Acabar com o mundo, torcer o mundo
A permanent fog of war is fanned by permanent fakes on Facebook. Already deregulated ideas of truth are destabilized even further. Emergency rules. Critique is a troll fest. Crisis commodified as entertainment. The age of neoliberal globalization seems exhausted and a period of contraction, fragmentation, and autocratic rule has set in.
Hito Steyerl1
Poderíamos começar com um grito: This changes everything! (“isto muda tudo”), título do último livro de Naomi Klein após pescar no oceano da co-alienação entre mudança climática e capitalismo corporativo. Ou poderíamos voltar atrás, aos anos 90, momento áureo de um novo capitalismo financeiro no Ocidente e proclamar que “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”, mote de Fredric Jameson em Pós-modernismo ou a lógica cultural do capitalismo tardio, escrito um pouco depois do hino pop de R.E.M de 1987 It’s the end of the world as we know it (“é o fim do mundo tal como o conhecemos”), lema que foi absorvido pela recente virada ontológica e por atuais discussões cosmopolíticas.
Também poderíamos admitir, junto com antropólogos como Elisabeth Povinelli e Eduardo Viveiros de Castro, que é mais fácil imaginar o fim do mundo que imaginar outros modos de existência se tornarem dominantes. Seguindo este raciocínio, e na tentativa de construir uma alterpolítica do pensamento, poderíamos então começar por mudar o modo como conhecemos o mundo pela reclamação de legitimidade de outros mundos que foram negligenciados e diminuídos, e este novo “fazer mundo” (worlding) poderia (talvez) mudar tudo. No entanto, e se é verdade que devemos revisar as arestas e limites entre mundos e ontologias, também precisamos atacar o meio destas premissas tão separadas: afirmar o fim do mundo, em termos materiais, ou afirmar o fim do mundo tal como o conhecemos, em termos ontológicos, não parece hoje tão separado e diferente do que seria antes, sobretudo agora que podemos misturar e fundir os nossos pensamentos em um nevoeiro permanente de farsas de Facebook, guerras e crises como mercadoria, centimetragem de Instagram, mudança climática antropogênica, eventos de escala global, atomismo cibernético, refugiados climáticos e políticas tecno-normativas.
O fim material e ontológico do mundo não está tão separado como estaria antes, porque existe uma co-elaboração de um mundo antipolítico superdimensionado através de reality shows, ficção científica e capitalismo, que é “antipolítico” na medida em que torna impossível imaginar fora da destruição criativa do capitalismo. Dentro dessa organização de ficção científica2 dominante, muitos mundos estão a morrer ou já faleceram, enquanto o mundo dominante anuncia ironicamente um Grande Fim (também chamado de Antropoceno). Esse Grande Fim, estudado por grandes painéis científicos internacionais, será decretado pela exaustão dos recursos do planeta e só remotamente o mundo dominante será levado a um novo Big Bang (por exemplo, à construção de um novo mundo em um novo planeta), pois o mais provável é que o fim do mundo material seja idêntico à auto-destruição do mundo ontológico da dominação. Por outras palavras, a ideia que é passada pelo Grande Fim/Antropoceno é a de que haverá um fim de “toda” a humanidade (e isto sim, mudará tudo).
Entretanto, no Brasil, o ativista indígena Ailton Krenak comenta a nossa falta de imaginação política com a seguinte história: “um rio nunca morre. Se observarmos um rio poluído hoje, poderemos ver sua capa de lama, mas o rio terá mergulhado mais profundamente na terra. Ele fluirá em outro lugar.”3 Krenak está talvez implicado em descrever uma tática de resistência não-humana4, porque para ele os rios em coma (por exemplo o Rio Doce) testemunham uma aliança entre pensamento e ação que nos faltaria hoje. Para pensar o fim do mundo, teríamos então que pensar no genocídio de muitos mundos subalternizados, entre eles o mundo dos rios, o mundo indígena, o mundos dos escravizados, todos reunidos na categoria de não-humano que foi intensamente explorada como recurso da antipolítica, mas que taticamente resiste ao desastre de formas que apenas podemos tatear.
