Sororidade!

Acto 1: Cuidado!

O tema da sororidade interessa-me muito. Desde que me tornei feminista, creio, esse é um dos pontos mais complexos sobre o qual costumo refletir. Desde já, importa destacar que nos meus processos de reflexão sobre sororidade eu mesma vou (re)aprendendo cada dia um pouco mais, e reconhecendo momentos em que podia ter praticado mais, mas estive em falta: o que me dá algum conforto é saber que podemos sempre melhorar e o processo é contínuo. 

Para quem não sabe, mais coisa menos coisa, sororidade é comummente definida como amizade, união, afeição, irmandade entre mulheres. Diversas mulheres feministas teorizaram sobre sororidade em vários momentos, ao longo do tempo. Em outro texto, publicado há algum tempo no site do Coletivo Ondjango Feminista, reflito brevemente sobre sororidade como uma ferramenta política, como uma estratégia de luta. Sem deixar o pendor político, pretendo agora, em diferentes atos, começar a explorar outras nuances ou faces disto que, a meu ver, é um dos maiores atos de resistência na luta e na vivência feminista. 

 

O berço

O tema interessa-me por várias razões, e, sempre que penso nas mesmas, e todas inicialmente me levam a um único lugar: o berço. Esse berço pode ser visto em diferentes perspectivas: o berço objeto/material, o colo da minha mãe, o colo das minhas tias de sangue e por afinidade, e o colo de várias pessoas. Mas é também: a casa, a cidade onde nasci e cresci, o país de onde sou e, sobretudo, as mulheres que habitaram e habitam esses espaços físicos.

Penso em sororidade e vou ao berço, vou a todas as mulheres que se têm movido nesse berço. Esse movimento faz-me começar a olhar de outra forma a tão propagada rivalidade feminina. Não nego a existência dessa rivalidade e conheço de longe o peso e o lugar que a nossa socialização lhe conferem: os vários mecanismos de divisão e de fazerem-nos crer que é impossível ou muito difícil criar alianças entre mulheres. No entanto, penso muito também que várias vezes concentramo-nos mais nas partes más que nos esquecemos de ver os exemplos de sororidade à nossa volta, com os quais devíamos aprender. 

Minha mãe me teve sozinha em casa, à noite, num dia de fevereiro, na década de 90. Não havia meios para chegar ao hospital com rapidez e, parece, não esperei muito. Então, ela teve de organizar tudo o melhor possível no chão do seu quarto lá em casa e com as forças que tinha me trouxe ao mundo. A primeira pessoa que apareceu para a socorrer foi uma mulher, a minha madrinha – alertada pelo meu pai na busca por ajuda – que, na altura, era enfermeira ainda a exercer funções. Minha madrinha cortou o cordão umbilical que nos unia e prestou a assistência necessária, sendo que a minha mãe ia ficando sem forças depois de ter dado à luz. E, pronto, estava eu cá fora. 

Desde cedo, a minha mãe saía de casa para vender. Eu tinha dois meses de vida e já a acompanhava à rua na venda do pão – era imperativo, não podia deixar-me. Minha mãe conta que eu era cuidada não só por ela, mas por todas as mulheres à sua volta. Passei a ser a filha delas. Isso sempre foi uma coisa muito forte para mim, emocionava-me todas as vezes que as minhas tias – na altura companheiras de venda da minha mãe – contavam, e emociono-me até hoje quando relembro do modo potente e simultaneamente delicado como elas contavam episódios de cuidado das outras crianças que cresciam ali comigo. Eram todas mulheres saídas de suas casas – a maioria sem laços de parentesco – com filhos pequenos, sem ter com quem os deixar porque não existia qualquer assistência social institucional nesse sentido. Então elas carregavam-nos no seu quotidiano de luta pela sobrevivência.

Essas mulheres eram a força umas das outras!

Vim ao mundo ainda em contexto de guerra civil em Angola, tendo nascido no Namibe, província do sul do país “não muito afetada” pelos conflitos armados. Entretanto, estar no Namibe na altura, mesmo sem o som de tiros, não significava deixar de ser afetado pelas incertezas que uma guerra traz, pelo medo sempre à espreita e pela omnipresente possibilidade de que as coisas nalgum momento podiam eclodir. Aline Frazão, num texto recente publicado no BUALA, faz uma preciosa reflexão sobre a infância em tempos de guerra, e diz: “…há algo de universal no sofrimento humano em tempos de guerra, uma agonia avassaladora quando a violência ultrapassa os limites do absurdo.” E é isso, estando em zonas que são “o coração” do conflito ou em zonas periféricas como foi o caso do Namibe, não se deixa de se sentir as agonias, as dores e tensões que uma guerra traz a um país, ou ainda as consequências socioeconómicas da mesma. 

