Incorporações – arte afro-brasileira contemporânea

Fotografia de Marcondes DouradoFotografia de Marcondes Dourado

Misturas, hiatos e tensões constituem a africanidade inerente à cultura brasileira. Por um lado, a transposição forçada de africanos ao Brasil para serem escravizados, entre os séculos XVI e XIX, determinou rupturas diversas e uma complexidade social que são ainda hoje bastante sensíveis. Por outro lado, a participação deles e de seus descendentes na construção da sociedade brasileira tem gerado entrelaçamentos culturais que são observáveis em quase todos os domínios sociais.

Assim como os vínculos com a África são fundamentais à compreensão da cultura brasileira, as relações com a problemática sociocultural afrodescendente constituem um elemento intrínseco ao campo da arte no país, podendo ser percebidas como uma de suas constantes, particularmente na contemporaneidade. Com efeito, em meio aos múltiplos campos de ação explorados pelos artistas no Brasil hoje, um dos mais férteis é configurado por diálogos com o universo cultural afro-brasileiro. Recorrência que é significativa no processo de mudança dos modos de inclusão dos afrodescendentes na sociedade brasileira, contribuindo para sua valorização e maior visibilidade social.

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Incorporações apresenta obras que, em diferentes meios, articulam-se a dimensões africanas da cultura brasileira. Descontinuidade e impureza caracterizam este variado conjunto, elaborado por artistas, afrodescendentes ou não, de variados contextos do país, a partir de diferentes princípios artísticos e visões de mundo.

Nestes diálogos, o principal foco de interesse são as religiões afro-brasileiras, seguindo a tradição de representá-las, que fora iniciada quando o Brasil era uma colônia portuguesa e tem ganhado maior relevo na modernidade, desde o final do século XIX. As obras resultam de vivências em comunidades religiosas, de pesquisas feitas diretamente nas mesmas e da singular presença delas na paisagem brasileira. Lidando com seus imaginários e práticas, ora são feitas apropriações imediatas ou transformadas de seu amplo e particular universo plástico-simbólico, sobretudo de imagens de seus mitos e divindades, ora são explorados seus ritos, em processos marcados por consonâncias e lapsos entre arte e religião.

Além do mundo sagrado, há interesse por outros ritos caros aos brasileiros, que estão difundidos no cotidiano e em momentos excepcionais da vida no país: futebol, carnaval e outras festas populares. A presença dos afrodescendentes nestes acontecimentos cruciais do dia-a-dia brasileiro é um diferencial que ajuda a ressaltar sentidos africanos na paisagem sociocultural do país.

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Recentemente, têm crescido as articulações de arte e política com respeito à questão afro no Brasil, em sintonia com as políticas públicas afirmativas para afrodescendentes, que cresceram nos últimos anos. Participa-se artisticamente da luta pela melhoria das condições sociais dos afrodescendentes, em particular, e dos brasileiros, em geral, com obras que lidam com problemas históricos, existentes há muito tempo que não deixam de se complexificar no presente, sobretudo com o racismo entranhado na sociedade brasileira.

Na maioria das reflexões artísticas da problemática sociocultural afrodescendente, religião e política estão misturadas entre si e com outras questões, sejam da arte, sejam de outros domínios, tempos e lugares, pois raramente as referências africanas e afro-brasileiras são exclusivas. Nesse caminho poético-crítico, transitando entre sagrado e profano, individual e coletivo, pessoal e público, local e universal, arte, religião e política, os artistas acabam por instaurar uma África irrestrita a continentes e nações, uma África complexa, plural, porosa e atual, uma África brasileira.

Veja a programação aqui.

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Artistas participantes da exposição

Alexandre Vogler

A partir do Rio de Janeiro, Alexandre Vogler enfrenta com suas obras e intervenções urbanas, geralmente de modo provocativo e com ironia crítica distante do receituário politicamente correto, situações de micro e macro poder da sociedade contemporânea, frequentemente vinculadas à problemática sociocultural afro-brasileira.

Ayrson Heráclito

Entre Salvador e o Recôncavo baiano, atuando em mídias diversas, Ayrson Heráclito vem configurando um território poético marcado por questões cruciais da história dos africanos e afrodescendentes no Brasil – diáspora, escravidão, religião – com destaque para a exploração de significações de materiais orgânicos, especialmente do óleo de palma, ou azeite de dendê.

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Caetano Dias

Artista multimídia, atuante a partir de Salvador, Caetano Dias lida em suas obras e intervenções com questões diversas, universais, sejam atemporais, sejam do mundo contemporâneo, mas também abordando problemas socioculturais da Bahia e do Brasil, muitas vezes em conexão com a africanidade. 

Frente 3 de Fevereiro

A partir de São Paulo, o coletivo Frente 3 de Fevereiro tem enfrentado a situação sociopolítica no Brasil e no mundo, com particular ênfase na problemática dos afrodescendentes, por meio de ações, livro, blog e vídeos que, de modo ao mesmo crítico e lúdico, questionam e extrapolam as fronteiras entre os campos artístico e político.

Jorge dos Anjos

De Minas Gerais, Jorge dos Anjos dá continuidade ao caminho, hoje tradicional no Brasil, de conexão de princípios plásticos do construtivismo à visualidade afro-brasileira, o atualizando por meio de procedimentos como a apropriação e a performance, bem como do uso simbólico de materiais como a madeira, a pedra, o metal, o feltro e a pólvora.

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Marcondes Dourado

Vídeos, performances colaborativas e instalações multimídias são os meios mais freqüentes de intervenção de Marcondes Dourado, de Salvador, abordando tópicos de religião, carnaval, sexo, gênero, trabalho, história e, conseqüentemente, política, que atravessam e são perpassados pela problemática afro-brasileira.

Mario Cravo Neto

Entre o estúdio e a rua, em composições arranjadas ou capturadas fotograficamente, que ressoam tradições da escultura e da pintura, Mario Cravo Neto constituiu uma singular elegia ao mundo, particularmente o baiano, de Salvador, especialmente afro-brasileiro, no qual tem posição de destaque Exu, a divindade ioruba que se torna cada vez mais brasileira.

Martinho Patrício

Religião, festa e sexualidade são alguns dos tópicos abordados por Martinho Patrício, da Paraíba, que, com rigor e lirismo, conjuga pensamento e artesania, reflexão histórica, memória e vivência, gerando obras que se apropriam do rico imaginário plástico popular do Nordeste brasileiro, nas quais pulsa o imaginário afro-brasileiro.

Ronald Duarte

Do Rio de Janeiro, Ronald Duarte tem explorado a performance e o vídeo em realizações que se valem das confluências entre rituais da arte e das religiões afro-brasileiras, sobretudo dos imaginários desses cultos e da tendência na arte contemporânea brasileira de incorporar às obras a participação de variados agentes.

Rosana Paulino

Atuando a partir de São Paulo, Rosana Paulino é uma pioneira no processo recente de intensificação dos diálogos com a cultura afro-brasileira, com uma visada original que, abordando tópicos individuais e coletivos, familiares, religiosos e políticos, trata de impedimentos sociais antigos e atuais, particularmente dos limites postos à sua atuação e expressão como artista, mulher, afrodescendente.

 

A exposição pode ser visitada na La Centrale Électrique - European Centre for Contemporary Art, Bruxelas, Bélgica desde o dia 15 de Outubro. A sua exibição prolongar-se-à até ao dia 15 de Janeiro de 2012.

por Roberto Conduru
Vou lá visitar | 26 Outubro 2011 | arte afro-brasileira contemporânea