Através de Krenak podemos nos perguntar: como pensar/agir junto dos rios em coma? Como continuar a pensar e a imaginar em um mundo dominado pelo “monoculturalismo” e pela antipolítica, esse monólito cultural em grande escala que nega a possibilidade de diferença e induz o fim material? Podemos torcer este mundo antes que ele quebre? Podemos imaginar uma alterpolítica? Como poderia essa alterpolítica aliar-se com a imaginação dos não-humanos?
Como um rio em coma que mergulha mais fundo na terra para escapar à poluição na superfície, a possibilidade de continuar a pensar implica encontrar formas de continuar a correr, como um rio, e desenvolver afinidades/alianças com outros agentes, como a terra. Como um rio fugitivo próximo da morte, a diferença entre alterpolítica e antipolítica seria precisamente a possibilidade de continuar a pensar/imaginar e desenvolver conexões entre seres, nomeadamente não-humanos.
Essa forma de entender a política não está tão longe do que Deleuze tentou dizer sobre a diferença entre a direita e esquerda. Deleuze defendeu que a esquerda implica manter a possibilidade de continuar a pensar, enquanto a direita mais facilmente escolhe a preguiça e as respostas inequívocas. Nesse sentido, a descrição deleuziana da esquerda poderia aqui ser convocada para pensar uma noção de alterpolítica, embora aqui nos posicionemos num campo de imaginação política para além da figura do Estado. Alterpolítica seria assim a possibilidade de continuar a pensar e a imaginar em um mundo que constantemente reitera a impossibilidade de ser pensado outramente. E somando-se à perspectiva deleuziana, a descrição de Krenak parece vincular a luta indígena ao não-humano, à possibilidade de dissolver a linguagem e experimentar uma ação-pensamento impessoal. Mais próximos da morte e do martírio, somos assim levados a preservar a relação entre pensamento e política através de uma aliança com a não-humanidade.
Além disso, e se adicionarmos a esta não-humanidade o ponto de vista dos escravizados e dos povos indígenas, a não-humanidade será reconsiderada como “inumanidade”. Afinal, em toda a história, índigenas e pretos foram sistematicamente escravizados e controlados como “objetos que podem falar”5, o que é bem diferente de um rio. Podemos afirmar então que a imaginação que pode emergir dessa condição está mais em lugar nenhum do que em qualquer lugar, que ela faz emergir uma subjetividade impessoal mas que ela contém, adicionalmente, uma perspectiva abolicionista, isto é, só é possível re(existir) na inumanidade se abolirmos a perspectiva em que a existência inumana é possível.
Deste modo, dialogar hoje com o fim do mundo produzido pela aliança entre crise climática e capitalismo planetário (Antropoceno), implica aceitar os fins passados de mundos subalternizados, produzir novas ficções entre política e pensamento e, sobretudo, abolir a ideia de um fim universal do mundo que produz e é produzido pela ideia de uma “humanidade” dominante. A alterpolítica poderia ser então um caminho inumano do pensamento: a capacidade para pensar a abolição do mundo dominante como abolição de uma certa ideia de humanidade e poder. Essa alterpolítica inumana se propõe pensar o Antropoceno como Misantropoceno (ou como falsa mise-en-anthropo-scène); ela tem a capacidade de questionar o universalismo ao mesmo tempo que produz uma colisão entre luto e resistência. Mais do que negar uma realidade de destruição, ela se propõe aprender com as lutas de existências moribundas ao mesmo tempo que se desvia e se escapa à feitiçaria do capitalismo mesmo quando todas as alternativas parecem minadas ou impossíveis. Fazer o luto, aprender a desesperar, faz então parte desse processo, impregnado de dor e, no entanto, empoderado pela clarividência do in-não-humano.
