O luso-tropicalismo e o colonialismo português tardio

No presente artigo apresentam-se e analisam-se as formas como o Estado Novo português1, no período posterior ao fim da Segunda Guerra Mundial, utilizou o luso-tropicalismo, “quase-teoria” desenvolvida pelo cientista social brasileiro Gilberto Freyre (Recife, 1900-1987) sobre a relação de Portugal com os trópicos.2

Uma «arqueologia» do luso-tropicalismo revela que as suas bases começaram a ser lançadas em
Casa-grande & senzala (1933), considerado um dos “livros que inventaram o Brasil” (Cardoso 1993). Depois, descobrem-se vestígios mais evidentes na colectânea Conferências na Europa (1938) e na sua versão revista (O mundo que o português criou, de 1940), sobre todos os espaços de colonização portuguesa. A nova formulação é formalmente explicitada nas conferências “Uma cultura moderna: a luso-tropical” (Goa, Novembro de 1951); e “Em torno de um novo conceito de tropicalismo” (Coimbra, Janeiro de 1952), integradas na obra Um brasileiro em terras portuguesas (1953). Integração portuguesa nos trópicos (1958) e O luso e o trópico (1961) estabelecem a teoria e contribuem para a sua divulgação.

Em traços gerais, o luso-tropicalismo postula a especial capacidade de adaptação dos portugueses aos trópicos, não por interesse político ou económico, mas por empatia inata e criadora. A aptidão do português para se relacionar com as terras e gentes tropicais, a sua plasticidade intrínseca, resultaria da sua própria origem étnica híbrida, da sua “bi-continentalidade” e do longo contacto com mouros e judeus na Península Ibérica, nos primeiros séculos da nacionalidade, e manifesta-se sobretudo através da miscigenação e da interpenetração de culturas.

O Estado Novo português e o luso-tropicalismo

Em Portugal, até ao fim da Segunda Guerra Mundial, o pensamento de Gilberto Freyre apenas conheceu uma boa recepção no campo cultural (vd. Castelo 1998: 69-84). Da parte do poder político oscilou-se entre a rejeição implícita e a crítica aberta. Concluída a ocupação efectiva dos territórios coloniais, o Estado português apostava na afirmação do império, na extensão da máquina administrativa e fiscal colonial e na submissão dos indígenas, considerados povos selvagens, aos valores superiores de uma suposta raça portuguesa (cf. Alexandre 1979: 7). Além disso, entre os mitos da fundação da nacionalidade destacava-se a «reconquista cristã», feito heróico de destemidos soldados de estirpe europeia, o que não se compadecia com o relevo atribuído por Freyre ao fundo árabe e africano na constituição do carácter nacional português.

Gilberto Freyre com um pastor no Deserto do Namibe, 1952Gilberto Freyre com um pastor no Deserto do Namibe, 1952

A política colonial do Estado Novo nas décadas de 1930-1940 andava longe da teoria de Gilberto Freyre. Armindo Monteiro, ministro das Colónias entre 1931 e 1935, e principal ideólogo da «mística imperial», filia-se nas teses do «darwinismo social». Não concebe um relacionamento harmonioso e fraterno, numa base igualitária, entre brancos e negros. Atribui a Portugal o “dever histórico” de civilizar as “raças inferiores” que se encontram sob o seu domínio. Trata-se de proteger os “indígenas”, de os converter ao cristianismo, de os educar pelo (e para) o trabalho, de os elevar moral, intelectual e materialmente. A oposição rígida entre “civilizados” e “primitivos” acarreta a negação dos valores alheios e inviabiliza a perspectiva de reciprocidade cultural. Além disso, o modelo de desenvolvimento económico das colónias assentava na mera exploração dos recursos naturais e da mão-de-obra africana, através do trabalho forçado e das culturas obrigatórias, em benefício dos interesses da metrópole e dos colonos europeus.

O principal motivo de discordância relativamente à teoria de Gilberto Freyre radica na importância que o autor confere à mestiçagem. Numa reunião de topo do partido único do regime salazarista – a União Nacional –, o valor científico de
Casa-grande & senzala chega mesmo a ser posto em causa, precisamente por enaltecer a mistura racial (Ferreira 1944: 41). Evocando o trabalho de antropólogos físicos como os portugueses Germano Correia e Mendes Correia e o francês René Martial, Vicente Ferreira assevera que a mestiçagem produz efeitos nefastos: “degenerescências dos caracteres psíquicos e, porventura, também dos caracteres somáticos” (Idem: 39). O retrato que faz dos mestiços, mulatos e crioulos, carregado de preconceitos, é extremamente negativo; descreve-os como “impulsivos, indolentes, em regra pouco inteligentes, pouco dóceis e pouco morais” (Idem: 40). Com o objectivo de impedir a miscigenação e mesmo o convívio entre brancos e negros nas zonas de colonização étnica, assim como a concorrência económica entre os trabalhadores das duas raças, propõe que se estabeleça e aplique com rigor uma política de segregação racial nas regiões de povoamento branco, que proibia, nomeadamente, a utilização de mão-de-obra indígena pelos colonos portugueses (Idem: 78).

Convém salientar que mesmo Norton de Matos (antigo alto-comissário da República para Angola e candidato da Oposição democrática portuguesa às eleições presidenciais de 1949) coloca reservas de fundo ao pensamento de Gilberto Freyre, sobretudo no que respeita à miscigenação e à interpenetração de culturas. Embora recuse a ideia da inferioridade irremediável do negro, considera que a mestiçagem só será aceitável depois de concluído o processo de assimilação das “raças atrasadas” - processo que levará séculos. Enquanto europeus e africanos não se equiparassem em termos civilizacionais, não se devia repetir nas colónias portuguesas de África a experiência brasileira, sob pena de se assistir a um abastardamento dos valores da civilização ocidental.

