Arte contemporânea de África: negociar as condições do seu reconhecimento - conversa de Vivian Paulissen com Achille Mbembe

A exposição África Remix alcançou um sucesso internacional. A Feira de Arte Contemporânea de Joanesburgo ganha pouco a pouco espaço no circuito internacional da arte. As intervenções de universitários reconhecidos como Sarah Nuttall e o seu  Beautiful/Ugly redefinem as fronteiras da estética africana. William Kentridge, Penny Siopis e numerosos artistas africanos estão actualmente a fazer nome no mercado mundial. Está em curso uma revolução silenciosa da arte contemporânea, cujas ramificações se estendem a outros domínios tais como a literatura, a moda, a música, a arquitectura e o design. Ela é, como aconteceu com o jazz e o cubismo no século XX, orquestrada em grande parte por modelos africanos.
No entanto, as condições do reconhecimento da arte contemporânea e da criatividade cultural africanas continuam a ser contestadas. A última controvérsia decorre daí, o papel das agências de financiamento cultural ocidentais activas em África e o facto do apoio dado às artes e à cultura ser ou não justificado pelo seu contributo para o “desenvolvimento”. Qual é, então, o programa dos doadores que apoiam as artes em África? Poderão as artes desempenhar um papel na “redução da pobreza?” e na “resolução dos conflitos?” A “cooperação cultural” será um processo baseado na reciprocidade ou uma forma discreta dos doadores imporem os seus pontos de vista em África? O que significam termos tal como “diplomacia cultural?”

Achille MbembeAchille MbembePara esta conversa, Achille Mbembe, investigador de história e política na universidade de Witwatersrand (Joanesburgo, África do Sul) responde às perguntas de Vivian Paulissen*, perita e conselheira em política de financiamento cultural a trabalhar em Amesterdão.

A negociação fundada no respeito/na reciprocidade terá lugar na relação tradicional doador-beneficiário tal como é praticada hoje pelas agências de financiamento cultural?

