Maneiras de dizer

O lugar é o mesmo. A mesma esquina. A curva. O cruzamento com a avenida. Os prédios altos a vedar o mar. As mesmas caras. São também os mesmos miúdos, mas um pouco mais velhos. Cresceram, mesmo que o tempo tenha perdido o interesse por eles, por isso serão sempre novos. No entanto estão velhos. Embora o andar do tempo nunca constranja os vendedores. A marcha da sua estória é lenta. Mas há algo novo, estranho, novas táticas apreendidas na confusão enlameada. É o presente temporal numa cidade que se dilui como um esboço inacabado. Os muros foram de novo postos em pé, erradicados com cimento e água da chuva, constância temporária, tudo dura apenas cinco dias. Acaba na sexta. O mar, o vento e o sol quebram em seguida os muros frágeis de barro, cimento, pedra e cal. Apenas as placas dos empreiteiros se sustêm neste lugar.

 

maputo, fotografia de marta lançamaputo, fotografia de marta lança“Amigo” -  A palavra é dita inesperadamente, deixa o momento em aberto como um convite.

“Amigo, outro dia compraste um quadro.”

Este amigo é algo mais do que a nomeação natural, quase neutral de vizinho, colega, irmão, chefe. Este “amigo” pronunciado no começo da noite em frente ao Piri-Piri por um miúdo de uns quinze anos, acocorado, quase de joelhos para ficar na mesma altura do estrangeiro “amigo” sentado na esplanada numa cadeira de plástico, é um ‘amigo’ diferente.

“Vou-te dar a bom preço.” - E repete amigo.

É óbvio quem aqui tem as cartas na mão. A palavra amigo é uma conjura secreta, um pacto cuidadoso, pé-ante-pé num momento crucial, dois olhos atentos a controlar a fraqueza do outro. Para lhe remeter as culpas de tudo aquilo que está mal e de que ninguém afinal é culpado. Será? O miúdo pouco que se preocupa, é felino, usa o instinto para vender batiques feitos muito à pressa algures numa habitação que chamam de precária no Bairro do Aeroporto. Linhas circulares, girafas de pescoço torto, palhotas no mato de paisagens irreais aonde vivem homens e mulheres com dentaduras postiças. De resto são zebras, leões e elefantes cor de rosa. Tudo feito muito à pressa por causa da economia de mercado, parece.

Uma semi-conhecedora de arte comentava com uma outra eminência nessas coisas de Belas Artes e modernismos nascidos da influência e inspiração das culturas européias:

“O problema do moçambicano é que não sabe harmonizar as cores.”

- Mas essa cena das cores em Moçambique é maningue complicado. - O miúdo mostra agora os batiques, usando um braço e a parte superior da perna estendida, como suporte.

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A palavra vale mais quando pronunciada no momento certo, indiferente do lugar, mesmo sendo esta a esquina a ser contornada e barrada por uma das vias mais concorridas da cidade.

“Diria que esta é uma cidade agradável. Diria mesmo calma. As pessoas são muito alegres, gostam de se dar, de festas, adoram dançar. É agradável. Diria que Maputo é uma aldeia, uma vila.” - Diz alguém, habitante das ruas marítimas da cidade, onde os restaurantes e os cinemas crescem como cogumelos. Existem pastelarias com guloseimas que Marie Antoniette recomendaria tanto a ricos como a pobres e há lojas onde se vendem Levi’s muito nice a um milhão, o que afinal até faz sentido se pensarmos que uma nota de cem dólares vale um milhão de meticais, mas aquilo que confunde o moçambicano é que ele afinal recebe salário que é contado em centenas, que nunca faz o milhar de milhão. Afinal?!

A nova geração tenta aprender essas novas maneiras de contar e viver, e nas vivências diárias não há quem os engane com conversas dum mundo melhor. Nada lhes escapa aos sentidos, aprendem na rua, só vão à escola para o elementar, o ler e contar para não se enganarem nos preços.

“Seiscentos mil meticais pelo batique das girafas, e o maior,  está a ver, aquele com gente a carregar lenha para as palhotas, custa oitocentos.”