O único aspecto do pensamento de Gilberto Freyre que merece o aplauso unânime dos colonialistas do regime e da Oposição, nos anos 30-40, prende-se com a confirmação da especial capacidade dos portugueses para a colonização. Pelo menos desde o último quartel do século XIX, face às pressões e ataques externos, perpassava no discurso político e ideológico nacional a ideia de uma particular adaptação dos portugueses ao clima tropical e de uma relação especial com os indígenas colonizados (Alexandre 2000: 393). A história e a antropologia eram convocadas para confirmar a existência dessas capacidades que distinguiam o comportamento do colono português em terras africanas do comportamento dos colonos do Norte da Europa.
Suzanne Daveau e Orlando RibeiroSuzanne Daveau e Orlando Ribeiro

O fim da Segunda Guerra Mundial determinou a condenação do projecto de hegemonia e pureza raciais da Alemanha nazi e a consciencialização de que a liberdade e a independência não eram apanágio dos países europeus, tendo antes um alcance universal. O princípio da autodeterminação dos povos colonizados foi consagrado na Carta da Organização das Nações Unidas, criada em 1945. Na Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) a autodeterminação foi consignada como direito fundamental e a ONU passou a atribuir às potências coloniais a obrigação de prepararem os territórios sob sua administração para a independência. Neste contexto, emergiu e consolidou-se o movimento anticolonialista e teve início o processo de descolonização, primeiro na Ásia e depois na África.

Portugal, confrontado a partir de 1945 com a pressão internacional favorável à autodeterminação dos territórios coloniais, tentará delinear uma argumentação capaz de legitimar a manutenção do status quo nas colónias portuguesas. Esse processo de legitimação do colonialismo português exigirá alterações na legislação, uma reformulação doutrinária e medidas inéditas de fomento económico em Angola e Moçambique.

Em 1951, no quadro da revisão da Constituição Política da República Portuguesa, o presidente do Conselho, António de Oliveira Salazar, apresenta uma proposta de revogação do Acto Colonial, que contempla a sua integração no texto constitucional, com mudanças de terminologia e outros pequenos ajustes. Segundo o governo, a clara afirmação da unidade nacional, apesar da dispersão geográfica de Portugal por vários continentes, é o principal objectivo a atingir. O termo «Império Colonial Português», com conotações negativas no novo contexto internacional, seria banido. O termo «colónias» daria lugar à “antiga” designação de «províncias ultramarinas». Apesar das reacções negativas de alguns procuradores à Câmara Corporativa, nomeadamente do ex-ministro das Colónias Armindo Monteiro, a proposta recebeu o apoio da maioria dos deputados da Assembleia Nacional e foi aprovada. Na nova formulação, Portugal aparece como uma «nação pluricontinental», composta por províncias europeias e ultramarinas, integradas harmoniosamente no todo nacional uno e indivisível. Escudando-se no facto de nominalmente não possuir «colónias», o Estado Novo considera que não tem que prestar contas à comunidade internacional do que se passa no interior das suas fronteiras. A tónica da política ultramarina seria, daí em diante, a «assimilação».

A lógica da assimilação não foi vertida para a política indígena. O
Estatuto dos Indígenas, revisto em 1954, continuava a negar a cidadania portuguesa à maioria da população de Angola, Moçambique e Guiné. Os assimilados, isto é, aqueles que provassem estar integrados na forma de vida e nos valores da civilização europeia, eram uma ínfima minoria, porque nunca houvera vontade de criar elites no ultramar, através de uma aposta consequente no alargamento do sistema de ensino aos africanos. As antigas elites crioulas do século XIX há muito que haviam sido arredadas do sistema político pelos colonos entretanto chegados e pela própria administração.

Dois meses depois da afirmação da unidade nacional na Constituição da República Portuguesa, Gilberto Freyre inicia uma visita por “terras lusitanas”, a convite do ministro do Ultramar Sarmento Rodrigues. O objectivo da viagem é dar a conhecer ao sociólogo brasileiro o ultramar português, para que ele o percorra “com olhos de homem de estudo” e, depois, produza um trabalho de reflexão sobre as realidades observadas. Será durante esta viagem que o sociólogo brasileiro usará pela primeira vez a expressão «luso-tropical» para caracterizar o modo de adaptação do português aos trópicos. Ora esta teoria era de enorme utilidade para o fortalecimento da ideia de «unidade da nação pluricontinental portuguesa» e para o programa de fixação de população originária da metrópole no ultramar. O Estado Novo soube
apropriar-se de algumas máximas luso-tropicalistas para se defender das pressões da comunidade internacional, sobretudo no quadro da ONU (Portugal integra esta organização em 1955), mas também em campanhas de propaganda do país no exterior, nas declarações dos altos representantes da nação à imprensa estrangeira e nos circuitos diplomáticos (vd. Castelo 1998: 96-101). Internamente, assiste-se a um momento de amplo consenso em torno da integridade nacional e da continuidade da missão histórica do país no mundo.

Política internacional e diplomacia
Confrontado com o artigo 73.º da Carta da Organização das Nações Unidas, o Governo de Lisboa nega a existência de «territórios não autónomos» sob jurisdição portuguesa. Sendo um Estado unitário espalhado por quatro continentes, à luz da Constituição da República Portuguesa revista em 1951, Portugal não se considera abrangido pelas obrigações impostas por aquele artigo. Em resposta às acusações que lhe são dirigidas na ONU, a delegação portuguesa centra a sua argumentação política em três pontos principais. A separação geográfica entre as províncias metropolitanas e as províncias ultramarinas é irrelevante, pois a geografia não fornece por si só uma base válida para definir colónia. Em qualquer parcela do território nacional vigora o princípio da igualdade de direitos e de oportunidades de todos os habitantes, independentemente da sua «raça»; a mestiçagem biológica e de culturas é considerada fonte de progresso e de desenvolvimento. As províncias de além-mar não são exploradas económica e financeiramente em favor das metropolitanas; aliás, nalguns territórios ultramarinos o crescimento económico chega a ser superior ao de Portugal continental. Em defesa da posição portuguesa, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Franco Nogueira, não se coíbe de evocar perante a Quarta Comissão da Assembleia Geral da ONU, na sessão de 8 de Novembro de 1961, cientistas sociais de renome internacional, nomeadamente o sociólogo Gilberto Freyre (Nogueira 1961: 213).

