O coletivo, as denúncias e as expectativas

Somos um grupo de mulheres, atualmente em diferentes lugares e posições, que sofreram violência em contextos académicos liderados por Boaventura de Sousa Santos. As histórias de violência que vivemos corroboram o padrão de assédio sexual e moral descrito no capítulo da autoria de Lieselotte Viaene, Catarina Laranjeiro e Myie Nadia Tom, intitulado “The Walls Spoke When No One Else Would. Autoethnographic notes on sexual-power gatekeeping within avant-garde academia”, incluído - e posteriormente despublicado - no livro Sexual Misconduct in Academia, organizado por Erin Pritchard e Delyth Edwards (Routledge, 2023, atualmente suspenso de circulação). A publicação do capítulo foi decisiva para a nossa mobilização como coletivo e para nos disponibilizarmos a contar as nossas histórias. Pela primeira vez, foi aberto um espaço para expormos formalmente a violência que vivemos sem sermos descredibilizadas e ostracizadas no meio académico e contarmos as nossas histórias com a expectativa de sermos ouvidas com imparcialidade e com respeito pelos nossos direitos.

Esperamos, com esta denúncia, mostrar a importância e a relevância do trabalho académico acima mencionado; quebrar com anos de silenciamento das nossas vozes, contando o que nos aconteceu; contribuir para uma compreensão mais detalhada do padrão de abuso normalizado por Boaventura de Sousa Santos (BSS) e reproduzido pelas pessoas a quem delegou poderes; e revelar falhas no alegado sistema meritocrático da academia, em particular do CES.

Esperamos ser ouvidas e que sejam reconhecidos os danos prolongados que resultaram da violência sofrida. O nosso sofrimento não foi momentâneo, mas provocou danos prolongados nas nossas carreiras académicas, em alguns casos bloqueando-as completamente, e prejuízos materiais. Teve ainda consequências graves na nossa saúde mental, que se fazem sentir até hoje.

Violências denunciadas

No dia 30 de setembro apresentámos à Comissão independente de esclarecimento de situações de assédio no CES, um dossier, com 213 páginas, em que é apresentado, com detalhe, um conjunto de situações de violência, que cabem nas categorias amplas de assédio sexual, assédio moral e extractivismo intelectual.

Contexto das violências:

Todas as denúncias dizem respeito a situações de assédio ocorridas em atividades, projetos ou grupos de pesquisa dirigidos por Boaventura de Sousa Santos, o que inclui situações de assédio moral e sexual praticado por este, como também por membros da sua equipa, a quem delegava poderes, todos/as ele/as expostos no capítulo “The Walls Spoke When No One Else Would. Autoethnographic notes on sexual-power gatekeeping within avant-garde academia”.

Período a que se reportam as denúncias: As denúncias reportam situações que ocorreram entre 2000 e 2023.

Denunciantes: 9 mulheres (Brasil, Espanha, México, Portugal, Peru) Testemunhos escritos adicionais, que reforçam as alegações: 5 testemunhos escritos Testemunhas arroladas nos relatos: 18 testemunhas

Provas:

Os relatos que apresentamos estão, em parte, apoiados na memória de episódios que marcaram e traumatizaram as sobreviventes. Solicitámos à Comissão um trabalho criterioso na apuração dos fatos e que tenha em conta a vulnerabilidade das vítimas no acesso a meios de provas. O ónus da prova não deve, em qualquer circunstância, recair sobre as partes vulneráveis, as vítimas. Apesar da dificuldade na produção de provas, porque o CES não promoveu mecanismos seguros e eficientes de apuração no tempo em que ocorreram as situações de assédio, reunimos no dossier que entregámos um conjunto razoável de elementos probatórios e indicamos, ainda, um conjunto alargado de testemunhas, que corroboram os relatos de todas as vítimas. Além disso, no momento da entrevista com a Comissão, iremos disponibilizar provas complementares.

Pedido adicional à Comissão Independente:

O nosso dossier mostra que os casos de assédio não são pontuais. São situações sistemáticas, que se prolongam no tempo, deixando as vítimas sem saída. Por essa razão, uma Comissão temporária com escopo e tempo de trabalho reduzido apresenta limitações perante a gravidade e a extensão dos casos que apresentamos. Além disso, estamos convictas que existem mais vítimas, mais testemunhas, mais histórias de violência. Consideramos imprescindível que seja mantido aberto um espaço para acolher vítimas que possam decidir apresentar denúncias num outro momento. Todas assistimos à dimensão do poder de Boaventura de Sousa Santos e sofremos retaliações sempre que resistimos. Nunca encontrámos um espaço seguro no CES para abordar estas questões ou uma estrutura que fosse suficientemente forte para nos proteger. É preciso reconhecer a possibilidade de muitas mulheres permanecerem em silêncio por medo. Essas mulheres não devem ser impedidas de falar no momento em que se sentirem capazes. Os tempos do trauma e dos processos de cura nem sempre são compatíveis com os tempos burocráticos. Nesse sentido, solicitámos à Comissão, em cujas mãos deixámos histórias tão difíceis para nós, que encontre uma forma de não fechar definitivamente o prazo das denúncias. O caráter sistemático das situações de abuso que denunciamos aponta para a necessidade de uma Comissão Independente, que funcione por um tempo em modo permanente, promova investigações a fundo e permita às vítimas a possibilidade da denúncia e do acolhimento no momento em que se sentirem preparadas para o fazer.

Solicitámos, ainda, que nos seja dada a garantia de não sermos perseguidas ou prejudicadas na sequência das denúncias apresentadas e que sejam integralmente respeitados os pedidos de confidencialidade, essenciais em algumas situações para proteger as vítimas. Consideramos o dossier entregue um primeiro contacto. Focámo-nos na recuperação de memórias que quisemos esquecer. Muitas delas são difíceis de reconstruir em toda a sua extensão. A cada dia que passa, episódios e violências esquecidas vêm à superfície. Os nossos relatos, ainda incompletos, resultam desse esforço enorme para recuperar memórias difíceis, organizá-las e narrá-las no pouco tempo que tivemos, enquanto equilibrávamos as várias dimensões da nossa vida (compromissos profissionais, pessoais e familiares; danos na nossa saúde mental e processos de cura; recomposição das relações quebradas entre nós em resultado do ambiente tóxico vivido; participação no debate público, que precisava ter a nossa voz; gestão do medo).

2 de outubro de 2023, Coletivo de Situações de Assédio no âmbito do Centro de Estudos Sociais.

por várias
Mukanda | 2 Outubro 2023 | “Sexual Misconduct in Academia”