A quem pertence...?

O escritor húngaro, Imre Kertész, prémio Nobel da literatura, com a chanceler alemã Angela Merkel| 2007 | Axel Schmidt/DDP/AFP via Getty ImagesO escritor húngaro, Imre Kertész, prémio Nobel da literatura, com a chanceler alemã Angela Merkel| 2007 | Axel Schmidt/DDP/AFP via Getty Images

Um dos ensaios mais marcantes de Imre Kertész tem por título a simples interrogação “A quem pertence Auschwitz?”. Apesar de bastante breve, trata-se de um ensaio que enfrenta exemplarmente a questão da persistência da memória e do papel de gerações posteriores na preservação da memória. A questão inescapável que o sobrevivente do campo de extermínio não pode deixar de formular é colocada logo de início:

“Os sobreviventes do Holocausto terão de encarar os factos: à medida que a idade os vai debilitando, Auschwitz vai-lhes escorregando das mãos. Mas a quem irá pertencer? Obviamente, à geração seguinte e à que a esta se seguir - enquanto continuarem a reivindicá-lo, evidentemente.”

À primeira vista, esta reflexão parece resultar do mais elementar senso comum. Mas a questão suscitada é muito mais complexa do que parece, como indicia claramente a nota final: a memória, mesmo a memória da violência genocida simbolizada pelo nome de Auschwitz, só sobrevive enquanto continuar a haver quem a reivindique. Esta reivindicação não radica num simples processo de transmissão, representa, sim, um gesto de apropriação, apropriação de uma memória que não se acolhe passivamente, antes se escolhe preservar. Poderão ser muitas as razões para esta apropriação, desde logo, razões motivadas por uma relação familiar. Mas, num plano mais amplo, a razão mais funda radica na partilha de uma noção de humanidade, num gesto de compaixão que leva, não apenas, a querer conhecer o sofrimento vivido por outrem, mas a incorporar a memória desse sofrimento na nossa própria relação com o mundo.

No seu ensaio, Kertész deixa clara a grande distância crítica que o separa de muitas formas de apropriação e mesmo instrumentalização da memória do Holocausto por uma segunda ou terceira geração, mas isso não turva a lucidez com que analisa o processo nos termos que referi e, particularmente, a consciência clara de que, sendo a memória um legado, a forma que a apropriação desse legado poderá assumir não é legislável pelo seu detentor original. Esta lucidez não é universalmente partilhada. É comum, com efeito, encontrar por parte da primeira geração um gesto, muitas vezes ressentido e mesmo agressivo, de recusa da legitimidade da apropriação das suas memórias por outras gerações, sobretudo quando não existe nenhum laço biológico na relação. E, no entanto, sem essa apropriação, a memória dos sofrimentos experimentados não sobreviverá. E o facto de esta sobrevivência ficar nas mãos de quem não tem outra legitimidade para tal senão o facto da pertença a uma comum humanidade mais não significa do que a demonstração prática do enorme potencial dos processos de memória para a configuração de uma identidade social.

É manifesto que a expansão da memória e, nomeadamente, a transformação em memória pública acarreta, muitas vezes, consequências mais do que problemáticas, desde a apropriação trivializante com fins puramente comerciais - basta ver o estendal de romances recém-publicados com a palavra “Auschwitz” no título -, até à apropriação com fins políticos, de que o exemplo mais flagrante são, sem dúvida, as tentativas de monopolização da memória do Holocausto pelo estado de Israel. Os processos de memória e de pós-memória não são homogéneos nem consensuais, definem um campo atravessado por conflitos mais ou menos violentos. Nestes conflitos, a questão da legitimidade e, no limite, da “propriedade” da memória, a questão de saber “a quem pertence”, está invariavelmente presente. Responder a esta questão em termos restritivos reivindicando essa memória exclusivamente para este ou aquele grupo e impedindo, assim, a sua partilha mais ampla possível, constitui, no limite, uma forma de violência e uma paradoxal violação do dever de memória.

Se o direito à memória da primeira geração não se transmite simplesmente na forma de um legado, isto significa que não existe uma legitimidade “natural” para que determinados indivíduos ou grupos possam reivindicar esse legado só para si. Sem dúvida que, para quem é quotidianamente vítima de racismo, a questão da memória do colonialismo assume uma dimensão existencial que não existe, nessa forma, para outros grupos sociais. Isto não implica, porém, que outros indivíduos ou grupos, não vitimados da mesma forma, devam ficar excluídos. Não se trata de “falar em nome de” nem de reivindicar qualquer protagonismo, nem, ainda, de querer ocupar lugares de enunciação que poderão caber com mais legitimidade a outrem. Trata-se, sim, de criar condições para que seja possível proporcionar o máximo de ressonância e as melhores condições de projecção no nosso tempo a memórias que, pelo seu significado, transcendem qualquer forma de apropriação particular. Criar e assegurar as condições de permanência de mais memória, como acto de justiça e de reconhecimento, não se compadece com lógicas de exclusividade - em nome de uma utopia de humanidade que, justamente na capacidade de não deixar que se apague o sofrimento das vítimas, se torna concreta.

________

MEMOIRS é financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC) no âmbito do Programa-Quadro Comunitário de Investigação & Inovação Horizonte 2020 da União Europeia (n.º 648624) e está sediado no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.

por António Sousa Ribeiro
A ler | 29 Novembro 2020 | Holocausto, kertész, Memoirs, memórias