Franco Nogueira, Ministro dos Negócios Estrangeiros (1961-69)Franco Nogueira, Ministro dos Negócios Estrangeiros (1961-69)No discurso oficial, Portugal constitui uma comunidade multirracial, composta por parcelas territoriais geograficamente distantes, habitadas por populações de origens étnicas diversas, unidas pelo mesmo sentimento e pela mesma cultura. Como se comprova pela leitura dos estudos supostamente insuspeitos de Freyre, o poder exercido nas «províncias ultramarinas» portuguesas não é de natureza colonial, ao contrário do que sucede em territórios sob soberania de outros países.

Com vista a fazer frente ao novo momento internacional, inaugurado com a Conferência de Bandung, e fortalecer a argumentação portuguesa, na sequência da entrada de Portugal na ONU, o Estado Novo aposta na vulgarização das ideias de Gilberto Freyre junto dos países ali representados. Essa tarefa implica o acompanhamento constante do percurso intelectual de Freyre e traduz-se nomeadamente na colocação de dois dos seus livros nos «circuitos da diplomacia internacional».

Em meados dos anos 50, os diplomatas portugueses recebem indicações claras no sentido de acompanhar e transmitir ao Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) português informações sobre a produção bibliográfica, as entrevistas e a actividade académica do sociólogo brasileiro, bem como as notícias que são publicadas a seu respeito na imprensa internacional. No Arquivo Histórico-Diplomático do MNE encontra-se abundante documentação que testemunha esse acompanhamento diligente, desde livros, a textos de conferências, a recortes de entrevistas e artigos de (ou sobre) Gilberto Freyre publicados em revistas e jornais brasileiros, norte-americanos, ingleses, franceses, sul-americanos e outros.3


No início de 1959, o MNE distribui pelas embaixadas, legações, consulados e delegações de Portugal espalhados pelo mundo o livro de Gilberto Freyre,
Integração portuguesa nos trópicos, publicado pelo Centro de Estudos Políticos e Sociais da Junta de Investigações do Ultramar, no ano anterior. Juntamente, remete a seguinte circular:

“Tenho a honra de enviar a V. Exa., em separado, [x] exemplares duma publicação do Ministério do ultramar sobre o tema Integração Portuguesa nos Trópicos.

Como essa Missão verificará trata-se de um valioso estudo, em língua portuguesa e inglesa, do eminente professor, académico e historiador brasileiro Gilberto Freyre, que põe em relevo alguns dos aspectos mais notáveis da expansão portuguesa nas suas relações com povos e raças diferentes.

Parece vantajosa a utilização do referido estudo e por isso conviria que essa Missão não deixasse de o remeter às entidades que possam interessar”.4


Um número significativo de missões portuguesas, reconhecendo o valor político da obra e as suas potencialidades de argumentação e propaganda em favor da posição de Portugal, solicita ao MNE o envio de mais exemplares.

Alguns anos mais tarde, a tradução francesa da colectânea
O luso e o trópico (1961) também será distribuída pelas missões portuguesas no estrangeiro. Artur Moreira de Sá, secretário-geral do Congresso Internacional de História dos Descobrimentos, em ofício enviado ao director-geral dos Negócios Políticos e Consulares do MNE, justifica:

“Estando em distribuição a edição francesa do livro de Gilberto Freyre
O luso e o trópico, e havendo o maior interesse em que ele seja dado a conhecer aos representantes estrangeiros na ONU, às representações diplomáticas acreditadas em Lisboa, às embaixadas e consulados portugueses e demais entidades que V. Exa. julgar conveniente, rogo a V. Exa. se digne determinar que sejam levantados na Presidência do Conselho os 2.000 exemplares postos à disposição desse Ministério.”5

Tudo indica, portanto, que a partir de meados da década de 1950 se verifica um esforço sistemático por parte do MNE de doutrinação dos diplomatas portugueses no luso-tropicalismo. O objectivo é muni-los de argumentos (supostamente) científicos, alicerçados na história, na sociologia e na antropologia, capazes de legitimar a presença de Portugal em África, na Índia, em Macau e em Timor. Cabe-lhes igualmente a tarefa de divulgar as ideias do sociólogo brasileiro junto dos delegados dos países com assento na ONU. A necessidade de difundir e afirmar o luso-tropicalismo nas Nações Unidas torna-se ainda mais premente depois do início da guerra colonial em Angola e da ocupação de Goa, Damão e Diu pela União Indiana. Tudo indica que o luso-tropicalismo foi surtindo efeitos no exterior6, pelo menos até ao início da luta armada pela independência de Angola. A partir então, tornar-se-ia cada vez mais difícil à diplomacia portuguesa sustentar a posição anacrónica do Governo de Lisboa.

Propaganda e meios de comunicação
Orlando Ribeiro e Talibé, Bissau, 1947Orlando Ribeiro e Talibé, Bissau, 1947A difusão da posição portuguesa não se circunscreve aos fóruns políticos internacionais e aos meios diplomáticos. Nas campanhas de propaganda nacional no estrangeiro enaltece-se o contributo português para a fraternidade entre os povos e para a integração de raças e culturas diferentes na mesma nação. A participação do país na Exposição Universal e Internacional de Bruxelas em 1958 é disso um bom exemplo. Na obra publicada por iniciativa do comissariado português da Exposição, sugestivamente intitulada Portugal: Oito séculos de história ao serviço da valorização do homem e da aproximação dos povos, encontramos abundantes referências à doutrina luso-tropical. No artigo “Um povo na terra”, o geógrafo Orlando Ribeiro assegura que “Português não é […] um conceito de raça, mas antes uma «unidade de sentimento e de cultura», que aproximou homens de várias origens” (AAVV 1958: 38). “Chamando as populações locais a participar numa civilização comum”, Portugal estaria a impedir “o despertar de fictícios nacionalismos locais” (Idem: 39). Adriano Moreira, citando abundantemente o ensaio de Gilberto Freyre Integração portuguesa nos trópicos (na altura ainda inédito), procura demonstrar que se deve a Portugal “a formulação do único humanismo que até hoje se mostrou capaz de implantar a democracia humana no mundo para onde se expandiu o Ocidente”(Idem: 305). Por seu torno, Sarmento Rodrigues defende que a “unidade nacional portuguesa” se formou e existe “pela vontade de todos os homens, com o sentido de elevar todos os portugueses e sem a intenção de explorar economicamente, ou de qualquer outra maneira, em proveito do povo original, seja que parcela for” (Idem: 315). Acentua igualmente o carácter cristão das relações humanas no seio da nação portuguesa, pautadas pela interpenetração cultural e pela ausência de “preconceitos contra a miscigenação” (Idem: 316).