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Um silêncio seguido por um gesto de recusa. Mas como?

“Posso fazer desconto.”

No desconto se vende a arte pouco requintada dos subúrbios. Também na rapidez, pois corre-se o risco de que os consumidores se retirem rápido depois dos jantares. Escapam-se-lhes para se confinarem num mundo muito particularmente Julius Nyerere.

“Já reparaste naquilo à noite? É só estrangeiro ali a comer.”

Depois do jantar seguem pela Julius Nyerere, rua onde os apartamentos se estendem até ao mar. Nem sequer viram à esquerda pela Eduardo Mondlane, que alguns dizem ser a avenida mais bonita da cidade e dá acesso ao outro lado, o da precariedade. Desaparecem. Raramente reféns dos miúdos vendedores de profissão a tempo inteiro. Sapientes de artimanhas simples.

“Estou a pedir ajuda. Compre esta máscara, esta caixinha de pau-rosa, este demónio de pau-preto. Peço ajuda. Eu sou o artista. O meu pai é artista. Este aqui é o meu irmão. É para apanhar chapa. É para comprar pão. Estou a pedir.”

Quem usa destas artimanhas vende aos solavancos, dá amostra do desespero, do ganha-pão incerto dependente da bolsa repleta estrangeira, o pão-nosso de cada dia, o rosário indefinido da população local, sem divisão etária, imagens, atordoados pelas encheias, de calças sujas, remendadas. Jeans de preferência. Às vezes limpos e bem vestidos consoante os sucessos pessoais nos negócios da praça, como demonstra este meu amigo. Ele tem uma t-shirt com as palavras I’m sexier than my t-shirt. Tem aquilo que se chama estilo pessoal, o gingar do corpo. É diferente dos outros, mas quem são os outros senão os colegas tímidos demais para realmente exercerem esta profissão, como se quase se envergonhassem de vender os jogos de xadrez de jade, os anéis e pulseiras de marfim, os cigarros de marca estrangeira, a fauna extinta, a saúde pública ameaçada. Ele o único que se arroja. Não se importa de se curvar até ficar quase de joelhos para chegar à mesma altura do consumidor dócil, quem sabe se até com complexos de culpa, esses homens de fato e camisa, pele clara, decididos e diretos, no geral invisiveis durante o dia, como se habitassem deveras os outros mundos de que a gente aqui só ouviu falar, de Novas Iorques e Parises reluzentes, onde eles chegam com um simples aperto no botão on/off, vidas fáceis e portáteis, parte da globalidade, para finalmente escolherem à noite um restaurante. O Pequim. O Grego. “Que tal irmos à feira?”

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“Comer fora nesta cidade é um prazer.” Apenas as saladas são deixadas intocadas por causa dos germes de diarréia e outras bactérias perigosas. Já correram os sete mundos. Viram tudo, nada os surpreende. Não dão troco aos vendedores. Só este aqui apanharam-no desprevenido, recém-chegado, ainda fresco, pronto a cair na artimanha local. Duas girafas de pescoço torto, umas poucas zebras a ruminarem, com dentes carnívoros, erva cor de laranja, gente pintada de roxo.

“Amigo…”

O homem sente-se constrangido. Olha para os lado mas ninguém tem aliados neste lugar. Cada um por si. Ouve-se a palavra, o fecho derradeiro dum compromisso fechado. A venda está decidida. Ele tira a carteira do bolso lentamente e olha o vendedor nos olhos. Reconhece a derrota.

“Pode pagar em dólares, amigo. Dou-lhe os dois batiques por cento e vinte dólares.” - Um segundo de espera, uma palavra mais, acertada.

“Quando chegar lá na sua terra pode dar batique de presente.”

Finalmente o vendedor põe-se em pé, endireita-se, conta as notas, faz uma vénia, solta os braços libertos, ri-se para os outros, pisca os olhos, fala ronga e desaparece pela Julius Nyerere abaixo.

 

(Maputo, 1998)

por Aida Gomes
Mukanda | 17 Abril 2011 | artesanato, capitalismo, Maputo, venda