Memórias do Rio Envenenado

Sobre a exposição Memórias do Rio Envenenado, dos artistas Kiluanji Kia Henda (Angola) e Felix Shumba (Zimbabwe e África do Sul), em Luanda (Museu de História Natural, Jahmek Contemporary Art), 22/11/2023. fotografias da exposição.    

vista da exposição no Museu de História Natural, Luandavista da exposição no Museu de História Natural, LuandaEntrada da exposição na Jahmek Contemporary Art, LuandaEntrada da exposição na Jahmek Contemporary Art, Luanda

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A exposição de Kiluanji Kia Henda e Felix Shumba, Memórias do Rio Envenenado, é a história multimídia da ascensão (e da profetizada queda) do extrativismo, refletida através das lentes prismáticas de um rio.

Um rio é um corpo de água que une outros corpos: plantas, animais e humanos. Um rio é um corpo em viagem: ao longo de milénios, dança até ao mar, carregando no seu rastro uma procissão de sementes e de terra aluvial. Os seus filhos – ecologias e culturas – reúnem-se, crescem e florescem no seu abraço.

Se o cuidado que um rio manifesta ao mundo for retribuído, poderá viver uma vida longa e saudável. Ao longo da sua vida, o rio vê coisas, aprende coisas e transmite o seu conhecimento a quem quiser ouvir. A história de um rio é também a nossa história; a música que canta também é a nossa. Poderíamos dizer que o passado de um rio é uma lente para o nosso futuro e que a morte de um rio prenuncia a nossa própria morte.

O rio lembra quando o extrativismo chegou. Um dia, há muitos anos, sentiu o rastro de enormes navios contra a sua corrente e ficou inquieto. Com o tempo, partilhou arrepios com as florestas derrubadas, recusou a paleta esbranquiçada da agricultura monocromática, recuou diante do sabor forte e venenoso dos resíduos químicos e lamentou profundamente o desaparecimento do seu povo: pessoas vendidas como escravas, assassinadas por doenças, trabalhando até à morte nas minas e separadas dos seus fluxos nutritivos pela ruptura com as suas culturas. Oh, o que assistiu. Oh, o que suportou.

O rio soube, desde o primeiro momento, que o extrativismo era mais do que a remoção sistemática de recursos minerais do corpo da Terra: era uma nova cosmologia, uma visão de mundo, um modo de ser, imposto pelos colonizadores europeus a África e ao mundo. Os agentes do extrativismo afirmam que a vida pode ser cumulativa, mas primeiro deve ser conquistada e dividida em parcelas de propriedade privada. E assim, o extrativismo segrega os seres humanos dos nossos corpos ecológicos mais amplos e segrega os humanos negros do corpo da humanidade. Os filhos do rio passam a ver o rio como um outro, como um objeto.

Através de tudo, o rio observa. Como as fronteiras traçadas de longe mantêm a existência na sua mira. Como os lugares outrora conhecidos pelas suas histórias mais-do-que-humanas são renomeados pelos seus conquistadores e reorganizados de acordo com o seu valor de mercado. Como os depósitos de petróleo negro e minerais raros são unidos em geometrias euclidianas e constelações misteriosas são formadas a partir de buracos perfurados na terra. Como os rios e os povos são divididos contra si por grades cartesianas e as comunidades são transformadas em forças de trabalho. Como os humanos, cegos por jóias, fixam o olhar nos diamantes nas solas dos seus sapatos esquecendo-se de fixar os sonhos nas estrelas no céu. Como os reflexos ribeirinhos das estrelas são obstruídos por poluentes indústrias e os humanos passam a esquecer o rio, esquecer as estrelas e esquecer-se de si mesmos.

 

À medida que serpenteia aqui e ali através do tempo e do espaço, o rio encontra os seus filhos perdidos, mutantes, quase irreconhecíveis. Nocturnal Bodies relembra uma época em que o rio encontrou uma manada de cavalos. Os seus olhos ardem com os traços fosforescentes de uma substância química que descascou a sua carne até aos ossos. A sua condição macilenta encontra eco na Terra Esfolada – o corpo desgastado da terra. O útero da Terra – o lar dos nossos antepassados ​​– está exposto e tornou-se estéril. O útero torna-se a Boca do Inferno. Através da sua dor, a terra vermelha sorri com dentes de ouro.

O rio lembra como, na antiguidade humana, os dentes de ouro foram concebidos como solução médica para a podridão dentária. Uma vez extraído o dente podre da boca, o ouro extraído da terra era implantado no seu lugar. O ouro foi escolhido pela sua pureza: nunca se deixaria corroer, nunca se iria corromper, nem libertar toxinas na corrente sanguínea de quem o usasse. No entanto, são necessários produtos químicos venenosos para isolar o ouro puro do minério. O cianeto penetra no solo, na água e, daí, em todos os nossos corpos.