Nos anos 60, num esforço para reter apoios e cativar a opinião pública internacional, Salazar concede várias entrevistas à imprensa estrangeira, nas quais utiliza argumentos inspirados no luso-tropicalismo para justificar a permanência de Portugal em África. Nas suas declarações acentua invariavelmente o “pendor natural [dos portugueses] para os contactos com outros povos, contactos de que sempre estiveram ausentes quaisquer conceitos de superioridade ou discriminação racial”.7
 Socorrendo-se das teses de Freyre, explica que os portugueses não saberiam estar no mundo de outra maneira, “porque foi num tipo de multirracialidade que, há oito séculos, nos formámos como nação, no termo de diversas invasões, oriundas do Oriente, do Norte e do Sul, isto é, da própria África” (Ibidem). Questionado sobre as diferenças entre a política de Portugal nas suas províncias ultramarinas e a de outras potências, volta a recorrer às máximas luso-tropicalistas: “diferimos fundamentalmente dos restantes, porque procurámos sempre unir-nos aos povos com quem entrámos em contacto não apenas por laços políticos e económicos mas essencialmente por um intercâmbio cultural e humano no qual lhes demos um pouco da nossa alma e deles absorvemos o que podiam dar-nos”.8Não sendo um apologista da miscigenação, salienta agora que da fusão do português com os “povos descobertos” resultaram as sociedades multirraciais brasileira, goesa e cabo-verdiana e são esses exemplos de capacidade criadora portuguesa que estão prestes a repetir-se em Angola e Moçambique.9

Gilberto Freyre, Goa (Índia), 1952Gilberto Freyre, Goa (Índia), 1952
Tendo em conta a natureza ditatorial do regime, não é de estranhar que o Estado Novo tenha recorrido ao controlo, censura e manipulação da informação veiculada pelos órgãos de comunicação, tanto para o exterior como dentro do país. A conquista da opinião pública era um elemento decisivo na batalha pela sobrevivência da «nação pluricontinental portuguesa». Foram dadas instruções precisas à imprensa sobre a abordagem de notícias relativas ao ultramar. Assim, deviam evitar-se expressões que denotassem separação entre a metrópole e as províncias ultramarinas; Portugal teria que figurar em qualquer enumeração de nações ou de estados asiáticos ou africanos; não se podia sequer insinuar qualquer distinção entre raças nem atacar as religiões islâmica, hindu e budista.10 O Gabinete de Negócios Políticos do Ministério do Ultramar encarregou-se de elaborar comentários diários, para serem transmitidos para todo o império pela Emissora Nacional (estação radiofónica do Estado), nos quais se tratavam temas do interesse nacional (o ataque da União Indiana a Goa, o “terrorismo” em Angola, o anticolonialismo da ONU, a ‘ameaça’ comunista, o povoamento ultramarino, o desenvolvimento económico de Angola, etc.) e se apresentava Portugal como nação etnicamente e culturalmente heterogénea, dispersa geograficamente por vários continentes. Gilberto Freyre (o autor e/ou o seu pensamento) é muitas vezes evocado nesses comentários. É o caso do comentário sobre a Comunidade Luso-Brasileira, de que reproduzimos o seguinte excerto:

“O que define, efectivamente, Portugal, o que nos individualiza entre as demais Nações, é aquilo que se tem chamado espírito de missão, quer dizer; afã de levar mais além no espaço o conceito de vida de que se é portador; não o desejo de um Império económico ou terreno, nem sequer de domínio político – mas a vocação irresistível de transmitir a outros a Verdade de que se está possuído. […]

[…] Portugal só é inteiro quando é mundial – então, verdadeiramente começa a sua vida física; Portugal só atingirá a sua autêntica projecção no Mundo quando ultrapassar o plano nacional – o seu apogeu chegará com a plenitude da Comunidade Luso-Brasileira, com a maturidade do complexo lusotropical. É para isso que hoje caminhamos, é para isso que havemos de trabalhar.”11

Na prática, o objectivo dos comentários, de vincado conteúdo propagandístico, era fazer a ‘pedagogia’, a doutrinação dos portugueses sobre quem eram (enquanto povo), qual a sua missão no mundo e como se deviam comportar. A pretexto de um colóquio que estava a decorrer em Lisboa, ouvia-se na Emissora Nacional:

“[…] é essencial […] sabermos o que significa ser português e como tem de se traduzir nas realidades político-sociais e no quadro da geografia humana essa condição de português. Ora – porque a questão não estava realmente em causa e todos os portugueses, mesmo inconscientemente, sentiam a presença, nas suas almas, dos elementos que constituem essa fundamentação – não tinha havido até agora, praticamente, a preocupação de investigar os tais elementos por forma sistemática e de procurar com eles elaborar a tal fundamentação como corpo estruturado.

Um gouli com as duas mulheres e a sua prole, Goa, 1955Um gouli com as duas mulheres e a sua prole, Goa, 1955

E foi a agressão contra nós, em Angola, que veio chamar violentamente a atenção dos portugueses para a necessidade dessa investigação e dessa elaboração, não apenas como exercício intelectual mas como base prática e consciente de acção. Do bastante que vai já aparecendo sobre o assunto – e é impossível não destacar os estudos de Gilberto Freyre e o livro apaixonante de Francisco Cunha Leão sobre «O enigma português» - é justo chamar a atenção para o colóquio agora organizado em Lisboa por um grupo de jovens escritores e pensadores sobre o tema geral «O que é o ideal português?»”.12

Numa tentativa de contrariar a todo o transe as acusações de racismo e discriminação nas colónias portuguesas, bem como sentimentos de superioridade racial que persistiam entre os colonos, noutro comentário, chega-se a afirmar que os portugueses não são brancos:

“Pois é prezados ouvintes! Nós somos, sem sombra de dúvida, um povo
euro-africano, acima de tudo. Os descendentes desses cativos africanos – tal prática era ao tempo corrente em todo o Mundo e nomeadamente no seio das sociedades tradicionais africanas – fundiram-se com as gentes portuguesas da época e a vivência desses genes, desses factores de hereditariedade assim obtidos, persiste nos chamados metropolitanos aos quais um incompreensível critério geográfico pretende negar direitos e afinidades em relação à África.

