“Essa dama bate bué!” - PRÉ-PUBLICAÇÃO

CAPÍTULO 12 

Domingo.

Luanda ainda não acordou. Recolheu-se no sossego. É um animal exausto que decidiu prorrogar o seu despertar. Todos têm direito à cidade, mas massacram-na com a sobrecarga do peso de tantos corpos. De segunda a sábado, os bairros das elites e os musseques levam os seus excessos ao centro histórico. Luanda já pouco aguenta.

Só domingo é dia de descanso.  As estradas, as ruas, as calçadas, os largos e as praças ficam vazias e recuperam. Até os prédios se parecem endireitar. Domingo é o dia da preguiça. Não se é obrigado a nada. O Sol não se esforça para romper as nuvens. Aparece e desaparece. Sentindo a calma morna do sol, Luanda começa a despertar. Espreguiça os ossos e os pensamentos. Não anseia pôr os pés fora da cama.

 Não é assim na Ilha do Cabo. A vida da praia segue junto e sem preguiça. Uns quantos miúdos treinam bassulas. Naquela arte marcial, brincam todos de adversários. As pernas fazem kapangas e provocam kibwas. Com o seu dikombo bem ajustado, mestre Kabetula está sentado na cadeira de plástico vermelha. Kabetula já tem as pernas cansadas. Mesmo assim, não desiste de orientar os putos na luta. Gesticula com vigor enquanto dá as dicas. Outros putos estão no mar. Andam de madeira. O mar encapela de felicidade. Os miúdos imaginam-se no topo de ondas tão altas que, quando rebentam, chegam à estrada de asfalto.

Mestre Kabetula sente-se inquieto. Havia acordado de madrugada com um zumbido polifónico dentro do ouvido esquerdo. Já não sonhava, mas, sabe-se lá como e com o direito de quem, aquele ruído ainda não o tinha deixado.

Sonhou que via Luanda lá de cima. No alto do Morro da Cruz, um mpungi gigante de marfim equilibrava-se na sua ponta. No Morro da Fortaleza, outro mpungi igual. Da terra chegou um sopro grave que subiu pelas pontas maiores dos mpungis. Este alcançou as nuvens,  e  o  céu  palpitou  em  resposta. O barulho feito pelo céu espalhou-se por onde lhe levou a vontade. Depois juntaram-se marimbas a tocar na Corimba e mukupelas na Samba.

Por culpa das bitacaias que lhe atacam os pés enterrados na areia, Kabetula distrai-se do zumbido. Está com muita comichão. Coça-se sem parar. Volta ao sonho para o tentar decifrar. Também quer compreender o muito de peixe que viu no rio seco. Peixe sem barbatanas. Peixe tonto.

Yara MonteiroYara MonteiroA jusante e a montante do rio, os peixes estavam, cada um deles, apoiados num só pé. Eram pés grandes de pessoas. Pés todos diferentes. Sem saberem para que lado estava o mar,  os peixes faziam reviengas10. Não havia água, e sem ela não há corrente. No sonho, Kabetula também tinha virado peixe com um pé. Notou-se a si, como tal. Um peixe de barriga inchada que flutuava no ar.

O sol está a pique. Kabetula recolhe-se na sombra para ouvir as notícias no seu rádio.

Na cozinha, Romena também liga o pequeno rádio. Está inquieta como Kabetula. A boda de casamento tinha durado até de manhã. Quando chegaram a casa, decidiu cochilar no sofá. Foi um erro. Dormir na luz do dia sempre lhe deu pesadelos. Sonhou com aquelas duas: Josefa e Mariela.

Mariela também sonhou. Dormiu mal, tem mais uma em casa de Romena a sujar. É mais roupa para lavar e passar. É mais trabalho.

Ouve a rádio e fala em ás:

Me dificultam as palavras que o moço da rádio diz. Mesmo atenta, não entendo tudo. Está quase na hora de dar as notícias. Quero ouvir falar da paz no país. Quero a paz no musseque.

Aqui a luta continua. Não parou. É luta contra a barriga vazia, contra o mosquito, o lixo, a insegurança e a morte. A chuva. Temos também de lutar contra ela. Estraga tudo e nos mata se não houver cuidado. O cartão que forra o tecto estragou de novo. Caiu sozinho com o peso da água da chuva.

Tivemos sorte. Esperança estava em casa. Não deixou a chuva entrar pela porta. Correu com ela com o balde e a vassoura.

Olho à minha volta. Isto não se pode chamar de casa. Aqui não tem água nem luz. Casa é a de dona Romena, aqui é um muquifo. A mãe Josefa não gosta que se diga isso. Não gosta da verdade. Fica irritada e reclama que trabalhou muito para fazer a casa dela com blocos. Podia ser pior. Podia ser uma casa de chapa.

Agora com a paz sonham com casa nova, com escola, com comida e bebida. Meu sonho é Esperança sair do musseque. Não quero ela burra, de barriga e a levar surra.