Eu não digo que se trata de um jogo em que a aposta é zero. Existem, efectivamente, muito raras excepções, como a Fundação Prince Claus, mas, regra geral, o efeito é ínfimo e se se tiver em conta o pouco dinheiro implicado, o prejuízo sofrido é desmesurado.
Com efeito, as relações entre as agências de financiamento cultural ocidental e os “beneficiários” locais (artistas e organizações) nunca foram tão más.
A contribuição financeira da Europa ocidental para o desenvolvimento das artes e da cultura em África tem vindo a diminuir progressivamente nos últimos dez anos. O que é paradoxal, é que quanto menos dinheiro as agências europeias põem em cima da mesa, mais rigorosas tornam as condições de acesso aos seus magros subsídios. Em vez de criar arte, numerosos artistas no continente vêem-se obrigados a gastar um tempo, uma energia e recursos incríveis a preencher formulários de candidatura inúteis ou a tentar desesperadamente adaptar-se a lóbis e políticas instáveis, quando não têm que preocupar-se incessantemente com o humor dos “adidos culturais”, muitas vezes susceptíveis e caprichosos, dos consulados ocidentais e dos quais esperam apoio.
Em vez de espaços marcados pela reciprocidade, o reconhecimento e o respeito, as agências doadoras implantaram um pouco por todo o continente inúmeras redes de relações do tipo patrões-clientes. Estas relações não são unidimensionais. Elas caracterizam-se por profundos níveis de conluio e de conivência, de transacções desiguais, de desconfiança por vezes e, como quer que seja, por uma instrumentalização recíproca.
Podemos continuar a fazer a lista dos poderes ilimitados conferidos aos doadores e das inúmeras formas de humilhação e de afrontas que sofrem os “beneficiários” a coberto de termos fantasistas tais como “parceria”, “transferência de poderes” ou até “amizade internacional”. Estas palavras não conseguirão dissimular o aspecto brutal do encontro entre os que têm o dinheiro e os recursos mas nenhumas ideias boas e úteis e os que têm boas ideias, mas pouco dinheiro.
Há cinco tendências locais e mundiais que contribuem para piorar esta situação.
Em primeiro lugar, a corrente neoliberal que, ao comercializar e privatizar cada vez mais todas as formas as de arte e de vida conduz à mercantilização sem limites da cultura enquanto espectáculo e divertimento. Este é um desenvolvimento significativo, surgido numa época em que o próprio capitalismo entra numa fase em que os aspectos culturais dos seus produtos são elementos críticos das estratégias de produção. A capacidade da arte e da cultura para seguir perigosamente a corrida do capital não pode ser tida como adquirida.
Segue-se, depois, a pressão sem tréguas dos governos africanos que consideram a arte e a cultura como uma espécie de “serviço social”, com uma função paliativa contra os males das pobreza e do subdesenvolvimento. Terceiro factor, nota-se o enquadramento hiper-tecnológico do mundo vivo e a implicação crescente da arte e da cultura nos sistemas mundiais de militarização do conhecimento, o que levanta preocupações profundas quanto aos limites da liberdade na paisagem militarizada da nossa época. Em quarto lugar, o impulso “humanitário” que anima a maior parte das agências doadoras ocidentais, a saber, esta ideologia viciosa que promete uma visão da África como uma tabula rasa, um continente condenado e sem esperança, à espera de ser socorrido e “salvo” pelo novo exército de bons samaritanos vindos do Ocidente.
Por fim, põe-se o problema da associação entre a arte, a cultura, a estética africanas e a etnicidade, a comunidade ou o comunalismo, a ideia dominante mas falsa (e partilhada por muitos africanos e outros tantos doadores) de que o acto de criatividade é necessariamente um acto colectivo, que as formas artísticas africanas não são objectos estéticos em si, mas códigos secretos que dão acesso a um nível do “real” mais abstracto, fundamentalmente etnográfico e representativo da diferença cultural ontológica da África, isto é, a sua autenticidade. É esta “diferença” africana e esta “autenticidade” africana que os doadores buscam, mantêm e, se for necessário, fabricam.
Postos lado a lado, os efeitos combinados destes processos nas relações entre “doadores” e “ beneficiários” bem como na criatividade e na autonomia culturais africanas são devastadores. Sem uma nova ética baseada no reconhecimento, na solidariedade e na reciprocidade, o modo como operam a maior parte das agências ocidentais de financiamento cultural (e até para além disso, as que financiam o desenvolvimento) não fará senão destruir cada vez mais a capacidade do continente para se impor a nível cultural e artístico no mundo.

Um “modelo de intercâmbio” em que as duas partes estivessem implicadas de forma igual seria, para o financiamento cultural em África, uma alternativa bem sucedida? Como poderia ser implantada?
Temos de ter em conta o facto de que a cultura se tornou uma mercadoria que pode ser manipulada pelos media, comprada e vendida como qualquer outro produto do mercado, uma espécie de bem seguro sobre o qual é possível exercer o direito de monopólio.
Na África do Sul, temos uma estrutura, a Feira de Arte Contemporânea de Joanesburgo (Johannesburg Art Fair). É necessário incentivar este tipo de iniciativas. Temos necessidade de desenvolver um mercado de arte à escala continental e que tenha verdadeiras ligações com a rede internacional das indústrias culturais. Artistas, autores, designers, músicos e compositores, fotógrafos e estilistas deviam poder ganhar a sua vida decentemente com as suas obras. O desenvolvimento das galerias profissionais devia ser incentivado e os bancos privados, em particular, os bancos de desenvolvimento, deviam encontrar mecanismos inovadores para estender o crédito e o apoio financeiro a consórcios culturais. Será nomeadamente assim que se desenvolverá uma economia cultural credível no continente.
Mas a arte visual não pode desabrochar sozinha. Seria necessário estabelecer sinergias criativas com outras disciplinas: literatura, cinema, dança, música, arquitectura e design, arte digital, teoria da crítica e crítica de arte. Sem uma infra-estrutura cultural composta pelos media, jornais, revistas culturais e uma tradição de crítica de arte séria, sem um investimento importante na teoria da crítica, a nossa produção artística não ultrapassará o domínio do artesanato e deixar-se-á sempre para os outros o cuidado de ditar as condições intelectuais e políticas do seu reconhecimento na cena internacional.
Por um lado, não se pode abandonar tudo ao mercado. Não se pode deixar sem controlo uma mercantilização e uma privatização mais avançadas da cultura. Há formas mais racionais e igualitárias de apoiar a arte e a cultura enquanto bens públicos. Há que conceber uma matriz susceptível de atender a uma pluralidade das necessidades e não apenas às dos estados, dos bancos, dos revendedores e do mercado. A comunidade e a cultura têm mais ou menos necessidade de estarem associadas. A arte pública também pode fornecer às nossas cidades os recursos imaginários de que elas necessitam enquanto tentam favorecer relações recíprocas entre os cidadãos, ou seja, relações sem as quais não pode haver esfera pública vibrante nem verdadeira vida de cidadania.

