Teoria Geral do Esquecimento - PRÉ-PUBLICAÇÃO Agualusa

O colecionador de desaparecimentos

 

Entre 1997 e 1998 desapareceram nos céus de Angola cinco aviões, com um total de 23 tripulantes, originários da Bielorrússia, Rússia, Moldávia e Ucrânia. A 25 de Maio de 2003, um Boeing 727, propriedade da American Airlines, desencaminhou-se do aeroporto de Luanda, e nunca mais foi visto. O aparelho estava há 14 meses sem voar.

Daniel Benchimol colecciona histórias de desaparecimentos em Angola. Todo o tipo de desaparecimentos, embora prefira os aéreos. É sempre mais interessante ser arrebatado pelos céus, como Jesus Cristo ou a sua mãe, do que engolido pela terra. Isto, claro, se não nos estivermos a servir de uma linguagem metafórica. Pessoas ou objectos literalmente engolidos pela terra, como parece ter acontecido com o escritor francês Simon-Pierre Mulamba, são, contudo, casos muitos raros.

O jornalista classifica os desaparecimentos recorrendo a uma escala de zero a dez. Os cinco aviões desaparecidos nos céus de Angola, por exemplo, foram classificados por Benchimol como desaparecimentos de grau oito. O Boeing 727, como desaparecimento de grau nove; Simon-Pierre Mulamba também.

Mulamba desembarcou em Luanda a vinte de Abril de 2003, a convite da Alliance Française, para uma conferência sobre a vida e a obra de Léopold Sédar Senghor. Alto, distinto, sempre com um belíssimo chapéu de feltro, que usava levemente descaído para o lado direito, numa estudada indiferença. Simon-Pierre gostou de Luanda. Aquela era a primeira vez que visitava África. O pai, professor de danças latinas, natural de Ponta Negra, falara-lhe do calor, da humidade, da ameaça das mulheres, mas não o preparara para aquele excesso de vida, o carrossel de emoções, o embriagante tropel de sons e de cheiros. Na segunda noite, logo após a palestra, o escritor aceitou o convite de uma jovem estudante de arquitectura, Elisabela Montez para tomar um copo num dos mais elegantes bares da Ilha. A terceira noite atravessou-a a dançar mornas e coladeras num quintal de cabo-verdianos, na Chicala, acompanhado por duas amigas de Elizabela. Na quarta noite desapareceu. O adido cultural francês, que combinara almoçar com ele, foi procura-lo ao lodge onde o haviam hospedado, um lugar muito bonito, perto da Barra do Quanza. Ninguém o vira. O telemóvel não respondia. No quarto, a cama permanecia por abrir, os lençóis esticados, um chocolate pousado na almofada.

Daniel Benchimol soube do desaparecimento do escritor antes da policia. Bastaram-lhe dois telefonemas para ficar a conhecer, com larga soma de detalhes, onde e com quem Simon-Pierre passara as primeiras noites. Mais duas chamadas e descobriu que o francês fora visto a sair, às cinco da madrugada, de uma discoteca, no Quinaxixe, frequentada por expatriados europeus, catorzinhas, e poetas com mais sede do que inspiração. Nessa noite deslocou-se à discoteca. Homens gordos, suados, bebiam em silêncio. Outros, em mesas escuras, afagavam os joelhos nus de meninas muito novas. Uma das garotas chamou-lhe a atenção porque trazia na cabeça um chapéu de feltro, negro, com uma fina tira vermelha. Ia para se dirigir a ela quando um sujeito loiro, de cabelo comprido, apanhado num rabo de cavalo, o travou por um braço:

“A Queenie está comigo.”

Daniel sossegou-o:

“Tranquilo. Só quero fazer-lhe uma pergunta.”

“Não gostamos de jornalistas. O senhor é jornalista?”

“Tem dias, amigo. Mas sinto-me mais judeu.”

O outro largou-o, perplexo. Daniel cumprimentou Queenie:

“Boa noite. Queria apenas saber onde arranjou o chapéu.”

A garota riu:

“Um mulato francês que esteve aqui ontem, ele o perdeu.”

“Perdeu o chapéu?”

“Ou o contrário, o mulato se perdeu. O chapéu me encontrou.”

Explicou que na noite anterior um grupo de meninos, desses que moram na rua, vira o francês sair da discoteca. Detivera-se uns metros adiante, nas traseiras de um prédio, para urinar, e então a terra engolira-o. Só ficara o chapéu.

“A terra engoliu-o?”

