Um dúbio decoro

Texto sobre a série Debret, de Vasco Araújo, exposta na Pinacoteca do Estado de São Paulo, entre 16 de março e 25 de agosto de 2013.

Não nos enganemos com esses objetos e as mesas que os suportam, com suas elegantes retas, curvas, círculos e ovais, com a calidez de suas cores e o dourado, luminosamente discretos. Não nos enganemos, pois, como indicam as cenas breves compostas pelos insólitos bibelôs, Debret, a série de Vasco Araújo, fala do sujo, do podre, do baixo.

As mesas e os objetos que parecem provenientes de saletas de outrora, no sítio eletrônico do artista são apresentadas como esculturas. Qualificação que, no entanto, não se refere apenas às pequenas figuras modeladas com fimo, mas aos grupos de elementos reunidos com elas. A princípio, mais pertinente talvez fosse remeter esses conjuntos ao universo das artes decorativas, ao mobiliário e aos objetos ornamentais que ultrapassam o cumprimento de necessidades práticas ou até delas prescindem. Entretanto, mais do que apenas agregar matéria ou desbastá-la, também foi e é possível à escultura resultar da justaposição de coisas, sejam elas modeladas, esculpidas, forjadas, fabricadas, apropriadas. Por outro lado, pode-se entender essas mesas como mais uma revisão dos pedestais, das bases que intermedeiam o mundo real e o da representação na escultura. Com mesas e miniaturas, esses conjuntos exploram fronteiras entre os campos escultórico e do mobiliário, e, confirmando suas tradições, afetam o espaço ao redor e os corpos que atraem.

Não fosse a aparência calmamente ordenada dessas composições, seria nada estranho qualificá-las como assemblages, as quais são usualmente associadas a arranjos impuros com fragmentos. Assim, parafraseando Robert Rauschemberg e suas combine paintings, pode-se denominar as peças da série Debret como combine sculptures. Pois, seguindo uma tendência artística vigente há algum tempo, Vasco Araújo tem-se valido de multimeios para compor suas obras. Neste caso, os trabalhos resultam de objetos e textos, ou, mais especificamente, de acordo com a referida apresentação, “da combinação de quatro elementos distintos: mesas, ovos, figuras e citações de Padre António Vieira”.

O título da série se refere a Jean-Baptiste Debret (Paris, 1768-1848), o artista francês que estudou na classe de Jacques Louis David na École de Beaux-Arts, em Paris, e, emigrado para o Brasil em 1816, trabalhou para a corte portuguesa, então sediada no Rio de Janeiro, onde foi um dos criadores e o primeiro professor de pintura histórica da Academia Imperial de Belas Artes. Vivência no Brasil que, após seu regresso à França, em 1831, foi em grande parte sintetizada no álbum Voyage Pittoresque et Historique au Brésil, publicado entre 1834 e 1839.

Ainda segundo o texto no sítio eletrônico do artista, a série é “uma releitura”. Mas pode-se perguntar o que é relido nesses conjuntos. Algumas sentenças de Vieira são citadas e parecem funcionar como chaves de leitura do que é encenado com as figuras, embora se possa fazer o caminho inverso – reler suas palavras por meio das pequenas esculturas, o plástico-verbal à luz do plástico-visual.

O que se relê é a obra de Debret? Sim e não. Na referida apresentação é dito que essas esculturas “partem da obra do pintor Jean-Baptiste Debret” e, com efeito, algumas das peças modeladas de Debret são similares a algumas figuras que Debret representou. Por outro lado, é um engano estabelecer uma conexão de cunho apenas formal entre as esculturas de Vasco Araújo e a obra de Debret, pois aquelas não se resumem aos elementos plásticos desta, nem os relêem morfologicamente. A rigor, nenhuma cena representada por Debret é encontrada na série homônima, ainda que algumas figuras antes vislumbradas em aquarelas ou gravuras parecem ter se consubstanciado recentemente em argila de polímero. Como as obras de Debret, também essa série de Vasco Araújo resulta de montagens com elementos diversos. Entretanto, enquanto o artista francês articulava referências do que viu e experimentou na paisagem física e social brasileira, o artista português manipula elementos de diferentes domínios e proveniências.

