Os Soulèvements de la terre e o livro "Premières secousses"
«Fazer descer a ecologia à terra: por uma luta terra a terra» não é apenas uma simples formulação — é uma linha política. Lê-se logo nas primeiras páginas do livro Premières secousses [Primeirostremores], escrito pelo movimento francês dos Soulèvements de la terre (doravante SDT)1 e publicado pela editora francesa La Fabrique em abril de 2024, a sair a tradução em português pela Tigre de Papel em outubro. No início do livro, podemos continuar a ler: «Trazer a ecologia para a terra significa desistir da ideia de “salvar o planeta”. Esta ambição de super-heróis é demasiado grande para nós. A Terra não precisa de nós. Ela precedeu-nos e sobreviver-nos-á. Esta pretensão é tão exagerada como as suas consequências são irrisórias. Esta ambição é muitas vezes reduzida ao apelo a um hipotético “governo mundial” para que tome “medidas” contra as alterações climáticas. Tal como o céu, o clima parece estar fora do nosso alcance. Como um todo inacessível, ele ergue-se acima de nós e excede-nos. A primeira vaga do “movimento climático” confrontou-nos com esta impotência. […] Perante este impasse, nós apostamos numa ecologia terra a terra, enraizada nas lutas pelo acesso à terra e nas lutas territoriais» (p. 15).
Os SDT são um movimento nascido em 2021 de uma assembleia na ZAD de Notre-Dame-des-Landes (França) na qual participaram duzentas pessoas de diferentes coletivos de agricultores2, ambientalistas, sindicais e autónomos. A assembleia reunia-se em torno de duas questões principais: a artificialização e a usurpação de terras, analisadas nas suas dimensões ecológicas e agrícolas, mas também sociais e coloniais. Durante a assembleia, foi decidida uma primeira série de ações a realizar durante um período de seis meses em várias zonas onde estavam iminentes projetos de usurpação de terras. Os métodos de ação foram rapidamente definidos: manifestações, bloqueios, ocupações de terras e desarmamentos. Desde o início, a composição está no centro da abordagem organizacional dos SDT. Contrariando o fetichismo identitário, em que cada um fica confinado a formas de ação convencionais: lobbying e recursos jurídicos, mobilização de massas ou confronto, legalidade ou ilegalidade, acontecimento simbólico ou sabotagem concreta. A composição visa, por um lado, a articulação de diferentes alavancas, de forma a unir forças e a dar o melhor de cada uma delas, agindo de forma híbrida, o que aumenta as chances de um desfecho vitorioso, e, por outro, permite uma não dissociação entre uns e outros e a vontade de não deixar que o Estado faça o trabalho de separação e classificação necessário ao exercício da repressão.
Em três anos, os SDT realizaram cerca de quarenta ações por toda a França em apoio às lutas locais: defesa de hortas comunitárias periurbanas, lutas contra projetos rodoviários, contra as infraestruturas de alta velocidade destruidoras de vales e montanhas (como o túnel Lyon-Turim) e contra as indústrias do betão, as suas pedreiras e cimenteiras. Desempenharam um papel ativo na alteração da relação de forças numa série de lutas locais: contra as megabacias de retenção hídrica3 e contra a autoestrada A69 (Toulouse-Castres); e apoiaram uma série de vitórias de etapa: impedindo a extensão da pedreira da Lafarge em Saint-Colomban, travando o projeto de megabacia em La Clusaz e bloqueando as obras no glaciar da Girose (Alpes). As estratégias têm sido vitoriosas, a ponto de forçar o Estado francês a uma escalada de criminalização do movimento: violência policial com recurso a armas de guerra, repressão jurídica dos membros dos SDT, acusações de «ecoterrorismo» e a tentativa de dissolução do movimento4. Os SDT são um movimento impulsionado pelo desejo de sair do sentimento de impasse e de paralisia catastrofista, redescobrindo a confiança e a alegria na ação direta coletiva. Um movimento que considera que assumir um certo grau de ilegalidade, de desobediência e de conflitualidade é hoje absolutamente necessário para preservar as terras e a água, mas que é também necessário atuar paralelamente em várias outras frentes políticas e jurídicas. Perante tais desafios, nenhuma alavanca deve ser negligenciada; cada aliado é tão precioso como a análise ontológica dos nossos inimigos.