Há um número crescente de organizações de financiamento originárias e situadas nos países ou regiões em que operam (a exemplo da Fundação do Médio Oriente e do Mundo Árabe para a Cultura). O que pode dizer-nos da sua experiência a este respeito em África?
Não existe nenhuma Fundação Africana para a Cultura. Aqui e ali, encontram-se cidadãos ricos, como bancos ou empresas privadas, que coleccionam obras de arte e financiam exposições. A África do Sul tem os meios financeiros necessários para o desenvolvimento de uma política cultural internacional forte, mas tem uma terrível falta de imaginação. Sozinho, o país podia facilmente financiar uma importante Bienal no grande Sul. Joanesburgo poderia tornar-se uma Meca cultural e artística.
Só que, imitando o empirismo colonial britânico, a elite governante está convencida de que “a arte e a cultura” só dizem respeito “ao património, ao turismo e aos saberes locais”.
No discurso oficial, aprovado pelo Estado, a cultura está completamente integrada nas opiniões sobre o “desenvolvimento” , a “erradicação da pobreza” e a “recuperação racial”. As considerações políticas sobre quem é negro e quem não é eclipsam qualquer apreciação intrínseca do valor da arte enquanto tal.
Para que a África do Sul atinja plenamente o seu potencial, o país necessita de se imaginar como uma nação” afriopolitana” precursora de uma versão da modernidade africana já visível na maior parte dos modelos artísticos e culturais africanos contemporâneos. Do mesmo modo, o país deve distanciar-se de uma visão da cultura como coisa pertencente ao passado, limitada apenas aos costumes e às tradições, aos monumentos e museus. Precisamos de tomar consciência de que a cultura não é uma outra forma de “serviço de abastecimento”, mas o modo como os seres humanos imaginam e arriscam pelo seu próprio futuro. Sem esta dimensão de futuro e de imaginação, não se pode de modo nenhum inscrever o nosso nome próprio ou articular a nossa própria voz.

E onde existem essas organizações de financiamento, elas diferem de outras organizações doadoras ocidentais?

