Fórum Humboldt ou Fórum de Benim?

Habitações serviçais | 2015 | Carla Cabanas (cortesia da artista)Habitações serviçais | 2015 | Carla Cabanas (cortesia da artista)

A entrega do relatório de Bénédicte Savoy e Felwine Sarr a Emmanuel Macron, seguida pela promessa do presidente francês de seguir as indicações destes peritos no sentido da identificação e restituição de peças de origem colonial indevidamente retidas em museus franceses, veio dar um impulso renovado a uma discussão que está, seguramente, muito longe de terminar. Mas é indesmentível que o ano de 2018 não só conheceu avanços consideráveis no debate como assistiu a tomadas de posição políticas de uma clareza pouco usual.

O caso alemão é, neste particular, um dos mais interessantes. Em 14 de Maio, a ministra da Cultura da Alemanha tinha apresentado, como abordagem provisória ao problema, um “Guia prático para a abordagem das colecções oriundas de contextos coloniais”1. No dia 1 de junho, participando no congresso da Unesco “Circulation of cultural property and shared heritage: What new perspectives?” e intervindo sobre a forma de lidar com bens culturais provindos de contextos coloniais, pronunciou um discurso em que colocava a questão, de forma muito ambígua, no âmbito de uma responsabilidade comum pelo património mundial: “trata-se menos de categorias como ‘posse’ ou ‘propriedade’ do que de zelar pelos bens culturais que nos foram confiados e que devem ser protegidos e conservados para gerações futuras”2. No dia 2 de Janeiro de 2019, no entanto, os jornais alemães noticiaram que a ministra Monika Grütters, em entrevista à agência noticiosa alemã DPA, se manifestara com nitidez a favor de uma posição pró-activa no processo de restituição: “Ficar apenas passivamente à espera até alguém exigir a restituição de alguma coisa não é a via correcta para lidarmos com o nosso passado colonial”3.
Esta tomada de posição, bem diferente da ambiguidade de manifestações anteriores, não é apenas relevante por provir de um membro de um governo conservador, mas também pela clareza com que adere a um catálogo de medidas há muito preconizadas por especialistas, mas que tardam a radicar-se no senso comum, nomeadamente em Portugal, como tem revelado o debate recente entre nós: a necessidade de um inventário exaustivo que permita averiguar com segurança a proveniência (na língua alemã, este desiderato deu já lugar à designação, já consagrada, de uma nova disciplina - “Provenienzforschung”, “Estudos sobre a proveniência”); a inversão do ónus da prova - todos os bens de origem colonial são de origem suspeita até prova em contrário; a necessidade de identificar credivelmente os parceiros do processo de restituição; a necessidade de estabelecer processos de colaboração horizontal com especialistas das várias partes e países envolvidos.
Sobre este pano de fundo, será particularmente instrutivo revisitar brevemente a história do projecto do Fórum Humboldt, em Berlim, por nele confluírem de maneira particularmente clara os vectores da discussão em curso. O projecto do Fórum Humboldt, idealizado a partir do início do milénio e começado a concretizar-se com o lançamento da primeira pedra em Junho de 2013, não é um projecto qualquer. Não só pela enorme dimensão do edifício projectado, mas também pela sua localização, bem no centro de Berlim, ocupando o espaço do antigo palácio imperial, cujas ruínas haviam dado lugar, na República Democrática Alemã, ao edifício mais emblemático do regime pró-soviético, o Palácio da República. A demolição deste edifício, em 2008, deixou vago o espaço, nesta localização mais do que todas representativa, para a construção do novo Palácio da Cidade, agora com a vocação cultural de albergar o Fórum Humboldt. Os núcleos centrais deste Fórum, vocacionado para colecções provindas de culturas extra-europeias, provêm do Museu Etnológico e do Museu de Arte Asiática.