Um dia, um demónio emerge de Charred Still Life (natureza morta carbonizada) de árvores derrubadas e diz ao rio: Enquanto cavo na escuridão da terra, posso ver o brilho da morte nos teus olhos. Atordoado e em transe, espectros do colonialismo português passam flutuando na sua mente. Nas minas, os diamantes são os únicos inocentes. Roubar um diamante acarreta a mesma pena que assassinar, e o ladrão que luta para alimentar os filhos é caçado por desporto. O trabalhador com a respiração custosa da tuberculose cravejada de diamantes é algo externo. As criaturas apanhadas no fogo cruzado são danos colaterais. A propaganda extractivista diz-nos que os diamantes são para sempre. Mas as espécies da Terra, mantidas na mira do atirador de elite de uma Diamond Cut Life, enfrentam a extinção.

O rio observa os fantasmas dos seus filhos reunirem os restos mortais dos seus parentes não humanos, enchem-nos de formaldeído e compõem-los em réplicas de paisagens destruídas enjauladas em vidro. Será isso a sombra de tristeza nos olhos de vidro do pensativo búfalo? Esse medo está congelado no olhar da outrora poderosa chita? Ou são as nossas próprias almas – os nossos próprios futuros – que aí vemos refletidos? Certamente, não encontramos consolo na ideia de que o nosso brilho eterno possa um dia embelezar os túmulos de vidro dos nossos restos mortais.

À medida que o rio serpenteia em direção ao horizonte, oprimido por séculos de substâncias tóxicas, lixo e memórias, o seu ritmo torna-se lento. Cansa-se desta velha história. O feitiço da sereia da Terra torna-se exaustivo. O rio remete-nos ao Catálogo de plantas carnívoras e suas presas, que nos lembra que a Terra treinou os mais profundos filos – guerreiros do reino das plantas – para limar os seus dentes fibrosos contra os seus agressores. Uma Restless Landscape (paisagem agitada), instável e arruinada pelo desenvolvimento, é reanimada com uma energia vigarista; árvores meio cortadas empoleiram-se como uma população à beira da revolta. Em tempos as florestas ensinaram os nossos ancestrais a ficarem alerta entre as coroas das árvores, para atacar os traficantes de pessoas escravizadas que se escondem. A Terra é um arquivo de estratégias contraofensivas.

Desde o seu leito de morte, o rio envenenado relembra-nos uma época anterior ao extrativismo, uma época em que os seus filhos acompanhavam-no em rituais de cuidado e de gratidão. O rio chama por eles – por nós – através das marés do tempo. Se não se lembra de nada, lembre-se disto: a Terra defender-se-á por todos os meios necessários. Espera que nos juntemos a ela na resistência.

Kiluanji Kia Henda e Felix Shumba, Restless Landscape, 2023Kiluanji Kia Henda e Felix Shumba, Restless Landscape, 2023Kiluanji Kia Henda, Post Mortem Nightmare, 2022Kiluanji Kia Henda, Post Mortem Nightmare, 2022Felix Shumba, The catalogue of carnivorous plants and their preys, Felix Shumba, The catalogue of carnivorous plants and their preys, Kiluanji Kia Henda, Esqueleto Luxuria, 2022Kiluanji Kia Henda, Esqueleto Luxuria, 2022https://www.buala.org/sites/default/files/imagecache/full/2023/12/memori..." alt="Felix Schumba, Nocturnal Bodies (Horses), 2023
" width="590" height="393" />obra de Kiluanji Kia Henda obra de Kiluanji Kia Henda Felix Schumba, Nocturnal Bodies (Head), 2023Felix Schumba, Nocturnal Bodies (Head), 2023https://www.buala.org/sites/default/files/imagecache/full/2023/12/7_memo..." alt="Kiluanji Kia Henda, The red earth smiling with golden teeth, 2023
Terra Esfolada, 2008" width="590" height="393" />Felix SchumbaFelix Schumbahttps://www.buala.org/sites/default/files/imagecache/full/2023/12/captur..." alt="Kiluanji Kia Henda, Utopia in the Burnt Land e While I Dig Into the Darkness of the Earth, I Can See the Bling of Death in Your Eyes, 2023
" width="590" height="266" />Felix Shumba, Charred Still Life, 2023Felix Shumba, Charred Still Life, 2023

Translation:  Marta Lança

por Imani Jacqueline Brown
Mukanda | 23 Dezembro 2023 | angola, arte contemporânea, extractivismo, Felix Shumba, kiluanji kia henda, Memórias do Rio Envenenado