O facto é que o poder e o dinheiro falam mais ou menos a mesma língua em toda a parte. As agências doadoras ocidentais têm tendência a entender-se com os governos africanos para tentar instrumentalizar a arte e restringir o sentido, o poder e o alcance da crítica artística e cultural.
Estas agências e governos avançam que a arte e a cultura deviam ser “pertinentes”. No entanto, a sua definição de “pertinência” é estreita e funcionalista. Aos seus olhos, a arte e a cultura considerados boas e “pertinentes” correspondem a uma arte e uma cultura colonizadas pelo imperativo do “desenvolvimento”.
O próprio “desenvolvimento” é encarado nos termos mais estreitos possíveis, puramente materialistas. As duas partes pensam que “desenvolver a arte e a cultura” (sic) é o mesmo que “desenvolver uma agricultura sustentável”.
Precisamos de nos afastar desta forma de materialismo grosseiro e deste empirismo das necessidades para reabilitar a crítica cultural e artística enquanto bem público como tal. O valor da arte não pode ser medido apenas com base no seu contributo para o bem-estar material. Tanto mais que a criatividade artística não é um luxo ou um passatempo imoral que deva ser adquirido pela sua ligação e pela sua submissão ao discurso oficial, aprovado pelo Estado, sobre o desenvolvimento e a redução da pobreza. Precisamos de resistir a esta banalização.
A criatividade artística, a crítica cultural e a teoria da crítica fazem parte integrante do património imaterial e não quantificável produzido por uma sociedade. Elas constituem uma dimensão essencial da riqueza das nossas comunidades e nações do mesmo modo que as nossas infra-estruturas. O seu valor ultrapassa de longe os meios utilizados para os contabilizar ou o preço a que poderiam ser vendidos. A sua gestão e regulamentação deviam, por isso, ser de uma outra ordem, que tomasse a sério a sua natureza “intocável” e “inalienável” e que, por conseguinte, não depende de unidades de medida nem de índices puramente quantitativos.

As fundações para a cultura pública têm, nos nossos dias, tendência a focalizar-se na cooperação cultural com os países ou regiões, muitas vezes definida por programas de governos nacionais. Isto levou às actuais “listas prioritárias” de países e a um interesse particular pelas artes desses países. A Índia, por exemplo, faz parte dos BRIC (Brasil, Rússia, Índia, China), considerados como economias globais emergentes. Um outro exemplo é o interesse crescente que, há alguns anos, se mostra pelas expressões artísticas do Médio Oriente. Qual é a sua opinião sobre o desenvolvimento da “diplomacia cultural” enquanto ferramenta de diálogo político ou de comércio?
Penso que a pretensa diplomacia cultural é uma ficção lamentável e cómica. Poderá ser doutro modo quando, ao mesmo tempo que a fazemos, se reforçam os controlos de fronteiras, se impõem restrições à circulação de pessoas e se assiste ao renascimento de uma forma defensiva e paranóica de nacionalismo tentada pelo recurso à difamação da raça para regular o acesso à cidadania?
Que indivíduo, em plena posse dos seus meios poderia, na sua opinião acreditar numa pretensa diplomacia cultural, conduzida em locais longínquos quando se está, na sua casa, decidido a defender a suposta integridade cultural da nação contra as hipotéticas ameaças provenientes dos que pedem asilo, de cidadãos não-brancos de segunda geração e toda a espécie de “intrusos” que se considera estarem na origem de patologias culturais nocivas?
Hoje, na Europa ocidental, o centro liberal e o que resta da esquerda socialista infelizmente abraçaram este paradigma ultrapassado e estas definições regressivas e paranóicas da identidade nacional, da pertença e da diferença e isto, numa época em que esta velha ideia de identidade cultural nacional de que são tão nostálgicos está inexoravelmente em vias de desaparecimento.
Sugiro que esta pretensa diplomacia cultural comece em nós mesmos. Ela deve estar  empenhada directamente no país, na teoria e na prática, para encorajar modelos de solidariedade baseados no reconhecimento da nossa humanidade comum. Sem este empenhamento ético e prático, todas estas pretensas “listas prioritárias” não passarão de inúmeras versões da boa velha política que não diz o seu nome de ontem, esse género de política que distribui sorrisos hipócritas ao mesmo tempo que, no terreno, se entrega a esse exercício sórdido que é a difamação racial.