Aqueles que nos escutam, podem ficar com a certeza de que, entre os Portugueses não há «brancos» no sentido de etnia diferenciada.”13


Meio académico e científico
Nas margens do discurso oficial, o luso-tropicalismo vai encontrando receptividade junto de especialistas de diversas áreas do saber: Jorge Dias (antropologia), Orlando Ribeiro e Francisco José Tenreiro (geografia), Adriano Moreira (ciência política), Mário Chicó (história da arte), Henrique de Barros (agronomia), Almerindo Lessa (ecologia humana); António Quadros (filosofia), etc. Adriano Moreira desempenha um papel fundamental nesse processo, na qualidade de professor e director do Instituto Superior de Estudos Ultramarinos, depois Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina (instituição de ensino superior que preparava os quadros da Administração ultramarina); e como director do Centro de Estudos Políticos e Sociais (CEPS) da Junta de Investigações do Ultramar (JIU), adstrito ao referido instituto.
Adriano José Alves Moreira, Ministro do Ultramar (1961-62)Adriano José Alves Moreira, Ministro do Ultramar (1961-62)
No ano lectivo de 1955-56, Adriano Moreira introduz o estudo do luso-tropicalismo no programa da sua cadeira de Política Ultramarina, do 2.º ano do curso de Altos Estudos Ultramarinos. A doutrina de Gilberto Freyre passa a ser sistematicamente ministrada num estabelecimento de ensino superior português e a inspirar numerosos trabalhos teóricos e de campo14
, dissertações de licenciatura e de doutoramento. Muitos desses trabalhos são depois publicados pelo Instituto Superior de Estudos Ultramarinos (mais tarde Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina) e pelo CEPS da JIU, na colecção «Estudos de Ciências Políticas e Sociais».

O trabalho desenvolvido por Adriano Moreira à frente do CEPS, criado pela Portaria n.º 15737, de 18 de Fevereiro de 1956, denota preocupações nascidas da reflexão sobre o luso-tropicalismo. O centro tem como fins “coordenar, estimular e promover o estudo dos fenómenos políticos e sociais verificados em comunidades formadas em territórios ultramarinos ou relacionados com estas, observando e expondo especialmente os fundamentos, características e resultados da acção desenvolvida pelos portugueses no Ultramar” (Moreira 1956). A sua actividade divide-se por três grandes áreas: a edição (nomeadamente através da colecção «Estudos de Ciências Políticas e Sociais»); a organização de colóquios; e a coordenação de missões de estudo às províncias ultramarinas.

A análise dos trabalhos publicados na colecção «Estudos de Ciências Políticas e Sociais» permite avaliar a repercussão do luso-tropicalismo no campo das ciências sociais ligado à problemática ultramarina. Encontramos referências directas às ideias de Freyre (nomeadamente através de citações da sua obra) e/ou a inclusão dos seus livros na bibliografia de um número significativo daqueles estudos (cf. Castelo 1998: 102-103).

Conseguimos ainda vislumbrar a influência do ideário luso-tropical nas iniciativas que Adriano Moreira impulsionou à frente da Sociedade de Geografia de Lisboa, a saber: a realização dos dois congressos das Comunidades Portuguesas no Mundo (1964 e 1967) e a criação da Academia Internacional da Cultura Portuguesa (1964).

A adesão pública de eminentes académicos portugueses ao luso-tropicalismo esconde, nalguns casos, uma consciência crítica relativamente ao que, de facto, se passava nas colónias portuguesas. Em relatórios confidenciais, emerge a abissal distância que separava a acção colonial da teoria luso-tropical. De facto, a colonização portuguesa, como qualquer outra, assentou em barreiras raciais, gerou conflitos e promoveu a discriminação. A discriminação racial fazia-se, em primeiro lugar, através da diferenciação jurídica do chamado «indígena» (regulada por estatuto próprio). Os castigos corporais, ministrados aos trabalhadores e serviçais domésticos pelos patrões e aos africanos «não civilizados» em geral pelas autoridades administrativas e policiais (uso da palmatória) e as rusgas (para “capturar” indígenas fugidos do contrato, remissos ao imposto, sem patrão ou fabricantes de bebidas alcoólicas) estavam na primeira linha das formas explícitas de racismo. Havia também formas mais subtis de racismo, nomeadamente a diferenciação salarial e os entraves no acesso ao emprego e à promoção social. Entre as causas de conflitos e mal-estar social contam-se o recrutamento forçado (denominado
chibalo em Moçambique), que colocava à disposição dos colonos (empresas, particulares e administração) uma mão-de-obra barata, o envio de contratados para as roças em São Tomé, as culturas obrigatórias, a ocupação de terras, o comércio de permuta explorando o indígena, a cobrança de impostos e a falta de respeito pelas autoridades gentílicas.

Porto de Bissau, carregamento de amendoim, 1947Porto de Bissau, carregamento de amendoim, 1947
A partir de meados da década de 50, sucedem-se os avisos à navegação por parte de alguns cientistas que alertam para um “desvio” do comportamento dos colonos relativamente à “tradição” portuguesa.15No entanto, face a práticas que desmentiam o modelo de convivência pacífica, miscigenação e interpenetração de culturas, considerava-se que não era o modelo que estava desfasado da realidade que pretendia caracterizar, mas as práticas que se afastavam da “tradição portuguesa”.

