Os Pretos de Pousaflores - PRÉ-PUBLICAÇÃO AIDA GOMES

Ilustração de Tiago LançaIlustração de Tiago Lança

No Heilongo a Ercília não pára de perguntar, alguma vez viste o mar?
“É assim, o mar tem telhas de zinco azul transparente e paredes de nuvens. Os peixes têm camisas prateadas e casacos de lapelas douradas. Os lagartos jardineiros alisam a areia para que nas águas dancem flores de sal colorido.”
(As histórias que ela me obriga a inventar.)
“Viste onde, o mar?”
“Vi no rio Sulo, onde é que havia de ser?”
Ali o mar é mesmo grande. A água tem sabor a esponja ácida de frutos do mato que crescem nas margens. O corpo afunda-se em verde. Saltam fragrâncias de erva-sabão.
A mãe Geraldina dizia que os brancos escrevem nos livros e nós, os de Quelingeli, escrevemos no peito. Deixa ver se me lembro. Faz muito tempo. Era muito cedo. Acerquei-me das margens do rio e afastei as plantas. Fiquei à espera de que os insectos de asas grandes notassem a minha presença.
(Dá licença?) A respiração contida. Um suspiro. (Pode entrar.)
Saltaram em torvelinho milhares de aranhas brancas num sapateado transparente. Uma névoa de fumo agitou a superfície da água. A mãe Geraldina vestia o seu melhor pano, o da vegetação em profusão. Agora o meu vestido era, como posso explicar? Naquele tempo não tinha palavras. Os bichos passavam, abelha, percevejo, mosquito, gafanhoto, tudo a voar (já ali está!), olhava, zonza de tanto ver, brincava na lama, gafanhoto, mosquito, mosca passava, abanava a cabeça daqui para lá e seguia o voo (já foi lá!). O chão de terra vermelha. Fazia cabelos de lama com os dedos. Espalhava nos braços e no próprio vestido. O que quero dizer é que esse vestido vinha desde há muito tempo. Custava a entrar na cabeça. Apertava no peito. Era curto na manga, mas era o meu único vestido de ocasião.
A mãe esfregou-me com ervas que crescem à beira do rio. Mergulhou-me na água, desatou o pano e enxugou-me dos arrepios de frio. Faltava ainda amanhecer. Tudo era orvalho e gotas no dia em que a mãe me entregou ao meu pai no Heilongo.

Entrámos na primeira loja da povoação. Os meus olhos nas flores do vestido.
“Levanta a cabeça. Tem o quê aí, no chão?”
Esta é a minha mãe a falar, ela é assim. Não gosta de hesitação. Trazia maçarocas de milho e uma galinha para oferecer. O pai, nem bom-dia, nem boa-tarde. Eu também não disse nada. A Deodata beijou-me na cara. O Justino, que é o meu outro irmão, estava fora em Sá da Bandeira. A Ercília perguntou, tu na sanzala comias o quê?
“Gafanhoto, mosca, larva e macaco, mas comia rato, lagarto e cobra também.”
Coloquei dois dedos na garganta e fingi que engolia um bicho comprido.
“Glup.”
Inventar é fácil. (Difícil é escrever com as palavras do peito.) Esta minha irmã é muito criança. Acredita tudo.
Agora, que estava entregue, a mãe despediu-se e falou, o senhor seu pai vai ensinar a filha a escrever. Então um dia escreve uma carta que começa assim, eu, Belmira, mando cumprimentos para o meu avô Chingandji, o meu irmão João Sotomaior Guerra e para a minha mãe Geraldina, lá no Quelingeli, prometes?
Sangue de Cristo esfregado com cuspo na mão, prometo.

2

Quero narrar desfecho emblemático do ano lectivo de 74/75 no Liceu Diogo Cão em Sá da Bandeira. Merece posteridade. Calor de alegria e muita amizade. Enfastiados das expedições à piscina municipal sondando as curvas das fêmeas e exauridos de espantar gado solto na Praça dos Fundadores do Império, subimos ao cimo do monte de Nossa Senhora. Bradámos, abaixo o colonialismo. O coro revezou-se em uníssono e abaixou o fascismo. O Sidónio apregoou apaixonadamente, ou antes, vociferou contra toda a forma de opressão do homem pelo homem, das classes desclassificadas, a mancha da humanidade, ao angolano a sua identidade.
Saiu um Viva! Fervor clamoroso para a preservação das riquezas no subsolo angolano, abatam-se as aves de rapina a debicar os pedaços.
O Sidónio nem terminou, o Rui Vasco, caluanda cafuzo, mas vivo no entendimento, impôs-se no vozear confuso e proferiu, viva o homem por cima da mulher como manda a tradição. Dividiram-se os vivas. Uns mandaram abaixo, e os que estavam a favor zangaram-se e insultaram os do contra, não perdoavam ao Rui Vasco zangas anteriores, que não eram chamadas para ali. Quis evitar o rebentamento da onda má e arrastei o pessoal para campo neutral, abaixei o Roberto Carlos.
“Abaixo os sentimentais! O Duo Ouro Negro ainda vá que não vá!”
Os aplausos revigoraram o élan e lançaram-se vivas e mais vivas às gerações vindouras, que traçam o futuro que nem sequer está! Gramo muito essa parte. O futuro é uma moto a rugir nos quadris, chego aí num sítio e encontro uma jovem disposta a tudo, matar e depenar uma galinha, churrascada aprontada na hora.