Como é a sua experiência relativamente ao financiamento privado e/ou público?
Quando era Director executivo do Conseil pour le Développement de la Recherche en Science Sociale en Afrique (CODESRIA) (Conselho para o Desenvolvimento da Investigação em Ciências Sociais em África), tive necessidade de contactar com doadores públicos em França, no Japão, na Holanda, com agências das Nações Unidas e sobretudo com países nórdicos. A relação dependia do calibre intelectual e diplomático dos indivíduos e “fazedores de política” que eu contactava. Os encontros mais criativos deram-se com aqueles que acreditavam que o destino da África estava inexoravelmente ligado ao destino do resto do mundo. Eles concordavam que uma intervenção criativa e eficaz no continente exigia um conhecimento sério, prolongado e pormenorizado do país, assim como a capacidade de análise e espírito crítico. Com esses interlocutores, conseguimos muitas vezes programas inventivos e inovadores.
De resto, o quadro geral era sobretudo deprimente. Era necessário contactar constantemente com burocratas cínicos, gente que odiava profundamente o continente mas dele se tinham tornado dependentes, até aproveitar os seus prazeres perversos. Tinham dificuldade em desfazer-se da sua dependência. Interagiam com o continente da mesma forma que as pessoas armadilhadas numa relação abusiva. Não acreditavam na catequese do “desenvolvimento” que, no entanto, pregavam. Eu vivia algumas destas reuniões como uma primeira vista a um asilo de loucos, em frente de pessoas que tinham falhado onde quer que fossem e que nunca poderiam fazer uma carreira honrosa noutro sítio senão em África. Não precisavam de pensar porque, para elas, África era simples. Na verdade, eram muito hostis a tudo o que se assemelhasse a uma ideia.
Mais desconcertante ainda, era essa hipótese implícita, em particular nos países nórdicos, de que os Africanos não podem exprimir-se senão enquanto “vítimas”. Ao manifestarem a sua solidariedade aos conflitos passados da África, numerosos países do Norte acabaram por infelizmente incentivar esta sensibilidade vitimizada que certos intelectuais e políticos africanos propagam desde sempre, o que tentam dissimular por trás de uma aparência anti-imperialista. Eles toleraram, por exemplo, a mediocridade e incentivaram, no discurso sobre as ciências sociais africanas, o fatal predomínio do populismo e do radicalismo. Eles investiram – e creio que ainda o fazem – milhões de dólares todos os anos para manter enormes organizações administrativas ineficazes, que deviam ter sido fechadas há muito tempo no seio das quais um número incalculável de intermediários beneficiam da imunidade diplomática e ganham um salário equivalente ao que recebem os que trabalham para as estruturas da ONU. Esta forma de paternalismo bondoso tem, evidentemente, profundas raízes racistas inconscientes.
Dito isto, tive um grande prazer em trabalhar com instituições como a Fundação Prince Claus e outras com base nos Estados Unidos. No entanto, entendo que nestes tempos neo-liberais, mesmo estas organizações progressistas, e de certa forma vanguardistas, sofrem uma pressão enorme. Com efeito, elas têm de justificar as suas actividades perante burocratas e contribuintes. Algumas adoptaram uma posição fortemente anti-intelectual e aderiam aos modelos romanceados, mas desprovidos de espírito crítico e embrutecedores de um activismo e populismo plebeus. Em certa medida, todos são obrigados a manifestar um interesse puramente formal pela ficção do “desenvolvimento”.
Isto é tanto mais lamentável quanto aquilo de que precisamos presentemente é de uma política cultural crítica que se confronte com a teoria do “desenvolvimento” e revele a sua natureza profundamente reaccionária.