No relatório confidencial da missão de estudo da JIU que empreendeu a Goa, em 1956, Orlando Ribeiro revela, à saciedade, a reduzida influência cultural portuguesa, a fraca implantação da língua, a debilidade da Igreja católica, o papel insignificante da mestiçagem (Ribeiro 1999). No mesmo ano, no relatório confidencial elaborado pelo antropólogo Jorge Dias, relativa aos trabalhos da Missão de Estudos das Minorias Étnicas do Ultramar Português (criada no seio do CEPS da JIU)16
, percebe-se que em Moçambique os mestiços são tratados como indígenas e a maioria dos colonos considera os negros seres inferiores. Em Angola, nota-se uma “evolução satisfatória” no sentido da realizada pela nação brasileira, mas impõe-se a repressão dos “abusos desnecessários” e a promoção do indispensável desenvolvimento económico e social. Na Guiné, a influência da cultura portuguesa é praticamente inexistente.

Em 1959, Jorge Dias dirige uma nova campanha da Missão de Estudo das Minorias Étnicas do Ultramar Português. O relatório confidencial, enviado ao presidente do Conselho, volta a denunciar os casos de segregação racial.17 
A comparação entre as relações raciais no Tanganica e em Moçambique revela que enquanto no primeiro território os ingleses adoptaram uma política de colaboração com os indígenas, no segundo, os portugueses tratam mal os africanos, mesmo os assimilados.

Num relatório de Jorge Dias referente à sua participação numa reunião realizada em Frankfurt sobre “problemas políticos da vida em comum entre pretos e brancos em África”, o antropólogo confessa que conseguiu que a sua comunicação fosse bem acolhida pelos outros conferencistas, “porque a posição tradicional portuguesa é absolutamente defensável, quando posta em termos de evolução histórico-social, como um aspecto da história da humanidade, anterior à expansão capitalista europeia”.18 Acentua que esse facto, a estrutura social portuguesa e o carácter nacional do povo luso deram origem a “um tipo de colonização que como processo é inteiramente distinto da colonização do século XIX” (Idem). Porém, alerta: “ai de nós se se descobre que na realidade nos estamos a desviar grosseiramente de uma linha de conduta tradicional para enveredarmos pela da exploração brutal e impiedosa do indígena, esquecendo aquele fundo de humanidade cristã que nos caracteriza e que nos deu fama de excepcionais colonizadores” (Idem). Conclui que no plano político, a soberania portuguesa sobre os territórios ultramarinos estava dependente da correcção dos abusos e da orientação do comportamento dos colonos portugueses num sentido mais humano e cristão.

Face aos problemas raciais detectados por diversos investigadores, o Conselho Orientador do CEPS da JIU aconselha medidas tendentes à divulgação junto da opinião pública portuguesa, e dos colonos em particular, da tolerância racial, da condenação da exploração e da discriminação dos negros, da educação e da promoção social e económica das populações africanas.

Legislação e acção política
Em 1961, o regime de Salazar enfrenta uma série de dificuldades políticas: o assalto ao paquete «Santa Maria» por Henrique Galvão (janeiro), a tentativa de libertação dos presos das cadeias de Luanda (fevereiro), os massacres orquestrados pela UPA (União dos Povos de Angola) no Norte de Angola, o golpe militar do general Botelho Moniz (março) e a ocupação de Goa, Damão e Diu pela União Indiana (dezembro). O governo, por iniciativa do ministro do Ultramar Adriano Moreira, empossado em abril de 1961, vê-se forçado a promulgar um extenso pacote de medidas que visam eliminar as formas mais arcaicas de exploração colonial (o contrato e as culturas obrigatórias) e de discriminação racial (o indigenato). A revogação do Estatuto dos Indígenas Portugueses das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique (decreto-lei n.º 43893, de 6.9.1961) permite estender a cidadania portuguesa a todos os habitantes daqueles territórios. Simultaneamente, dá-se uma enorme ênfase à constituição de sociedades multirraciais no ultramar, através da intensificação do povoamento europeu.

Uma família de portugueses no colonato da Cela (Cuanza Sul, Angola), 1960Uma família de portugueses no colonato da Cela (Cuanza Sul, Angola), 1960

Para o efeito são criadas as Juntas Provinciais de Povoamento de Angola e Moçambique (decreto n.º 43895, de 6.9.1961), órgãos superiores da administração pública, responsáveis em cada província ultramarina pela condução e orientação de todos os assuntos referentes ao povoamento do território e pela coordenação das iniciativas públicas e privadas que ao mesmo interessem. Com o objectivo de promover a tão falada integração multirracial, há um esforço no sentido de admitir nativos e cabo-verdianos nos novos colonatos, alguns deles mistos.

No preâmbulo do decreto de criação das Juntas Provinciais de Povoamento de Angola e Moçambique, Adriano Moreira desenvolve uma argumentação de nítido pendor luso-tropicalista e invoca Gilberto Freyre.19
 Esclarece que os problemas do povoamento “estão na base não só da valorização económico-social de territórios e gentes, como da real elevação destas e a integração com os elementos étnicos alienígenas na pátria comum, naquela harmoniosa comunidade multirracial que tradicionalmente nos temos proposto e esforçado por criar”. Independentemente das modalidades de povoamento a levar a cabo, “na base da sua concepção estará sempre a realização da vocação ecuménica do povo luso, a traduzir-se na criação de comunidades plurirraciais plenamente integradas e estáveis, síntese harmónica de valores culturais de variada origem, e de cuja fecundidade na formação de novas civilizações tropicais de singular riqueza se tem apontado o Brasil como o exemplo mais acabado e eloquente” (Diário do Governo, I série, n.º 207, p. 1129).

A “alta prioridade” atribuída ao povoamento europeu da África portuguesa é encarada como uma tarefa “enorme e urgente”, que não pode ser deixada apenas “à simples inspiração individual”, mas deverá ser plenamente assumida pelo Estado. A integração multirracial, “feita com rejeição absoluta de todo o mercenarismo”, justifica o povoamento intensivo com elementos da metrópole que “ali estabeleçam o seu lar e encontram a verdadeira continuação da Pátria”, os incentivos à fixação definitiva de “trabalhadores especializados de todos os graus e sectores”, a criação de colonatos mistos, a promoção das comunidades rurais e, em geral, o acelerado desenvolvimento das infra-estruturas e das economias dos territórios ultramarinos (Portugal. Ministério do Ultramar 1961: 8-11).