Hoje de manhã fomos ao funeral da Quininha. O pai dos filhos de Quininha também apareceu. Quer ficar com a casa. Ele se reuniu com a mãe Josefa e as outras tias para discutirem a situação. Estou feliz. Não foram no chacho daquele malaiko de ficar com a casa para tomar conta das crianças. Lhe estigaram bué. Lhe pergunta- ram assim mesmo na cara como um preguiçoso, liambeiro como ele ia cuidar dos ndengues. Não bumba nem nunca bumbou. Vamos nós tomar conta.

As tias falaram outra vez na mãe que eu ainda não lhe dei um neto. Dizem que estou a ficar velha para ter um filho. A mãe lhes disse que eu não tenho homem. Me arranjam um, lhe garantiram.

«Pra quê homem?», perguntei na mãe Josefa. Vai me fazer filho e depois me deixar. A vida no musseque não é romântica. Aqui homem é pior que cão. Tanto come do prato como come do chão. Olha minha prima Quintinha, na zunga todo o dia, todo o dia. O tal de homem ia e voltava. Voltava para buscar dinheiro, amassar-lhe e depois ir embora.

A vida aqui é sofrimento diário. Tem dias mesmo que nem sei como vou trabalhar direita.

Não se dorme aqui. Tem sempre um bilo entre marido e mulher, música alta do vizinho, choro de criança pequena. Se não é isso é a cabeça que através das preocupações não me deixa dormir. Depois na casa da Dona Romena me apetece cubar. Sono! Fico assim com o corpo mole quase que desmaio. Dona Romena ralha e me chama de mangonheira. Não gosto. Me ofende.

Esperança, minha irmã, tem quinze anos, mas tem corpo de mulher. Isso me preocupa. Não quero ela com bebé. Perguntei na Katila como se fazia para não se engravidar. Eu gosto da Katila. Ajuda-me a abrir a mente, a ver outras coisas na vida. Todos os meses me uma caixa com comprimidos. Ponho um comprimido desfeito todos os dias no Nido da Esperança. Katila aconselha que lhe dê camisinhas para proteger do bicho. Deixo, assim, as camisinhas entre as coisas dela. Não quero que pense que estou a incentivar.

A mãe Josefa diz que Esperança é bonita. Pode arranjar um papoite. Ele pode lhe tirar do musseque. Não lhe admito. Esperança, não deixo que ande com roupa justa. Vai parecer que anda na vida. Assim mesmo como é já chama a atenção.

Katila me incentiva a ler, a ser informada. Não é pintar os lábios. Katila diz que primeiro tenho de me organizar depois arranjar marido e ter filhos. É o que digo na Esperança. Acho que ela me ouve. Vai na escola, vai na igreja, não vai na farra com essas miúdas daqui. Diz que ainda deu beijo na boca. Não acredito.

Ela é boa de cabeça. Deus quiser final do ano, Esperança vai trabalhar na padaria de dona Romena.

Esperança sabe fazer contas e fala umas palavras que não entendo bem. Se sobra jornal de limpar os vidros, peço na dona, Romena para levar para casa. Dou a Esperança para ler. vezes que outras que inventa. Põe o meu nome nas letras do jornal.

Minha prima Quintinha vivia ali em frente. Ia para a zunga cedo. Seis horas a andar a para comprar qualquer coisa que desse para dar de comer aos candengues. descansava no domingo.

Quando não conseguia pitéu mandava as crianças a casa. Nunca as deixamos chorar com fome. Fazer mais o quê então. Era mesmo ela. Sem ninguém para lhe ajudar.

Mesmo assim, tem vezes que nem funje enche a nossa barriga. Dona Romena nos de comer, mas meu almoço levo sempre para Esperança. Divido a refeição da mãe com ela.

Por isso me revolta como tratam o musseque. Isto não é lixeira feita de gente. Nos ignoram, nos gozam na cara porque falamos mal, cheira- mos mal, vivemos mal. não choro. Chorava antes, no antigamente. A semana passada, estávamos a regressar no Sambizanga. Ia mesmo fatigada. Cansada da vida. Até o cabelo me doía. Não aguentava mais o sofrimento, o cheiro a hábia, a música alta no candongueiro, os solavancos, queria fugir dali. Uma dessas madames com postiço, sentada no fresco do seu carro grande, quase que batia no candongueiro.

Abriu o vidro e, sem razão reparei que se distraiu a comprar as pipocas no moço –, começou a disparatar com o taxista. Antes de fechar o vidro, nos chamou de macacos. Lhe li bem nos lábios: «Seus macacos».

Pus o braço de fora e lhe mostrei o meu dedo do meio. Bem firme na cara dela. A madame precisou de gancho para conseguir fechar a boca.

No táxi, todos rimos. Virei estrela de novela na volta. Me bateram muitas palmas. O cobrador fez esquebra no preço da volta. Fiquei feliz. a mãe Josefa não gostou da minha «falta de respeito» à matumba do carro grande.

Gosto do candongueiro. Ele fura a dificuldade, não quer saber. Diz mesmo nos outros: «sai da frente», «vou passar», «vou vencer»,«não me travam» e «não me encostam».

Ali no trânsito, a luta é de igual para igual. Estamos todos na mesma corrida, na mesma necessidade, na mesma vontade, na mesma via. Ali não interessa se tens dinheiro e carro grande. Vamos lado a lado.