No meio de tudo isto, deveríamos acrescentar que a arte contemporânea não é apenas uma peça do puzzle, mas sim um braço armado da antipolítica, apesar dos esforços que muitos fazem para resistir a esse fluxo. Não por acaso a história de Ailton Krenak que eu escolhi trazer para este texto, foi proferida numa fala pública na 32ª Bienal de Artes de São Paulo. Podemos nos perguntar: o que produz esta história neste contexto? Como diz Hito Steyerl:
Art is encryption as such, regardless of the existence of a message with a multitude of conflicting and often useless keys. Its reputational economy is randomly quantified, ranked by bullshit algorithms that convert artists and academics into ranked positions, but it also includes more traditionally clannish social hierarchies. It is a fully ridiculous, crooked, and toothless congregation and yet, like civilization as a whole, art would be a great idea.6
Infelizmente, se a arte pode mesmo ser uma “boa ideia”, esta encaixa demasiado bem na permanente desterritorialização do capitalismo através da constante especulação sobre o valor do comum que arruina qualquer possibilidade de transformação radical. A arte contemporânea é o braço direito de um monoculturalismo intensivo, ela especula seu próprio valor através da apresentação de diferentes perspectivas estéticas e políticas do mundo, enquanto o mundo dominante impõe uma única visão globalizante do mundo. Em suma, o mundo hegemónico “consome” imaginação.
Assim, na minha perspectiva, o desafio de uma alterpolítica que deseje aliar-se à arte, nos impele a tecer uma rede de afinidades entre imaginação, estética e mudança social que se oponha à infinita mobilização produzida por uma imaginação artística consumista e desvinculada de qualquer ação no real. O trabalho de um artista, como o de qualquer trabalhador imaterial, implica portanto recusar o status quo, isto é, a obrigação de “fazer sem pensar, sentir sem emoção, se mover sem fricção, se adaptar sem questionar, traduzir sem pausa, desejar sem propósito, se conectar sem interrupção.”7 De forma a inverter esse processo, poderíamos começar por reclamar empatia com a imaginação não-humana e inumana dos mundos, tendo em conta que a aliança e a empatia fazem parte do processo enraizador da imaginação na política.
Para concluir, e se é possível concluir um texto sobre um pensamento inumano da política, eu arriscaria dizer que “torcer” o mundo é uma tentativa de reclamar outros modos de existência, comprometidos com o o subalterno, o não-humano e o inumano. Seria talvez uma “boa ideia” convidar a arte a fazer parte desse processo.
**Este pequeno ensaio foi escrito em inglês para uma publicação do projeto “Our times” de Michiel Vandevelde (2016) e mais tarde traduzido e adaptado para a Oficina de Imaginação Política.
- 1. Hito Steyerl, “If You Don’t Have Bread, Eat Art!: Contemporary Art and Derivative Fascisms”, Journal #76, E-flux, Outubro de 2016.
- 2. Ideia que invoco do trabalho de Walidah Imarisha sobre ficção científica negra.
- 3. “Conversas para adiar o fim do mundo”, conferência de Ailton Krenak proferida no contexto da obra de Bené Fonteles na 32ª Bienal de São Paulo, transcrição adaptada, Novembro de 2016.
- 4. Aqui consideramos “não-humano” tudo aquilo que está fora do conceito de humanidade gerado pelo mundo dominante. Não estamos partindo da ideia de uma “humanidade generalizada” distribuída por vários seres como nas cosmovisões ameríndias, que poderia gerar outras terminologias e reflexões.
- 5. Fred Moten and Stephano Harney, “The undercommons - Fugitive planning & Black Study”, Minor Compositions, Nova Iorque, 2013.
- 6. Hito Steyerl, “If You Don’t Have Bread, Eat Art!: Contemporary Art and Derivative Fascisms”, Journal #76, E-flux, Outubro 2016.
- 7. Fred Moten and Stephano Harney, “The undercommons - Fugitive planning & Black Study”, Minor Compositions, New York, 2013.