Esses arranjos com peças que transitam entre a utilidade e a decoração parecem oriundos do refinamento polido de cômodos mais ou menos privativos de antigos palacetes. Entretanto, para além do ambiente doméstico, dos modos e modas dos salões, as figuras representadas, em sua maioria enredadas em cenas íntimas, em situações burlescas, picantes e violentas, instauram problemas, deflagram pensamentos que vão muito além do espaço familiar, da vida privada, embora ali brotem ou para ali refluam, sendo onde, talvez, se mostrem com potência maior.

Para que a reflexão se instaure e expanda é fundamental que os atributos plásticos pareçam opostos aos tópicos enfocados. Pois assim como a paleta das figuras, com tons nada exaltados, contrasta com as personagens, suas poses e ações, assim como a caligrafia elegante e uniforme destoa dos precipícios intelectuais instaurados pelo escrito, citações da História do Futuro do padre Antônio Vieira, também o desenho das mesas, bem como a disposição dos vários elementos sobre as mesmas, indica uma estruturação tranqüila, pacificada, que se quer herdeira do classicismo greco-romano, e simula contradizer as situações representadas. Entretanto, que os ovos tenham a mesma cor das mesas – a mesma pele? –, tonalmente similar às cores das figuras, é um indício de como orgânico e inorgânico estão irmanados na mesma conjuntura, estão afetados pela mesma problemática. Lembremos, com Adolf Loos, os enlaces entre ornamento e crime, assim como se casam, tensamente, nobre e torpe, elegante e tosco, frívolo e grave, leve e pesado, bom e mau gosto, limpo e sujo, viçoso e podre, alto e baixo. Como acontece muitas vezes na arte, essa fricção gera uma estrutura formal (auto)crítica na qual a morfologia e o tema são intrinsecamente afins, embora não coincidentes, determinando o conteúdo da obra.

Enquanto os elementos plásticos o sugerem por antítese, o texto de apresentação explicita diretamente um dos objetivos das obras: “As figuras retratam acções entre brancos e negros reveladoras da relação sexual e social dos mesmos. A inserção destas figuras em ovos (de modo paralelo ao que acontece nos ovos Fabergé) deslumbra uma face mecânica, imperialista e despótica de onde resultou a criação de uma nova raça (a raça mulata).”

Assim, com essa série, Vasco Araújo juntou-se ao grupo de artistas não naturais do Brasil que abordam tópicos da problemática social afro-brasileira, tornou-se mais um dos estrangeiros que foram atraídos pelo afro Brasil. Ao menos desde o início do século XIX, pode-se falar em um persistente interesse por esse campo, embora seja importante diferenciar as realizações, pois se algumas derivam de experiências contínuas, outras têm caráter pontual ou esporádico. Há as obras dos ditos artistas viajantes: o francês Jean-Baptiste Debret, o alemão Johann Moritz Rugendas, a inglesa Maria Graham e o austríaco Thomas Ender, entre muitos outros. Há algumas pinturas do espanhol Modesto Brocos y Gómez – Engenho de Mandioca, Redenção de Cã e A Mandinga – fundamentais na história das relações entre arte, Brasil e África. Há Cena de la macumba, da portuguesa Maria Helena Vieira da Silva, uma tela singular em sua obra, porém muito típica do interesse pelas ditas religiões afro-brasileiras. Há as extensas obras de Pierre Verger, natural da França, de Hansen Bahia, alemão de origem, e de Carybé, nascido na Argentina, artistas que se naturalizaram brasileiros e se dedicaram a diferentes aspectos da cultura afro-brasileira, especialmente na Bahia. Recentemente, ganharam novo impulso as conexões estrangeiras ao universo cultural afro-brasileiro. Como nos diálogos dos artistas brasileiros com a cultura afro-brasileira, as religiões com matrizes africanas são um tópico sempre atraente e sedutor – um exemplo é De lama lâmina, a intervenção dos norte-americanos Mattew Barney e Arto Lindsay no carnaval de Salvador em 2004, outro são as imagens fotográficas de ex-votos e lojas de ervas na Bahia que integram a série feita pela portuguesa Cristina Lamas em 2008. A capoeira suscitou uma interpretação de forte acento formal na série fotográfica homônima da espanhola Isabel Muñoz. Mais sociológicas são as abordagens do universo afro no Brasil pelos norte-americanos Gerald Cyrus, também fotógrafo, e Kehinde Wiley, que em 2008 incluiu pinturas de jovens negros brasileiros em seu projeto The World Stage. E a de Vasco Araújo, com a série Debret e suas cenas de violência e de promiscuidade inerentes à escravidão de africanos e afro-descendentes no Brasil.