A 1 de fevereiro de 1962 é finalmente promulgado o decreto n.º 44171, que torna livre a entrada e fixação de cidadãos portugueses em qualquer parte do território nacional (em conjugação com a criação do «Espaço Económico Português»). Até então, os portugueses que pretendiam migrar para as colónias tinham que dispor de «carta de chamada», provar que tinham colocação assegurada no destino ou meios de subsistência. Os entraves do Estado Novo à migração em massa de naturais da metrópole para o ultramar tinham começado a ser levantados de forma gradual no pós-Segunda Guerra Mundial. Só nos anos 50 é que o modelo de desenvolvimento económico e de relações raciais a instaurar nas colónias deixou de assentar numa concepção meramente utilitária de exploração dos recursos naturais e humanos locais, passando a contemplar o povoamento intensivo daqueles territórios com europeus e a melhoria das condições de vida dos africanos.

Colonato açoreano, Catofe (Cuanza Sul, Angola), 1960Colonato açoreano, Catofe (Cuanza Sul, Angola), 1960

No contexto das guerras de libertação de Angola, Guiné e Moçambique os governos coloniais e as Forças Armadas sentiram necessidade de desenvolver um conjunto de iniciativas político-sociais tendentes a granjear apoio entre as populações submetidas ao colonialismo português e a reduzir a base de apoio dos movimentos independentistas, bem como a ‘educar’ os colonos nos valores da tolerância racial e dos direitos humanos. Entre os objectivos gerais da Acção Psicossocial figurava a promoção do entendimento entre pessoas de diferentes «raças» e de várias religiões, “dentro de princípios de humanidade, justiça e respeito pelos valores tradicionais, numa afirmação constante do conceito de luso-tropicalismo, que nos distingue de outras nações”20. Nesse espírito, foram realizadas inúmeras acções, desde promoção de actividades desportivas (em particular, desafios de futebol), confraternizações, bailes, sessões de cinema, etc.

Não obstante, há vários testemunhos de que esse trabalho de atracção das populações africanas não era compreendido e reproduzido por outros agentes do poder colonial nem pela maioria dos colonos (vd. Castelo 2007: 357-362). Em 1972, o despacho do ministro do Ultramar Silva Cunha, colocado na cópia duma acta do Conselho Provincial de Acção Psicológica, do Governo-Geral de Moçambique, na qual se denunciavam irregularidades frequentemente praticadas contra as populações autóctones, mostra quão longe ainda se estava da convivência igualitária e harmoniosa entre europeus e africanos:

“Visto com muita preocupação, especialmente por verificar que, apesar das instruções e recomendações, insistentemente repetidas, continuam a verificar-se violências e ilegalidades nas relações das autoridades e particulares com as populações nativas em matéria de trabalho e propriedade. O Governo da Província tem que fazer um esforço sério para pôr termo a práticas inconvenientes e ilegais que contribuem para facilitar a acção subversiva.”21


Considerações finais
O Estado Novo, nos anos 30 e 40, ignorou ou rejeitou a tese de Gilberto Freyre, devido à importância que conferia à mestiçagem, à interpenetração de culturas, à herança árabe e africana na génese do povo português e das sociedades criadas pela colonização lusa. As ideias do pensador brasileiro tiveram que esperar pela década de 1950 para conhecer uma recepção mais favorável no seio do regime salazarista. Nessa altura, o regime adoptou uma versão simplificada e nacionalista do luso-tropicalismo como discurso oficial, para ser utilizado na propaganda e na política externa. À mudança de atitude não foi alheia a conjuntura internacional saída da Segunda Guerra Mundial e a necessidade de o Governo português afirmar a unidade nacional perante as pressões externas favoráveis à autodeterminação das colónias. Paralelamente, assistiu-se à penetração do luso-tropicalismo no meio académico e científico, em particular o ligado à formação dos quadros da administração ultramarina e à chamada ‘ocupação científica’ das colónias. Com o início da guerra em Angola, e a chegada de Adriano Moreira ao Ministério do Ultramar, foi promulgado um pacote de medidas legislativas inspiradas no luso-tropicalismo. No novo contexto, procurou-se igualmente incutir nos portugueses a ideia da benignidade da colonização lusa ou, de forma mais eufemística, “do modo português de estar no mundo”. A propaganda encarregou-se disso, de forma incansável: era urgente moldar o pensamento para conformar a acção, sobretudo dos colonos e dos agentes do poder colonial no terreno. Desde então, uma versão simplificada do luso-tropicalismo foi entrando no imaginário nacional contribuindo para a consolidação da auto-imagem em que os portugueses melhor se revêem: a de um povo tolerante, fraterno, plástico e de vocação ecuménica.

Na obra de Gilberto Freyre perpassa a sua concepção singular de tempo, fundindo passado, presente e futuro. Essa concepção elucida-nos sobre as ambiguidades e as contradições em que se envolve ao falar de comunidade luso-tropical. Umas vezes, apresenta-a como realidade pretérita, que remonta aos séculos XV e XVI, outras como realidade viva, presente, outras ainda como futuro, destino, idealização. É, sobretudo, como projecto que a ideia de comunidade luso-tropical sobreviveu ao seu autor, após o fim do império português. E vivifica agora na Comunidade de Países de Língua Portuguesa e no discurso político e ideológico mais consensual sobre a posição de Portugal no mundo. O risco actual está em continuar a ser usado como dispositivo retórico, numa perspectiva acrítica e imobilista. Ontem, para legitimar o colonialismo português; hoje, para alimentar o mito da tolerância racial dos portugueses e até de um nacionalismo português integrador e universalista, em contraponto aos «maus» nacionalismos, fechados, etnocêntricos e xenófobos.