Premières secousses foi escrito a mais de dez mãos e revisto por dezenas de pessoas desde o coração do movimento — é um balanço de etapa destes três anos dos SDT. O livro formula as quatro hipóteses políticas dos SDT: o desarmamento do betão, o desmantelamento do complexo agroindustrial, a reapropriação de terras e a construção de uma organização passo a passo. O livro aborda também os paradoxos e as contradições que atravessam o movimento, nomeadamente: a voluntariedade ativista versus a vontade de ancorar o movimento a longo prazo, a elaboração estratégica que implica a escolha da concentração de forças em determinados locais e a atenção às dinâmicas horizontais e transversais do movimento. O livro elabora igualmente certas posições políticas: sobre a natureza, a recusa da defesa reacionária da terra, a subsistência, a relação com o Estado e a catástrofe; e deseja alimentar o debate sobre o que poderiam ser formas de organização revolucionárias e redes de resistência.
O livro está estruturado em torno das quatro hipóteses políticas dos SDT. Cada parte apresenta a hipótese e aborda os seus próprios paradoxos, baseando-se em relatos de ações vividas, construindo as palavras a partir dos gestos e evitando, assim, um discurso sem chão.
A primeira parte, desarmar o betão, introduz a necessidade do desarmamento face à cumplicidade entre o Estado e as empresas. Por outras palavras, apela à organização coletiva para travar as infraestruturas de devastação, com base no legado histórico das lutas operárias e ambientais. No livro constrói-se uma semântica em torno do termo desarmamento : «O “desarmamento” tem a vantagem de explicitar numa só palavra o alcance ético do gesto e a natureza dos alvos. Constitui uma espécie de moral provisória para a ação: o que nos mata, temos o direito de o desfazer. É uma autodefesa primordial e os meios são inteiramente orientados para um fim […]. O desarmamento provoca uma deslocação ao relegitimar a ação direta através da nocividade evidente dos alvos a que se dirige» (p. 53).
O objetivo, portanto, é o desarmamento do betão, que é um dos materiais mais nocivos do planeta e está em constante expansão, tendo as suas quantidades triplicado nos últimos vinte anos. A corrida à produção de betão é indissociável da uniformização dos territórios e da artificialização da terra. A «necessidade» de produzir betão serve de pretexto para o controlo colonial dos seus promotores em todo o mundo.
A segunda parte trata do desmantelamento do complexo agroindustrial, da organização contra os sectores agroindustriais que devastam os organismos vivos (solo, água, biodiversidade), destroem o campesinato e monopolizam os rendimentos dos agricultores, apanhados num impasse entre as indústrias a montante: fornecedores, vendedores de equipamentos agrícolas, empresas de sementes industriais, vendedores de insumos e alimentos; e as indústrias a jusante: cooperativas de recolhadistribuição, supermercados e indústrias agroalimentares. Estrategicamente, os SDT optam por atacar certos sectores tóxicos e certos pontos específicos de alguns sectores (por exemplo, a inadaptação às alterações climáticas, que permite manter um modelo para as megabacias, a intensificação dos fluxos de tráfico para as autoestradas e para as plataformas logísticas), na convicção de que concentrar as forças é mais eficaz do que dispersá-las por todo um conjunto de lutas. É por isso que optam por uma relação estratégica e conflituosa com o Estado e os lobbies industriais. Por um lado, apoiando a exigência de moratórias e de reformas estruturais, à imagem de certas componentes sindicais do movimento que têm uma ancoragem jurídica, e, por outro, visando a coconstrução de uma rede de resistência a vários níveis (base de retaguarda logística, jurídica, material, de cuidados médicos e de abastecimento alimentar, entre outros).
