pato, tinha visto uma única fotografia em casa dos avós, com quem vivia, mas não o reconheceu quando se encontraram pela primeira vez, tinha ele nove anos. Foi nesse dia que percebeu que tinha pais. Só quando o pai foi preso, pôde começar a usar o apelido Pato e riscar “pais incógnitos” do bilhete de identidade.

Passou a adolescência a falar com o pai sob a vigilância dos guardas prisionais. Sabia algumas senhas, mas as senhas não davam para perguntar como tinha sido a vida dele todos aqueles anos separados ou para lhe contar como tinha crescido em Vila Franca de Xira. Essa relação, não sendo “normal”, era aquela que ele podia ter e era o que conhecia, numa família em que tios, primos, irmãos, todos eram anti-fascistas e todos sofreram barbaramente nas prisões da PIDE.

Álvaro Pato quase não consegue falar do irmão Rui, cadastrado pelos fotógrafos da PIDE ao colo da mãe que veio a suicidar-se pouco depois de sair da prisão. É uma das fotografias que Susana de Sousa Dias encontrou nos Arquivos da PIDE e da qual partirá para contar a história da família Pato, no próximo filme, “Luz Obscura”.

Para Álvaro Pato, é mais difícil falar sobre a infância e a família do que sobre a tortura. A tortura conta-se com um murro na mesa de sobressaltar um torturado depois de muitos dias sem dormir. A dor da pancadaria, diz, “deixa-se de sentir.” A outra não.

Álvaro Pato não tinha tomado a iniciativa de contar a sua história. Ao fim de todos estes anos, ainda não consegue conter as lágrimas. Mas fala com as lágrimas que forem necessárias porque parece-lhe que fazem falta iniciativas como o filme “48”, “que levem as pessoas a falar”. Parece-lhe que Portugal tem esquecido a dimensão repressiva da ditadura fascista. E faz uma acusação: “A democracia não resolveu esta questão e deixou os criminosos de antes do 25 de Abril completamente incólumes.”

Desde sempre, o normal para Álvaro Pato era “estar do lado da luta, a fazer alguma coisa para alterar o estado das coisas”. Foi preso em 1973.

“48” termina com Álvaro Pato a contar a libertação de Caxias, de 26 para 27 de Abril, quando pôde começar uma “vida normal”. Foi logo ali que começou essa vida, assim que respirou ar livre e reencontrou uma antiga namorada, à espera dele e dos outros prisioneiros políticos, com milhares de outras pessoas em Caxias. Voltaram a ver-se no meio de outra multidão, na chegada de Álvaro Cunhal. Casaram em Julho. No ano seguinte tiveram o primeiro filho e depois mais outro rapaz; esperam agora o primeiro neto.

“‘Vida normal’ tem a ver com isto, que considero muito importante e que não tive em miúdo: a vida com os pais”, diz Álvaro Pato. “Não termos que nos preocupar se vamos presos, se temos familiares em risco de vida. O normal é isso. E acreditarmos que o futuro depende de nós, que a história é feita pelas pessoas.”

Matias Mboa. Preso em 1964

Matias Mboa foi vendido por um saco de moedas, mais precisamente por 200 escudos. Estava em Maputo com a cabeça a prémio, quando um companheiro o conduziu de uma reunião da FRELIMO para a Base nº2. A seguir, foi dar a morada à PIDE. Os agentes chegaram à meia-noite com metralhadoras. Mboa ainda pegou numa pistola, mas depois lembrou-se do que lhe tinham ensinado, que um combatente não é um suicida. O pai e a mãe gritavam, choravam. A Base nº 2 não era mais do que a sua casa. Depois a sua casa passou a ser, por sete anos, a prisão da Machava.

Estar a falar com liberdade pelo Skype desde Moçambique para Portugal podia estar na lista de coisas boas pelas quais valeu a pena estar preso. Na lista de coisas más: nunca ter aprendido a dançar bem; não ter estudado quando era jovem; custar até ler sobre o que passou, como agora, quando abre o livro de memórias, publicado recentemente, e lê: “Quero esquecer-me de ti, Machava. Quem sou eu com tanto medo, com tanta indiferença? Quem sou eu?”

Passaram exactamente 40 anos desde que foi libertado. Ajudou a fazer a independência de Moçambique. Passou pela guerra civil e pela paz. Criou filhos e netos. E durante todo este tempo foi reencontrando o homem que o tinha denunciado por 200 escudos. Encontrava-o na rua e, em vez de lhe voltar costas, falava-lhe. Um dia, convidou-o para sua casa, e abraçou-o.

“Este espírito atribuo-o muito à religião”, diz. A única vez que Deus é mencionado em “48” é durante a entrevista de Matias Mboa, de quem não vemos um rosto de um arquivo da PIDE, porque as imagens dos resistentes africanos não ficaram para a história.“Pai, com esta tortura posso vir a perder a pouca fé que tenho”, ouve-se sobre uma imagem de um campo de vigilância.

Como é que Deus lida com o sofrimento dos homens é sempre a pergunta que fazemos perante o lado mais negro da História. Esta é resposta de Mboa e podia aplicar-se a todos os presos políticos da PIDE, até aos que não acreditam: “O sofrimento por uma causa justa e nobre aproxima-nos de Deus.”

Texto publicado no Ípsilon, Público, 22 de Abril de 2011.

 

por Susana Moreira Marques
Afroscreen | 7 Junho 2011 | 48, ditadura, PIDE, Portugal, Susana Sousa Dias