“É o que estão dizendo, kota. Podem ser areias movediças, pode ser feitiço, não sei. Os meninos puxaram o chapéu com um pau. Eu comprei-lhes o chapéu. Agora é meu.”

Daniel saiu da discoteca. Dois meninos viam televisão, sentados no passeio, diante da montra de uma loja. O som da televisão não chegava ao exterior, de forma que os dois improvisavam os diálogos dos sucessivos actores. O jornalista já vira aquele filme. Os novos diálogos, porém, transformavam por completo o enredo. Ficou alguns minutos, divertido, a assistir ao espectáculo.  Aproveitou o intervalo para se dirigir aos garotos:

”Disseram-me que um sujeito, um francês, desapareceu aqui perto, ontem à noite. Consta que foi engolido pela terra.”

“Sim”, confirmou uma das crianças: “Essas coisas acontecem.”

“Vocês viram?”

“Não. Mas Baiacu viu.”

Daniel interrogou outros meninos, nos dias seguintes, e todos conversavam sobre o triste fim de Simon-Pierre como se o houvessem testemunhado. Depois, apertados, reconheciam não ter estado lá. O certo é que nunca mais ninguém viu o escritor francês.  A polícia arquivou o caso.

Na Escala de Benchimol há apenas um desaparecimento de grau dez. O próprio jornalista testemunhou esse incrível extravio. A 28 de Abril de 1988, o “Jornal de Angola”, para o qual Daniel trabalhava, enviou-o, na companhia de um fotógrafo, o famoso Kota 35, a uma pequena localidade chamada Nova Esperança, onde teriam sido assassinadas 25 mulheres, suspeitas de feitiçaria. Os dois repórteres desembarcaram de um avião comercial, no aeroporto do Huambo. Um motorista aguardava-os para os conduzir a Nova Esperança. Uma vez lá, Daniel conversou com o soba e vários populares. Kota 35 fez os retratos. Anoitecia quando regressaram ao Huambo. Deveriam ter retornado a Nova Esperança na manhã seguinte, num helicóptero da Força Aérea. O piloto, porém, mostrou-se incapaz de localizar a aldeia:

“Estranho”, confessou, inquieto, após duas horas a cirandar pelos céus: “Não existe nada nessas coordenadas. Lá em baixo só tem capim.”

Daniel irritou-se com a inépcia do jovem. Voltou a contratar o motorista que primeiro os havia conduzido. Kota 35 recusou-se a acompanhá-los:

“Não há nada para fotografar. Não se fotografam ausências.”

Andaram às voltas, no carro, revisitando as mesmas paisagens, como num sonho, durante o infinito tempo dos sonhos, até que também o motorista confessou o desconcerto:

“Estamos perdidos!”

“Estamos? Quem se perdeu foi você!”

O homem encarou-o enraivecido, como se o achasse responsável pelo delírio do mundo:

“Esses caminhos estão mas é muito bêbados.” Dava grandes socos no volante: “Acho que sofremos um acidente geográfico!”

Subitamente aconteceu uma curva, e emergiram daquele erro, ou daquela ilusão, estonteados e trémulos. Não encontraram Nova Esperança. Todavia, uma placa devolveu-os à estrada, e esta, ao Huambo.  Kota 35 aguardava-o no hotel, braços cruzados sobre o peito magro, rosto fechado:

“Más notícias, companheiro. Revelei os rolos e estão queimados. Só nos dão material de merda. Cada dia fica pior.”

No jornal ninguém pareceu perturbado com a notícia de que Nova Esperança desaparecera. O chefe-de-redacção, Marcelino Assumpção da Boa Morte, soltou uma gargalhada:

“O quimbo desapareceu?! Neste país tudo desaparece. Talvez o país inteiro esteja em vias de desaparecimento, uma aldeia aqui, outra acolá, quando dermos por isso não existe nada.”

Em 2003, poucas semanas após o misterioso desaparecimento do escritor francês Simon-Pierre Mulamba, ao qual os jornais angolanos deram certo destaque, Marcelino Assumpção da Boa Morte  chamou Daniel ao seu gabinete. Estendeu-lhe um envelope azul:

“Tenho uma coisa para você, que colecciona desaparecimentos. Leia isto. Veja se dá matéria.”

 

 

Apresentação de “Teoria Geral do Esquecimento”, segunda-feira, dia 14, às 22h00, no B.leza.


 



 

por José Eduardo Agualusa
Mukanda | 8 Maio 2012 | Agualusa, esquecimento, guerra civil, literatura angolana