Mas enquanto as obras dos demais artistas citados surgiram em função de experiências diretas que tiveram com a realidade afro no Brasil, nessa série de Vasco Araújo, ao contrário, o contato com o universo sociocultural afro no Brasil é intermediado por obras do artista Jean-Baptiste Debret e do padre Antônio Vieira, entre outras referências. Ao dizer que Debret elaborou “uma visão histórica, política, cultural e social do Brasil dessa época”, Vasco Araújo ajuda a perceber como ele também se situa na condição, bem comum atualmente, do artista como cientista social – mais do que os elementos morfológicos e até os temas da obra do primeiro, ao segundo interessam os objetivos, sentidos e alcances do fazer artístico. Contudo, enquanto aquele operava a partir de uma estranheza de cunho antropológico, o distanciamento deste é de cunho mais histórico do que geográfico. Entre Vasco Araújo e a problemática social afro-brasileira há a história da arte, da religião, dos costumes, do pensamento – há a história.

Com as apropriações que a constituem, a série Debret deflagra uma temporalidade simultaneamente ampla, difusa e algo descontínua. Se é à primeira metade do século XIX que remete a indumentária das figuras representadas, o tempo é dilatado pelos móveis, com a depuração ornamental característica do desenho industrial moderno das últimas décadas do século XIX e das primeiras dos novecentos. O que é confirmado pelos ovos, devido a suas similitudes com aqueles preciosamente elaborados por Peter Carl Fabergé para os czares da Rússia entre 1885 e 1917. Entretanto, se concordarmos com Paulo Pires do Vale, para quem os ovos-surpresa de Vasco Araújo são “mais devedores da Kinder do que de Fabergé”,1 o tempo avança ainda mais, ultrapassa 1974, quando a Ferrero começou a fabricá-los na Itália. Na direção oposta, os textos fazem retroceder o arco temporal delineado pelas referências, pois o padre Antônio Vieira (Lisboa, 1608 – Salvador, 1697) teria começado a escrever sua História do Futuro em 1649, embora o livro tenha sido publicado, postumamente, apenas em 1718.

Também com relação ao espaço, a série indica alcance vasto. Seu título e as citações da História do Futuro remetem tanto ao Brasil, onde atuaram o Padre Antônio Vieira e Jean-Baptiste Debret, quanto à Europa, de onde partiram esses autores rumo ao Brasil, continente em que foram publicadas as primeiras edições de seus livros, de onde emanou a dita Art Nouveau e seu gosto pela economia de redução, onde foram criados os ovos Fabergé e os Kinder. Mas chegam mais longe, com a difusão dessas obras e suas múltiplas reverberações pelo mundo. Também a mobilidade dos conjuntos escultóricos, irrestritos a sítios específicos, indica uma espacialidade extensa, aberta, inclusiva.

Artes antigas e modernas – escultura, joalheria, desenho industrial, caligrafia, oratória, teologia, filosofia – são articuladas para falar de ontem e de hoje, mas, também, como sinaliza a História do Futuro, de amanhã. Sim, falam de ontem, de anteontem, de muito antes, assim como de aqui e de alhures. Consequentemente, tempo e espaço dilatados estendem a problemática afro para além do Brasil do século XIX, fazendo pensar mundialmente na diáspora africana decorrente do tráfico negreiro e da escravidão; com o quê a série se aproxima do trabalho de Yinka Shonibare. E estendem a problemática de Debret para além da questão afro. Fazem pensar nas explorações intersubjetivas para além de processos colonizadores e escravagistas, para além de dicotomias étnico-raciais. Como é declarado na apresentação da série, o uso das “citações de Padre António Vieira (escritas nas mesas) leva-nos a uma releitura que se insere num discurso pós-colonial, período em que vivemos actualmente”.

Contudo, contrariamente ao que pode fazer supor esse caminho analítico, Debret não inverte a lógica do decoro ornamental para se revelar uma obra de denúncia. É, com certeza, uma obra de crítica, uma obra que parte do entendimento da arte também como crítica política. Mas que sabe tanto da necessidade de lidar com o sensível, quanto da possibilidade de deleitar-se nessa lida, assim como da obrigatoriedade artística de promover, ainda que tensamente, no limite, o prazer artístico.

