Rio Negro - pré-publicação

O barco deslizava devagar através da água lisa, quase negra, larga lâmina de chumbo pousada entre a floresta. As margens, muito ao fundo, cobertas pela sombra compacta das árvores, repetiam‑se insones e apáticas, dia após dia. Nenhuma asa sobressaltava o ar. Nenhuma barbatana agitava a imensa extensão líquida. Um dos escritores, um jovem rebelde, muito pálido, sugeriu que talvez o barco recuasse todas as noites pelo mesmo trilho por onde, durante o dia, fingia avançar. Pensando melhor talvez nem sequer avançasse. As margens eram sempre as mesmas. As águas, sempre as mesmas. Apenas o céu se renovava. 

«Vai ver estamos mortos», acrescentou um segundo escritor: «Estamos mortos e ainda não sabemos.»

O primeiro escritor daria um morto convincente. Além da palidez e das profundas olheiras, escavadas com raiva num rosto excessivamente magro, exibia no braço esquerdo a tatuagem de uma serpente mordendo um coração. O segundo escritor, embora muito mais velho,  parecia, pelo contrário, demasiado jovem e demasiado saudável para um morto. Foi então que o índio, sentado a uma mesa próxima, ergueu a voz: «Estas águas estão cheias de mortos.»

Os dois escritores ficaram à espera que continuasse, mas ele não disse mais nada. O índio viajava ao serviço da empresa de turismo corresponsável pelo encontro literário. Nessa manhã levara os escritores numa visita pela floresta. Mostrou‑lhes uma palmeira eriçada de espinhos. Arrancou um espinho. Agachou‑se junto às raízes de uma árvore enorme e mergulhou a ponta do espinho numa espuma branca:

«Isto é esperma de um sapo. Se tocar num olho, na língua, a pessoa morre em poucos segundos. Paralisa o sistema nervoso.»

A seguir cortou, com um único golpe de machete, o tronco estreito, muito liso e redondo, de um pequeno arbusto:

«É oco por dentro. Pronto. Virou uma zarabatana.»

Introduziu o espinho na arma e soprou. O espinho cravou‑se numa árvore, a escassos centímetros dos olhos espantados do primeiro escritor.

«Caramba! Quase me acertava!»

O índio encolheu os ombros:

«Se a intenção fosse acertar, eu teria acertado, moço. Acertava nessa serpente.»

Os três homens estavam no deque, junto ao bar. Viam passar as margens, muito devagar, como num filme de Manoel de Oliveira. Em determinada altura uma viva agitação percorreu o rio e três botos cor‑de‑rosa irromperam da escuridão das águas. O índio suspirou:

«A genitália dos botos é igualzinha à das mulheres.»

O escritor mais novo soltou uma minúscula gargalhada:

«Como sabe?»

O guia lancou‑lhe um olhar oblíquo. Troça, talvez desprezo. Terminou de beber a coca‑cola e levantou‑se.

Ao final da tarde reapareceu no deque, fantasiado de índio norte‑americano, o rosto pintado, um cocar de penas coloridas na cabeça, e um violão debaixo do braço. Dirigiu‑se para um pequeno palco, improvisado junto ao bar, e começou a cantar, numa voz melancólica, uma canção que exaltava as virtudes da vida simples na floresta, em comunhão com a natureza, por oposição à violência das grandes cidades. O primeiro escritor inclinou‑se sobre o segundo, de forma a fazer‑se ouvir por entre os gemidos do índio:

«O que ele quis dizer há pouco com aquilo das genitálias dos botos?»

O segundo escritor sorriu: «Os pescadores matam os botos à paulada, sabia?

Matam os machos porque rasgam as redes para roubar peixe. Capturam as fêmeas para as violar.»

No palco o índio lamentava a poluição dos rios e a destruição das florestas. O segundo escritor alongou‑se numa explicação antropológica acerca dos rituais de iniciação feminina de alguns grupos étnicos da bacia amazónica. Recordou a prática de arrancar os cabelos das meninas, fio a fio, logo após a primeira menstruação.

O primeiro escritor desviou o olhar para a escuridão e voltou a lembrar‑se dos mortos. O barco avançava, ou recuava, ou nem uma coisa nem outra, enquanto a noite emergia do rio com o seu infinito cortejo de estrelas.

 

A Educação Sentimental dos Pássaros, novo livro de José Eduardo Agualusa (da Leya), reúne onze contos. A unir todos eles, uma mesma preocupação sobre a origem e a natureza do mal. Como é que o pequeno Jonas se transformou em Savimbi? O que move Hillary? Anjos e demónios caminham entre nós e nem sempre se distinguem uns dos outros.

Nas livrarias a 12 de Setembro.

por José Eduardo Agualusa
Mukanda | 31 Agosto 2011 | literaturas africanas