Romaria | 2017 | Yuran Henrique (cortesia do artista)O conceito de pós-memória só pode ser correctamente equacionado no quadro de uma teoria das emoções. Na verdade, quando Marianne Hirsch, na sua definição já clássica, sublinha que existe pós-memória quando certas memórias foram transmitidas a uma segunda geração “de modo tão profundo que parecem constituir memórias em si mesmas” (1), este “modo profundo” não pode significar senão a inscrição dessas memórias no plano emocional. A constituição de pós-memória é um processo complexo, que pode assumir formas muito diversas e que, não é de mais repeti-lo, não se baseia nunca numa simples transmissão, antes implica um posicionamento activo, uma decisão, por parte de membros de uma segunda geração. Esta decisão não se joga nunca no plano estritamente racional, pressupõe, inevitavelmente, um grau elevado de envolvimento emocional.
Como o trabalho empírico sobre testemunhos de pós-memória facilmente revela, uma das emoções mais fundamentalmente envolvidas no processo de construção de pós-memória é a da compaixão (2). O conceito, neste contexto, deve entender-se, não no plano sentimental, mas no plano cognitivo: nestes termos, a emoção compassiva representa o impulso para integrar o sofrimento alheio no quadro do nosso conhecimento do mundo, sendo, assim, indissociável de um impulso performativo, de um impulso para a ação. Mas há outras emoções envolvidas, que afloram recorrentemente no discurso do testemunho e, entre estas, o ressentimento desempenha um papel não menos importante. Tal como o conceito de compaixão, também o de ressentimento tem uma longa genealogia, tendo um dos seus marcos decisivos na crítica de Nietzsche, que teoriza o ressentimento como uma emoção puramente negativa. Se abordarmos, porém, o contexto do Holocausto, cuja dimensão paradigmática relativamente à matéria aqui em discussão não necessita de ser sublinhada, a questão surge a uma luz bem diferente. Para o sobrevivente de Auschwitz, a questão pode formular-se da seguinte forma: não pode haver esquecimento, desde logo porque o carácter traumático da memória impede que isso aconteça. Mas pode haver perdão e reconciliação, nomeadamente com o perpetrador? As respostas a esta pergunta são múltiplas e, frequentemente, envoltas em ambiguidade. Um caso particularmente relevante é o do autor austríaco Jean Améry, cuja obra capital Jenseits von Schuld und Sühne (Para além de culpa e expiação), de que, até ao momento, não existe, tradução portuguesa, inclui um capítulo com o título “Ressentimentos”. Améry, preso e torturado pela Gestapo na Bélgica em 1943 e, subsequentemente, deportado para Auschwitz, aborda o problema do ponto de vista da condição subjectiva da vítima. Num capítulo anterior, intitulado “Tortura”, Améry empreendera a tentativa impossível de representar o seu próprio sofrimento enquanto ser torturado. A marca essencial do ressentimento, que vários autores, como Tzvetan Todorov na sua obra Face à l’extrême, criticam nas reflexões de Améry, tem neste carácter indelével da memória da tortura seguramente a sua raiz mais profunda. Mas, se é verdade que Améry apresenta uma versão particularmente intransigente de qualquer recusa de conciliação, o ressentimento é um traço recorrente de muitos outros testemunhos e mais não traduz afinal do que a rejeição da tolerância, como forma de preservação da identidade do sobrevivente. Esta recusa da indiferença como condição de uma atitude moral lança uma luz perturbadora sobre a ideia de que a necessidade da tolerância constitui a mais importante lição da experiência dos campos. Do ponto de vista de Améry, a sociedade que se recompõe a partir do esquecimento, como aconteceu com a sociedade alemã do pós-guerra, é indiferente à experiência subjectiva da vítima. Cabe então a esta o ónus de cultivar o ressentimento como signo da recusa de esquecer:
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