A “cultura como modelo de desenvolvimento” também está no centro das preocupações dos doadores. Coexistem duas visões opostas do financiamento das artes e da cultura: por um lado, a recompensa da “arte pela arte” e, por outro, o apoio às “artes ao serviço do desenvolvimento”. Qual é a sua opinião sobre os programas de “desenvolvimento”, tais como o teatro contra o SIDA, por exemplo? O desenvolvimento pode tornar-se um financiamento objectivo da arte? Quais são as repercussões nas expressões artísticas, quando os artistas são financiados para fazerem passar uma mensagem específica (como a prevenção contra o SIDA)?
A maior parte das agências doadoras ocidentais tem uma noção simplista do que é “a África” e do que é “o desenvolvimento”. Elas não têm consciência – ou fingem não ter – do que revelou uma crítica recente do desenvolvimento enquanto ideologia e prática. Querem agir como se essa crítica nunca tivesse sido formulada.
O facto é que, no terreno, onde muitos de nós vivem e trabalham, o paradigma do “desenvolvimento” está literalmente morto; isso constata-se todos os dias na prática e nas acções das pessoas mais vulgares. Mas a “máquina do desenvolvimento” em si continua viva. Continua a pagar a peritos de forma choruda, intermediários e conselheiros, a pagar volumosas indemnizações diárias aos seus clientes locais, aos seus auxiliares e agentes e a servir aos pobres e às suas comunidades inúmeras tragédias. A “máquina do desenvolvimento” continua a rodar, mas roda no vazio o que me preocupa porque este vazio produz um estrago considerável.
Por outro lado, a maior parte das agências doadoras ocidentais consideram hoje a África como uma área de urgência, um terreno fértil para todas as intervenções humanitárias. O futuro não faz parte da sua teoria da África (nos raros casos em que esta teoria existe). Para elas, a África não passa de uma terra de empirismo, mas também uma terra eternamente no presente, na acumulação em série de “instantes” que nunca atingem a densidade e o peso do tempo humano, histórico. É um lugar em que hoje e “agora” são mais importantes que “amanhã” para não falar do tempo longínquo do futuro e da esperança.
Eis aquilo que o carácter temporal do “desenvolvimento” nos trouxe: a fragmentação do tempo, o apagamento da história-enquanto-futuro e o nosso encarceramento mental numa espécie de jugo fundado na actualidade e no niilismo sem fim. Este impulso niilista também me preocupa.
Em tais circunstâncias, parece-me que a função da arte em África é precisamente libertar-nos das cadeias do desenvolvimento enquanto ideologia e enquanto prática. Ela deve incluir e transcender o instante, abrir os vastos horizontes do ainda-não, aquilo a que o meu amigo Arjun Appadurai chama a “capacidade de aspirar”.
É essa, pelo menos a meus olhos, a função da crítica cultural e da teoria da crítica porque a arte não pode prosperar na ausência de uma forte tradição de teoria da crítica.
Numa altura em que milhões de pobres lutam realmente dia a dia pela sobrevivência, o trabalho da teoria, da arte e da cultura consiste em traçar o caminho para uma prática qualitativa da imaginação, sem a qual não teremos nem nome, nem rosto e nem voz na História. Este combate para inscrever o nosso nome na História e gravar a nossa voz e o nosso rosto numa estrutura temporal orientada para o futuro é para mim um combate profundamente humano. É um combate diferente do da simples sobrevivência, a distribuição de comida física e a reprodução biológica.
Detesto a ideia que faz da vida em África um simples despojo: a de um estômago vazio e de um corpo nu à espera de ser alimentado, vestido, cuidado ou alojado. É uma concepção ancorada na ideologia e na prática do “desenvolvimento”, que vai completamente contra a experiência pessoal quotidiana das pessoas com o mundo imaterial do espírito, particularmente quando ela se manifesta em condições de precariedade extrema e de incerteza radical. Este género de violência metafísica e ontológica tem sido há muito tempo um aspecto fundamental da ficção do desenvolvimento que o Ocidente procura impor aos que colonizou. Nós devemos opor-nos a isso e resistir a tais formas sub-reptícias de desumanização.

 

Tradução do francês do artigo publicado no Africultures.

Translation:  Maria José Cartaxo

por Achille Mbembe
Mukanda | 9 Junho 2010 | arte contemporânea, cooperação cultural, financiamento cultural, Johannesburg Art Fair