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  • 1. Formalmente instituído em 1933, depois de pelo golpe militar de 28 de Maio de 1926 ter sido derrubada a I República (1910-1926), o Estado Novo foi uma ditadura conservadora, católica e colonialista. As suas figuras de proa foram os presidentes do Conselho, António de Oliveira Salazar (até 1968) e Marcelo Caetano (de 1968 até ao 25 de Abril de 1974).
  • 2. Peter Burke e Maria Lúcia Pallares-Burke referem-se ao luso-tropicalismo como “quase-teoria”, “perhaps the closest thing to a theory that Freyre ever enunciated” (Burke e Pallares-Burke 2006: 188-189). Já Adriano Moreira e José Carlos Venâncio, entre outros, consideram o luso-tropicalismo uma teoria social (Moreira e Venâncio 2000). Por seu turno, Miguel Vale de Almeida reporta-se ao luso-tropicalismo enquanto discurso (Almeida 2000: 183-184).
  • 3. Cf. Portugal, Arquivo Histórico-Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros (AHD), PAA 308; e P. 2, A. 59, M. 351.
  • 4. Circular n.º 3 do MNE, enviada às embaixadas, legações, consulados e delegações de Portugal. PT/AHD, PAA 308.
  • 5. Ofício n.º 102 da Comissão Executiva do V Centenário da Morte do Infante D. Henrique – Congresso Internacional de História dos Descobrimentos, enviado ao director-geral dos Negócios Políticos e Consulares do MNE, em 16 de Janeiro de 1962. PT/AHD, PAA 308.
  • 6. Amílcar Cabral referia que “uma poderosa máquina de propaganda foi posta a trabalhar no sentido de convencer a opinião pública mundial de que os nossos povos viviam no melhor dos mundos possíveis […]. E, como acontece com tantos mitos, especialmente os que dizem respeito à sujeição e exploração das gentes, não faltaram «homens de ciência», incluindo um sociólogo de nomeada, par lhe garantir uma base teorética – neste caso, o luso-tropicalismo. […] E não sem algum êxito, como mostra um incidente ocorrido na Conferência dos Povos Africanos realizada em Túnis, em 1960, durante a qual tivemos certa dificuldade em ser ouvidos. Um delegado africano a quem tentávamos explicar a nossa situação replicou com toda a simpatia: «Oh, mas para vocês é diferente. Vocês não têm problemas – com os Portugueses vocês estão bem».” (Amílcar Cabral. 1975. “Prefácio”. In Basil Davidson. A libertação da Guiné. Lisboa: Livraria Sá da Costa. p. 3).
  • 7. “Entrevista à revista Life, de Nova Iorque, 4 de Maio de 1962” (Salazar 1967: 84).
  • 8. “Entrevista ao semanário U. S. News and World Report, de Nova Iorque, 9 de Junho de 1962” (Salazar 1967: 125).
  • 9. “Entrevista concedida à cadeia de jornais Southam, do Canadá, dezembro de 1962” (Salazar 1967: 156).
  • 10. Apontamento n.º 72 - “Projecto de normas de carácter permanente para uso interno da Direcção dos Serviços de Censura com relação ao Ultramar” – de Eduardo Freitas da Costa (Julho de 1960). Portugal, Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), PT/AHU/MU/GNP/158/cx. 1.
  • 11. Comentário n.º 263, datado de 5.9.1961, assinado por Eduardo Freitas da Costa, intitulado “Caminhos de grandeza”. PT/AHU/MU/GNP/161/cx. 1.
  • 12. Comentário n.º 201, datado de 21.6.1961, assinado por Eduardo Freitas da Costa, intitulado “Fundamentação do portuguesismo”. PT/AHU/MU/GNP/161/cx. 1.
  • 13. Comentário n.º 183, datado de 5.8.1964, assinado por Carlos Maria Alexandrino da Silva, intitulado “A verdadeira sociedade plurirracial: nós, portugueses, não somos «brancos»”. PT/AHU/MU/GNP/161/cx. 4.
  • 14. “Tenho a convicção que foi nos meus cursos da disciplina então chamada Política Ultramarina que o lusotropicalismo passou a ser sistematicamente ensinado e tratado, inspirando numerosos trabalhos de campo e teóricos” (Adriano Moreira. 1987. “Em lembrança de Gilberto Freyre”. Ciência & Trópico. 15(2): 191).
  • 15. A propalada “tradição portuguesa” não era nada de inato ao povo português, como se quis fazer crer, mas antes um modelo geográfica e historicamente situado, reportando-se à situação política e social das elites locais que até à segunda metade do século XIX serviram de suporte ao poder colonial em pontos precisos da África, isto é, antes da implantação do Estado colonial moderno e do estabelecimento de correntes migratórias da metrópole em direcção ao império (vd. Alexandre 1998: 207-208).
  • 16. Portugal, Arquivo Nacional da Torre do Tombo (TT), PT/TT/AOS/CO/UL-37, Pt. 1.
  • 17. PT/TT/AOS/CO/UL-37, Pt. 2.
  • 18. Relatório datado de 7 de Julho de 1958. Foi enviada cópia ao governador-geral de Moçambique pelo director-geral de Administração Política e Civil, em 31.1.1959. PT/AHU/MU/GNP/084/pt. 33.
  • 19. Adriano Moreira, a 7 de Setembro de 1961, envia a Gilberto Freyre o Diário do Governo do dia anterior, com a seguinte missiva: “Meu Ex.mo Amigo: / Creio que terá interesse em conhecer a legislação que consta do Diário do Governo que lhe envio. Chamo a sua atenção para a página 1129. Desculpe não escrever mais longamente, mas o tempo parece escoar-se”. Brasil, Arquivo Documental Gilberto Freyre, Correspondentes Portugueses.
  • 20. Instruções de APSIC (1970-1971), Conselho Provincial de Acção Psicológica de Moçambique, PT/AHU/MU/GNP/061/cx. 1.
  • 21. Cópia da Acta n.º 11/971 da reunião realizada em 10.11.1971 do Conselho Provincial de Acção Psicológica, Governo-geral de Moçambique, enviada pelo chefe de gabinete do Governo-geral de Moçambique, Custódio Augusto Nunes, para o chefe de gabinete do Ministro do Ultramar, em 7.1.1972. O despacho do ministro, J. Silva Cunha, foi transcrito e remetido pelo director do Gabinete de Negócios Políticos, Ângelo Ferreira, ao governador-geral de Moçambique, em ofício de 9.2.1972. PT/AHU/MU/GNP/061/pt. 1.

por Cláudia Castelo
A ler | 5 Março 2013 | angola, Brasil, Gilberto Freyre, goa, Guiné-Bissau, lusotropicalismo, Portugal