O discurso da ministra da Cultura de 1 de Junho de 2018, já referido trazia plasmado o consenso oficial sobre a natureza e função do Fórum Humboldt: “este lugar único de diálogo com as culturas do mundo. […] O Fórum Humboldt será o nosso cartão de visita para a abordagem aos objectos e para a colaboração no estudo das colecções”. A ideia de um “cartão de visita” capaz de demonstrar a capacidade alemã para um “diálogo entre culturas” traduz sinteticamente muitos dos equívocos associados ao projecto e amplamente debatidos numa discussão já longa e que produziu uma massa documental já dificilmente abarcável.
Já em 2015, o historiador Jürgen Zimmerer, uma das vozes mais autorizadas no respeitante ao passado colonial alemão, em artigo intitulado “Fórum Humboldt: O esquecimento colonial”4, chamara a atenção para os problemas de um projecto que, do seu ponto de vista, não tinham sido suficientemente objecto de reflexão. No fundamental, as críticas de Zimmerer baseavam-se num pressuposto fundamental dos estudos pós-coloniais: o conhecimento produzido pelas amplas recolhas etnográficas do século XIX é um conhecimento baseado no poder de nomear e catalogar o outro como inferior confluindo, em última análise, no discurso justificativo do domínio europeu sobre o resto do mundo. A curiosidade científica, por mais genuína que pudesse ser, levou, assim, à construção de um corpo de conhecimento que funciona como um espelho no qual o colonizador europeu, na sua função de representante das “Luzes”, se revê num papel “naturalmente” superior. Nada há, pois, de inocente neste projecto de produção de conhecimento sobre o outro, pelo que prolongar esse projecto no século XXI sem, do mesmo passo, tornar manifestos os seus aspectos problemáticos, equivale a uma inaceitável estratégia de esquecimento. A questão não se resume, pois, à investigação da proveniência e à eventual consequência da restituição; torna-se, igualmente, indispensável repensar todo um contexto museológico assente em pressupostos que perpetuam de outras formas e projectam no presente uma relação colonial.
No caso do Fórum Humboldt, tal implicaria uma revisão profunda do programa que subjazeu à formulação do projecto e que, mesmo que de forma mais matizada, continua a subjazer à concepção de um museu que se prepara para abrir as portas em 2019. É assim, que, numa discussão recente com o historiador da arte Horst Bredenkamp, ex-membro da equipa de curadores do museu e uma das vozes mais críticas das exigências de restituição, o já citado Jürgen Zimmerer acaba por considerar o projecto uma oportunidade perdida, a começar, nas suas próprias palavras, pelo “pecado original” da reincidência na “separação entre arte europeia e não-europeia”5. Tendo em vista a proeminência, entre as colecções a instalar, de uma colecção de bronzes de Benim, proveniente do largo espólio trazido para Inglaterra em 1897 no âmbito de uma expedição punitiva britânica, Zimmerer propõe, algo provocatoriamente, que o museu seja rebaptizado em “Fórum de Benim”. Trata-se, no entanto, de uma provocação fundamentalmente didáctica: talvez a opção por ela pudesse suscitar o aprofundamento de uma discussão que deu passos importantes, mas de modo nenhum foi ainda levada tão longe quanto é urgente e necessário.
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Artigo produzido no âmbito do projeto de investigação MEMOIRS Filhos de Império e Pós memórias Europeias, financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (nº648624), Programa Eu

  • 1. Clara Ervedosa, “O passado colonial: Macron age, Merkel reage”, Público, 12/6/2018, p. 46.
  • 2. Comunicado de imprensa 186 do Departamento de Imprensa e Informação do Governo Federal alemão.
  • 3. Der Tagesspiegel, 2/1/2019. As mesmas posições, assumidas como posições oficiais do governo federal alemão, constam de um artigo publicado, em conjunto com a deputada Michelle Müntefering no jornal Frankfurter Allgemeine Zeitung de 15/12/2018, significativamente transcrito no boletim oficial do Ministério dos Negócios Estrangeiros alemão.
  • 4. Jürgen Zimmerer, “Humboldt Forum: Das koloniale Vergessen”, Blätter für deutsche und internationale Politik, 7/2015, 13-16.
  • 5. Cf. Andreas Kilb; Stefan Trinks, “Streitgespräch über Beutekunst: War Humboldt Kolonialist?”, Frankfurter Allgemeine Zeitung, 3/1/2019.

por António Sousa Ribeiro
A ler | 5 Janeiro 2019 | Memoirs, restituição património