Bom, terminei o liceu, o melhor é esquecer, quem era mesmo o Diogo Cão? Um gajo que nem soube aproveitar a areia da praia e ficar quieto na dele. Como eu, aqui no Heilongo, o odor dos eucaliptos inunda o lugar, cumpro o meu papel, sou muito amado pelas minhas irmãs, ficou comprovado no brilho dos olhos delas. Júbilo puro! Jamais vou esquecer. A Belmira montada no selim da bicicleta do alfaiate Leonardo e a Ercília atrás na garupa. Fenomenal! Não é qualquer um que aprende a andar de bicicleta no mesmo dia em que é ensinado! Proporcionei-lhes voo rasteiro no terreiro de cimento frente à loja. Houve azar. Caíram as duas. Levantei-as e soprei, magoaram-se, foi?

Mas louvo muito as minhas manas. Nunca me complicaram a vida a sério. Quem parte um osso no Heilongo, desafia a adversidade. A bicicleta foi imediatamente devolvida ao Leonardo. Surgiu outra ideia, esta magnífica. Improvisei um baloiço: um pneu furado, uma corda e um ramo alto. Mandei o Leonardo subir e amarrar a corda. As miúdas felizes. Voaram! Só que voltaram a cair. A Ercília não partiu nada. Foi a Belmira. Bateu de frente no tronco. Sangrava. Apalpei por cima do olho. Sorte, não rachou nada. O velhote nesse aspecto é muito atinado. Simplesmente indagou, as miúdas andam a cair assim à toa?

Correu a pedir a carrinha emprestada ao vizinho da loja do lado e foi até ao Balombo tratar da testa ferida da miúda. Confiou-me a loja.

Ilustração de Tiago LançaIlustração de Tiago LançaPrimeiro acto, provar a quissângua, cerveja dos Mutileles, meus antepassados. Segundo acto, reiniciar leituras adiadas, Luuanda de um tal Luandino Vieira. Hora de examinar a fundo esse pessoal. Manientos à brava. Escrevem difícil! No terceiro acto de acompanhamento da leitura, bebi meia grade de cerveja Cuca. Recuso anotar no livro de vendas. Para já, sou filho primogénito, nas nossas leis o herdeiro das cervejas sou eu, e caso o velho descubra a culpa recai no alfaiate ou no cozinheiro.

Angolano que se preza bebe. Mesmo a minha madrasta, está aí, a Deodata, se não aprecia um bom copo, não é mulher não é nada. Honestamente falando, atingi a maioridade. O problema é o velho, não me deixa beber. Se descobre, vai desanimar e acreditar que gerou filho alcoólatra. Não dá!
“Ena, alarme! Toca a escoar a cerveja.”
Barricada de sacos de milho na porta da loja. Na próxima meia hora ninguém me tira da casa de banho. A Deodata é boa moça, mas tem um apesar. Paranóia de ficar na porta a controlar. A moça tem de entender e respeitar as necessidades de observância do rigor do estilo. Faço questão, óleo de coco na palma das mãos. Acabamento de penteado em forma de auréola. Sol radiante de Sansão, agora vem a explicação, a minha dama não é a Dalila. Está devidamente identificada, nome e paradeiro, Beta do Nunes Gouveia, rua dos Pioneiros, Sá da Bandeira. Quando penso nela, sou a Majestade Imperial, Leão Triunfante do Real e do Fictício, Rei das Tribos Mutileles perdidas.
Terminado o retoque do cabelo, é o espírito que comanda. Executo a preceito, normas ocultas de rituais. Sento-me em cima da sanita, trono da minha consagração.

Ilustração de Tiago LançaIlustração de Tiago Lança

A face transfigurada adquire gravidade sacerdotal. O corpo levita. Embato no tecto! Minha mãe, este pólen altera o tempo, é pretérito passado e futuro mais-que-perfeito. A milionésima partícula do segundo em que Angola, Sá da Bandeira, Heilongo, Norton de Matos, Diogo Cão e Quelingeli se tornam partículas minúsculas do Universo.
Erva-santa. Néctar da flor de cânhamo. O Criador encontrou o seu fumador. Sem guia e sem xamã, vejo a estrela do cruzado sem a bússola dos navegantes. A imagem no espelho reflecte o príncipe dos príncipes Mutileles.

Bem, vamos lá adquirir seriedade. Aspergir a maçaneta da casa de banho, o buraco da fechadura e as nesgas da janela com água-de-colónia francesa, contrabandeada do Congo Brazzaville. Vai uma mão-cheia no pescoço, outra debaixo do sovaco. Mão no autoclismo. Inspecção final do sumiço dos resíduos incriminatórios. Dupla aspiração nos alvéolos pulmonares para desanuviar os efeitos alucinatórios.
“Deodata, dá-me um beijo, vamos dançar!”
“Justino, estou-te a avisar!”
“Mas, madrasta, beijo maternal tem mal?”

Título: Os Pretos de Pousaflores
© 2011, Aida Gomes e Publicações Dom Quixote
Edição: Maria do Rosário Pedreira

 

por Aida Gomes
Mukanda | 30 Janeiro 2011 | Aida Gomes, literatura angolana