Cara equipe editorial da Routledge

Foi com grande perplexidade, seguida de repulsa, que recebemos a notícia de que a Routledge decidiu retirar o artigo “The Walls Spoke When No One Else Would” do livro Sexual Misconduct in Academia. O capítulo analisa as complexidades do assédio sexual estrutural e os abusos de poder na academia através do método autoetnográfico, fazendo referência a um prestigiado centro de investigação na Europa. Significativamente, também sublinha que tais condutas indevidas de modo algum estão isoladas apenas nessa instituição académica específica e são, pelo contrário, um problema generalizado. Diante desse ato indefensável e infundado de censura e desrespeito às obras científicas que ultrapassam as abordagens patriarcais ocidentais dominantes - atualmente questionadas em todo o mundo - decidimos republicar o manifesto “Todas Sabemos” que teve imensa adesão de 900 assinantes. Ao fazê-lo, reiteramos a nossa solidariedade com as autoras do capítulo e com todas as outras vítimas de abuso nesse centro de pesquisa específico e em outros lugares. A publicação do referido capítulo permitiu que muitas de nós compreendêssemos e processássemos, a um nível empírico e teoricamente mais profundo, alguns dos abusos de poder que várias experienciámos na academia. O capítulo está em conformidade com os critérios de contribuição científica e é de leitura muito proveitosa, escrutinando o profundo enraizamento do problema na academia. No entanto, tanto quanto sabemos, não houve a menor transparência sobre a retirada do capítulo pela Routledge. É, de facto, profundamente problemático que uma editora tão prestigiada desconsidere a posição e os protestos das editoras do livro e das autoras do capítulo. Nas palavras de Isabella Gonçalves, deputada brasileira que se identificou como uma das vítimas mencionadas no capítulo, essa eliminação constitui um “escândalo internacional”. Ao censurar o capítulo, a Routledge não está apenas a ignorar e a desrespeitar os procedimentos académico-científicos. Sendo uma editora prestigiada, está também a promover o encobrimento do assédio sexual e dos abusos de poder na academia, compactuando com mecanismos de silenciamento que, desde há muito, se conjugam no sentido de sufocar a voz de quem denuncia estes abusos.

Esse silêncio ensurdecedor, que a Routledge amplia, corrói os centros do saber e ostraciza e destrói paulatinamente centenas de carreiras e pessoas, sobretudo de mulheres e de pessoas mais expostas a preconceitos racistas, etnocêntricos e classistas. As sobreviventes que contaram as suas dolorosas experiências enquadram-se em mais de uma destas condições, e preocupa-nos especialmente que o lugar de fala das mulheres indígenas sejam destituídos de autoridade. Este é o caso de Miye Nadya Tom, nativa americana dos EUA e coautora do capítulo, e de Moira Millán, ativista Mapuche que apoiou as alegações do artigo e, mesmo antes da sua publicação, relatou a sua experiência de abuso quando foi convidada pelo referido centro de investigação, como oradora num seminário de pós-graduação.

No entanto, o capítulo já tem vida própria e continua a circular. 

Exigimos que a editora republique imediatamente o livro completo, incluindo o artigo. 

Exigimos que os académicos referidos no artigo cessem toda perseguição às autoras e às outras vítimas que se manifestaram. 

Exigimos que esses académicos comecem a agir de acordo com as suas próprias palavras, e se disponibilizem para um processo real de justiça reparativa. 

Exigimos que as instituições académicas, incluindo as editoras científicas, constituam grupos de trabalho diversificados e idóneos para promover reparações pelas práticas de abuso fomentadas pelo sistema racista, capitalista e patriarcal do qual fazem parte, seja no sentido histórico ou no imediato.

Todas sabemos.

Sabemos muito mais do que pode ser dito nessas poucas linhas. Sabemos que há muitas denúncias de má conduta sexual, moral e intelectual. E sabemos que o normal é que nada aconteça; tudo é varrido para debaixo do tapete. O que nos enlouquece, e enfurece, uma e outra vez. E desta vez queremos reiterar que o capítulo censurado é uma força material que não pode ser apagada. A Routledge tem de decidir se deseja permanecer uma editora cujos padrões científicos e de qualidade são confiáveis, tanto para os autores que lá publicam quanto para todos os seus leitores. Submeter os seus critérios à censura, seja ela qual for, é um ataque demasiado violento às ciências sociais e humanas que a editora pretende disseminar. É a Routledge, juntamente com as autoras e editoras do texto proibido, que estão em causa.

As autoras do Manifesto “Todas Sabemos”.

por várias
Mukanda | 7 Setembro 2023 | academia, assédio, censura, Routledge