África é o último território da arte contemporânea, entrevista a Miguel Amado

A Fundação PLMJ acaba de inaugurar, em Lisboa, Idioma Comum, amostra da sua colecção de arte contemporânea dos países da CPLP. É arte que fala português mas que pode ser entendida em qualquer parte. O comissário Miguel Amado, como os artistas expostos, tem raízes em muitos lados.


Quando começaste a fazer pesquisa para a Fundação PLMJ nas cenas artísticas dos países africanos de língua portuguesa, o que procuravas?

Não queriamos começar por aquilo que é o habitual, indo à procura de uma arte com uma vertente étnica ou muito ligada a tradições locais, mas tentar encontrar artistas que, mantendo as suas raízes e abordando os problemas dos contextos em que vivem, têm uma linguagem contemporânea, entendível em Luanda, em Lisboa, em Nova Iorque.

 René Tavares e obra René Tavares e obra

Os jovens artistas nestes países já não estão amarrados aos estereótipos do que é suposto ser a arte africana?

Não. Muitos deles já nasceram depois da independência: os laços com a ex-metrópole não se fazem sentir, e eles fazem a crítica dessa relação que existiu durante séculos. Por outro lado, são artistas que falam muito do período de guerra civil e do pós-guerra. Vivem sobretudo nas capitais e têm uma linguagem muito próxima daquilo que nós entendemos como cultura urbana. Por exemplo, há um artista de Luanda que agora vive em Lisboa, o Yonamine, cuja linguagem é a do graffiti e das iconografias pop. Eu fiz uma exposição com ele em Nova Iorque e ele tem uma linguagem que as pessoas em Nova Iorque reconhecem, que remete por exemplo para artistas como o Basquiat.

obra de Jorge Diasobra de Jorge DiasObra de Abrãao VicenteObra de Abrãao Vicente

Como é que surgiu essa exposição em Nova Iorque?

Embora trabalhe na fundação PLMJ e faça outros trabalhos em Portugal, vivo em Nova Iorque, e nos últimos cinco anos tenho vindo a desenvolver residências em museus ou instituições. De Setembro de 2010 até ao verão de 2011, sou comissário em residência no Abrons Art Centre, no Lower East Side, em Manhattan, onde tenho agendado vários momentos de programação, o primeiro dos quais foi em Outubro com as exposições do Yonamine e de uma artista mexicana.

A mim interessa-me a produção artística para além do cânone ocidental. Cada vez mais tabalho sobre os efeitos da globalização e a arte do outro mundo, isto sem ser levado pelo fascínio pelo exótico, que era aquilo que levava os europeus a viajar pela África, o Médio Oriente ou a Ásia. Já não é o fascínio do exótico, é o entendimento de que não há um centro – há vários e as produções destes centros são tão ou mais relevantes para a percepção de um mundo onde a diáspora e os fluxos migratórios são muito importantes e onde a construção de identidade já não passa só pela nacionalidade.

 

obra de Kiluanji Kia Hendaobra de Kiluanji Kia Henda

Em Nova Iorque, depois da moda da China e da Rússia, há um particular interesse por África?

Sim. Os comissários de exposições andam sempre à procura da próxima novidade. Primeiro, foi a América do Sul; depois, a Ásia – a China e a Índia; nos últimos anos, o Médio Oriente, com o ressurgimento da ligação entre arte e política; África é hoje, em 2011, o último território, entre aspas, por descobrir.

A África de expressão portuguesa ainda está um bocadinho ignorada e o meu papel pode ser um pouco esse: servir de interlocutor.

Estou a organizar para final de Fevereiro no Abrons Arts Centre uma exposição colectiva – o título, a partir de uma frase do Guy Debord, é “Os dias desta sociedade estão contados”, e é sobre a ideia de como a crise criou uma situação no início do século de fim de século em que tudo é posto em causa – e um dos artistas representados é o angolano Kiluanji Kia Henda. É talvez o artista de quem nunca tinha ouvido falar, e que conheci através desta pesquisa [nas cenas artísticas da CPLP], que mais me surpreendeu.

Obra de Délio JasseObra de Délio Jasse

A exposição na Fundação PLMJ chama-se Idioma Comum. Há um idioma comum entre estes 15 artistas?

Há a língua portuguesa que une esta gente toda; e partilham uma linguagem que vai para além das tradicionais representações do outro.

Há muitos trabalhos sobre a experiência da diáspora, sobre a situação do artista que tem raízes em muitos lados.

detalhe de obra de Yonaminedetalhe de obra de Yonamine

Entrevista originalmente publicada na revista Pública, jornal Público, de 16/01/11

 

Miguel Amado é comissário da Fundação PLMJ, em Lisboa, comissário em residência no Abrons Arts Center, em Nova Iorque (2010-11), e na Context Gallery, em Derry~Londonderry, Irlanda do Norte (2010-11) e crítico da Artforum. Foi comissário associado do Centro de Artes Visuais, em Coimbra (2009-10), comissário em residência no International Studio & Curatorial Program, em Nova Iorque (2009), associado curatorial da Rhizome no New Museum, em Nova Iorque (2006-07), editor daW-Art (2005-06) e comissário do Centro de Artes Visuais, em Coimbra (2003-05). Estudou Curating Contemporary Art no Royal College of Art, em Londres (2001-03), e frequentou a Night School no New Museum, em Nova Iorque (2008). Comissariou diversas exposições e projectos em Portugal e no estrangeiro, as mais recentes das quais as seguintes: “The Days of This Society Are Numbered” (Abrons Arts Center, Nova Iorque); “Idioma Comum: Artistas da CPLP na Colecção da Fundação PLMJ” (Espaço Fundação PLMJ, Lisboa); “Tania Candiani” (Abrons Arts Center, Nova Iorque); “Yonamine” (Abrons Arts Center, Nova Iorque); “Runo Lagomarsino” (Centro de Artes Visuais, Coimbra)

por Susana Moreira Marques
Cara a cara | 22 Janeiro 2011 | arte contemporânea, comissário, língua portuguesa, miguel amado