Cada qual tem de abrir o seu próprio trilho. Ninguém facilita ninguém. O taxista não facilita. Não espera lhe darem prioridade. Dá medo, mas eu gosto disso. Tem um motorista que lhe chamamos de Superman. Ele voa. Passamos e ficam todos atrás a buzinar. Tem olho aberto. Vai sem medo. Tem de ir na agressividade, na sobrevivência. A maka é quando aparece o polícia.

Superman tem mesmo de parar.

O noticiário começa. A voz masculina do locutor corre pela cidade. Leva notícias importantes. Informa quem lhe toma atenção sobre o conclave, em Luanda. «São duzentos e cinquenta delegados que se juntam para a eleição do novo presidente do partido. Unita mais forte para uma Angola de todos», reporta o jornalista.

Kabetula está com o rádio a pilhas sintonizado na mesma estação. Ele, que viu muita coisa e escutou muita promessa, acredita que o melhor é aguardar sem nada esperar. Os miúdos a brincar na praia são o suficiente para o fazer feliz. Gosta de ver o sol a criar‑lhes reflexos na pele. Essa pele com cor ou sem ela que é razão de ódio e vingança entre manos da mesma terra.

«Haka! Preto com branco não dá castanho. Misturem então as cores», brincava quando as conversas sobre se mulato é negro ou branco aqueciam.

Pão e paz é o que Kabetula quer para o país. Reclama com o locutor da rádio e com a política. Está cansado! Os espíritos também o estão, considera Kabetula.

Um exemplo: há duas manhãs, choveu em Luanda sem parar. Nas poças de chuva onde os moleques chapinhavam os pés descalços, viu ele próprio, mestre Kabetula, maus espíritos reflectidos. Duvidou primeiro, mas depois «se acreditou». Fez o sinal da cruz no peito, beijou os dedos e pediu união.

Romena também está farta da guerra.

Todos os angolanos exclamam: «Esta merda que tenha mesmo acabado!» O mestre ainda acrescenta: «Até o chão está cansado.» Alguém ainda lembra o poeta Agostinho Neto: «teus filhos / com fome / com sede / com vergonha de te chamarmos Mãe». As costas de Kabetula acusam o cansaço da luta nacional.

As costas de Romena, a noite de saltos altos. Romena decide sentar-se. Quer comer. Vasculha as caixas com os restos de comida que trouxeram da festa. Abre uma delas. São fatias de bolo de banana. O que lhe apetece é comida salgada. Continua a busca, abrindo caixa a caixa. Podia ir à despensa e abrir uma lata de atum ou outro enlatado, mas «nem pensar», recusa-se. Enjoou os enlatados nos anos de guerra.

Havia racionamento. Os bens essenciais a que o cartão amarelo dava direito não matavam a fome a ninguém. A sorte era o falecido Guigui, seu esposo e pai de suas filhas. Como chefe da Egrosbal, tinha acesso a arroz, farinha, azeite e outros bens essenciais. Mesmo assim, bastava um problema de importação para ficarem meses a viver à base de chouriço em lata e pimentos de frasco da Bulgária. Sabia-se uma privilegiada. Nunca para a cama tinha ido com fome e nunca da cama tinha saído com fome. Guigui era em tudo insubstituível.

O noticiário acaba. Naquele domingo, pouco ou nada mais de relevante acontece na cidade. Ela descansa.

O entardecer traz consigo a nostalgia. Emoções contraditó rias tomam conta de Luanda. Anseia pela segunda‑feira e pela agitação nas suas ruas.

Mariela, Josefa e Esperança vão cedo dormir. Antes de se deitarem, rezam. Pedem a Deus uma semana sem morte e sem desgraça, com muita bênção.

(…)

 

Essa dama bate bué, edições Guerra e Paz, 2018

Sinopse

Vitória nasceu em Angola, mas foi criada pelos avós em Portugal. Para ser, talvez, uma “boa esposa”. Marca-a um trauma que não ultrapassou: nunca conheceu a mãe, uma revolucionária angolana. A poucos meses do seu casamento foge para Angola. À procura da mãe. Da sua identidade também, sexual até.Chega a uma Luanda do começo do século XXI, caótica, de flagrantes contrastes sociais, aguarela em que tragédia e comédia roçam ombros.Zacarias Vindu, general envolvido no tráfico de armas, que declama poesia, e Romena Cambissa, viúva furacão, são as principais personagens que a guiam,ou não, em Luanda. Mas é no Huambo, numa Angola mágica e mística, que vai descobrir novas pistas sobre a sua mãe. Conhece Juliana Tijamba, que fez a guerra civil com a mãe, um encontro que desperta todos os fantasmas de Vitória. É então obrigada a confrontar-se com o seu passado e a resolver-se como adulta.Entre a sátira e a tragédia, o abandono e a ruptura, esta é uma história de autodescoberta. Um romance contemporâneo, urbano e feminino.

por Yara Monteiro
Mukanda | 29 Novembro 2018 | angola, domingo, identidade, luanda, romance