A terceira parte aborda a necessidade da reapropriação de terras, na qual se pode ler: «Numa altura em que Elon Musk está a colonizar os céus, a terra — os seus usos e a sua partilha, como é cuidada e trabalhada — é uma questão política crucial. A terra dá-nos uma aderência ao mundo. A questão fundiária está na interseção entre a questão ecológica, a questão social e a questão colonial.» Parar os grandes projetos infraestruturais de betão e desmantelar o complexo agroindustrial abre a perspetiva da necessidade da reapropriação de terras e de uma reforma agrária que arranque a terra e a água à lógica do mercado e as transforme em comuns, a fim de conciliar: a defesa das condições de vida e de trabalho dos agricultores, o favorecimento das instalações camponesas, o cuidado da terra e dos seres vivos, a preservação da água, a construção de uma autonomia alimentar e o acesso de todos à terra, à água e a uma alimentação de qualidade. A perspetiva geral é a de uma economia de subsistência, ou seja, a da produção de bens essenciais inseridos em relações sociais desejáveis, em vez de uma sociedade organizada com vista à produção de mercadorias. Esta perspetiva é acompanhada de uma rejeição: a de uma defesa reacionária da terra e da vida, encarnada em correntes que querem fronteiras herméticas entre nações e géneros (racismo/transfobia/homofobia). Defende-se seres vivos múltiplos e territórios abertos!
A quarta parte do livro aborda a construção de uma organização passo a passo. Apesar de uma desconfiança em relação às organizações, em parte na sequência de exemplos de projetos revolucionários infelizes e das suas recuperações burocráticas; e depois de observar os limites de um ativismo disperso, de ações e compromissos sem amanhã, sente-se a necessidade de uma forma de organização coerente. A degradação do clima, a ameaça fascista, o agravamento das desigualdades e das alienações causadas pelo imperialismo mercantil em todas as esferas da vida tornam, mais do que nunca, necessária a criação de espaços organizacionais capazes de provocar mudanças emancipatórias. Esta última parte do livro pretende ser uma contribuição para o debate
histórico sobre as modalidades de organização, essencial a qualquer perspetiva de transformação radical do mundo.
Se o surgimento do movimento dos Soulèvements de la terre foi a melhor notícia dos últimos anos no que diz respeito às lutas ecológicas e ambientais, a publicação do livro que aqui abordamos parece-nos um contributo essencial, com os recursos teóricos, táticos e estratégicos que nos apresenta, para as lutas ecológicas, agrícolas e sociais, transmitindo o gosto e a necessidade absoluta da ação direta coletiva.
Soulèvements de la Terre
Pagelas:
Os SDT são um movimento nascido em 2021 de uma assembleia na ZAD de Notre-Dame-des-Landes (França) na qual participaram duzentas pessoas de diferentes coletivos de agricultores, ambientalistas, sindicais e autónomos.
O livro está estruturado em torno das quatro hipóteses políticas dos SDT. Cada parte apresenta a hipótese e aborda os seus próprios paradoxos, baseando-se em relatos de ações vividas, construindo as palavras a partir dos gestos e evitando, assim, um discurso sem chão.
Se o surgimento do movimento dos Soulèvements de la terre foi a melhor notícia dos últimos anos no que diz respeito às lutas ecológicas e ambientais, a publicação do livro que aqui abordamos parece-nos um contributo essencial, com os recursos teóricos, táticos e estratégicos que nos apresenta, para as lutas ecológicas, agrícolas e sociais, transmitindo o gosto e a necessidade absoluta da ação direta coletiva.
Umas amigas dos Soulèvements de la terre
Artigo originalmetne publicado no Mapa #42, julho 2024.
- 1. Decidimos guardar para este texto o nome original do movimento em francês. A tradução em português seria algo entre as revoltas da terra, os levantamentos da terra ou as insurreições da terra.
- 2. Em francês, paysan remete para quem cultiva a terra fora de uma lógica produtivista e com respeito pelos ciclos da terra, associado ao sindicato agrícola de esquerda — a Confédération Paysanne — e a nível internacional à Via Campesina. No texto ora se usa camponês e campesinato, ora agricultor.
- 3. As megabacias de retenção hídrica são gigantescas instalações de armazenamento de água destinadas a satisfazer as necessidades da agroindústria, nomeadamente durante os meses de seca. Trata-se de enormes bacias artificiais, plastificadas e impermeáveis, de uma superfície de 8 a 18 hectares, ou seja entre 10 e 23 campos de futebol. Contrariamente ao que os seus promotores pretendem, o armazenamento da água faz-se através do bombeamento de água, quer se trate de águas subterrâneas (lençóis freáticos) ou de rios.
- 4. Ligação para a tradução em portugês do texto publicado na sequência da ameaça de dissolução do movimento dos SDT pelo Estado francês em março de 2023: https://lessoulevementsdelaterre.org/pt-pt/blog/nous-sommes-les-soulevem....