Lúdicos, os ovos são potencializadores do sensível em Debret. Símbolo universal da germinação, o ovo guarda em seu interior a renovação. Ao gerar o futuro, pode revigorar o passado e, também, apenas repeti-lo, para o bem e para o mal. Portanto, oculta surpresas, é imprevisto. Nesse sentido, o ovo é abissal. E os da série Debret são ovos de madeira pintada, com dobradiças. Ovos um tanto artificiais que, ao se abrirem, revelam serem compostos internamente de ouro, essa medida universal do valor das coisas, esse indicador do excelso místico, religioso, artístico, político, social. Mas o que iluminam de modo resplandecente esses ovos? Apesar de fazerem brilhar cenas interétnicas, com duplas, trios e quartetos formados por negros e brancos (mais alguns animais: um cachorro e um porco), não se trata, obviamente, como o referido texto bem esclarece, de um elogio à mestiçagem, à “criação de uma nova raça (a raça mulata)”. Sintomaticamente, o ouro ricocheteia a partir dos instrumentos de martírio. O contato e a mistura não se processam sem jugo, perversão, violência, deslocamento, reviravolta, inversão. Contudo, ciente da complexa problemática da conjuntura (pós-)colonial e sem apagar ou atenuar crimes históricos, Vasco Araújo não faz concessões a vítimas, nem se engaja na construção de heróis. Os discretos reflexos dourados banham cenas de dominação, castigo, tortura, sexo, volúpia, desejo, desdém, vingança, brincadeira, jogo. É um misto de felicidade e dor, de sofrimento e gozo, de humano e inumano – enfim, de humanidade.

Entretanto, na série Debret, há dois conjuntos nos quais os ovos estão enigmaticamente fechados. Próximo a um deles, a cena conjuga um homem negro portando uma máscara de metal, um instrumento de castigo e suplício, que puxa com uma corda um homem branco refestelado em uma pequena carruagem, enquanto a voz de Vieira ecoa caligraficamente: “… cada um ouve, não conforme os ouvidos, senão conforme tem o coração e a inclinação.” A contradição entre os sentidos, os afetos e o intelecto, a negação do corpo pela ideologia, é própria da cena e/ou de quem a observa? São do homem que parece não (querer) sentir a ignomínia à qual está atrelado, e/ou daqueles que, desde então (em verdade, desde muito antes), não percebem a persistência daquele regime social em estruturas (móveis, indumentárias, cores, elementos morfológicos, estilos) idênticas, semelhantes ou travestidas?

No outro dos ovos fechados, um homem branco vestido e em pé manipula com a mão esquerda um cajado que quase toca um homem negro nu, sentado, com as pernas entreabertas, reclinado e apoiado sobre outra figura negra nua, a qual tem as pernas dobradas e está debruçada sobre si mesma, constituindo uma dupla que ao mesmo tempo se apóia em um ovo inclinado e o sustenta; ovo sobre o qual se deita de bruços, com as pernas abertas, um terceiro homem negro nu. O descanso dos negros com a iminência da pervertida brincadeira do branco gera um clima de prostração. Essa lassidão quase reinante se ilumina com as palavras de Vieira: “Pelo que fizeram se hão-de condenar muitos, pelo que não fizeram, todos”, a envolver todas personagens e sujeitos no jogo de ação e inação gerador da situação degradada.

Longe das certezas, esses ovos geram questões. O que eles guardam? Qual surpresa aquela dupla ronda? Qual surpresa ronda aquela dupla? Qual imprevisto aquele quarteto choca? Ou é o ovo que os incuba e prepara seus futuros? Que promessas são germinadas nesse ovo na iminência de cair e romper-se, mas que ninguém labuta para aprumar, abrir ou destroçar? Desses ovos brotará algo diverso ou apenas mais do mesmo? A vertigem será inaudita ou reincidente? A vertigem é o inaudito ou a reincidência? Inusitado ou comum, novo ou antigo, o que ganhar a luz será bom ou mal? O abismo é ansiar pela bondade inédita ou resignar-se com a reincidência do mal? O abismo é a ingenuidade e/ou o conformismo? Ao contrário do que sugere a bem-posta estabilidade dessas mesas e bibelôs, Debret – a obra – cultiva a dúvida.

  • 1. VALE, Paulo Pires do. “Breve sumário da história do futuro”. In: ARAÚJO, Vasco. Debret. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010, p. 26.

por Roberto Conduru
Vou lá visitar | 1 Novembro 2013 | arte contemporânea