 Ana Silva, Je n’ai pas besoin de fleurs, 2022 Ana Silva, Je n’ai pas besoin de fleurs, 2022

A minha mãe, as minhas tias e toda a sua geração foi marcada por isso, e nós, os mais novos que não sentimos tanto na pele, na altura, fomos marcados pelos resquícios desse processo: o medo das nossas mães e pais que os conflitos não acabassem, a tristeza, a dor e os seus traumas por saberem ter perdido familiares e pessoas próximas na guerra, a incerteza delas e deles sobre que futuro haveria para nós que “herdamos” um país por reconstruir.

É nesse contexto, não tendo outra opção, que minha mãe e suas companheiras iam vender em barracas na rua o pão que elas mesmas faziam. A guerra tinha sido, inclusive, a causa de muitas das mulheres companheiras da minha mãe estarem no Namibe a viver: tinham sido pessoas deslocadas de outras províncias do país, sobretudo daquelas que estavam a ser extremamente afetadas pelos conflitos como o Huambo e o Bié. Aliás, foi assim também que parte da comunidade Ovimbundo (um dos maiores grupos étnicos do país e do qual muitas faziam parte) cresceu no Namibe. A guerra provocou deslocamento em massa, trouxe indizíveis dores, separou pessoas e famílias que nunca mais conseguiram reencontrar-se. E esse mesmo contexto de guerra criou e fortaleceu laços, em particular entre mulheres.  

O contexto de guerra civil era também o lembrete de que elas não podiam largar as mãos umas das outras, era preciso segurarem-se para não sucumbir até que chegasse a paz. Divaldo Martins, no romance Vidas de Areia, faz um dos mais potentes retratos sobre momentos de guerra civil em Angola e de como várias mulheres, de diferentes proveniências do país, choraram juntas, dividiram preocupações, resistiram, e apoiaram-se umas às outras nesses períodos difíceis e mesmo no pós-guerra. Captamos no romance a dor e preocupação de mulheres mães pelos seus filhos e os filhos de outras mulheres:

«A maka é essa guerra… Que me dói são os miúdos, tão crescer… Daqui a pouco vão ter idade. Filho da Teresa do Mota lhe apanharam na rusga, semana passada, estão vir dizer que miúdo morreu lá no Kuito-Kuanavale. Teresa, coitada, nem corpo do filho viu nem nada. Meu sobrinho lá no Huambo, semana passada estava a sair da lavra, pisou mina, ficou só com uma perna e um braço… Quando penso que Pai-Dele vai ficar grande, coração aperta, mana, aperta.» (Martins, 2015, p.15)

Na abordagem sobre os conflitos armados e suas consequências, o romance centra-se em grande medida no que acontece em Luanda, a capital do país, entretanto, isto é feito destacando-se vozes de diferentes personagens provenientes de outras partes de Angola. O enredo vai além do período de guerra civil e chega a um país já com uns tantos anos de paz, onde as relações entre as mulheres continuam a ser tecidas como parte fundamental da sociedade. Este livro é, entre outras coisas, um testemunho potente da profundidade e complexidade (porque nem tudo são só simpatias) da solidariedade entre as mulheres na história contemporânea de Angola.

Tanto no caso da minha mãe e das minhas tias como na relação entre as personagens do romance Vidas de Areia, compreendo como, ao segurarem-se, essas mulheres resistiam e movimentavam-se juntas para seguir em frente! E, não sei se existe algo mais potente do que esperançar e resistir em conjunto a contextos sociais, económicos e políticos que não nos oferecem muito além de morte, dor, desassossego e precariedade.

 

O cuidado

Na rua, a vender, tudo se partilhava. O que era de uma estava sob cuidado de todas as outras no mesmo espaço. Havia relações de confiança entre minha mãe e suas companheiras que chegaram a transcender o espaço da rua e perduram por anos. Essas mulheres emprestavam o pouco que tinham quando uma ou outra precisasse de ajuda, praticavam o Ubuntu mesmo sem conhecer a palavra: uma era porque as outras eram. Existiam em coletivo. A solidariedade entre essas mulheres não deixava de ser um ato político na medida em que, juntas, resistiam a um contexto socio-histórico e político hostil, encontrando ferramentas conjuntas para a sua sobrevivência e das suas famílias. 

Ainda hoje, na contemporaneidade, continua a existir a partilha entre diferentes grupos de mulheres, não é uma prática que ficou no passado. Um exemplo disso é o caso das zungueiras (vendedoras de rua) em Angola. Qualquer pessoa que pare por alguns minutos para observar um grupo de mulheres zungueiras consegue perceber os modos como elas se mobilizam juntas, se auxiliam nos atos de cuidado, tanto no que concerne aos filhos pequenos que carregam muitas vezes às costas, como em relação aos produtos que comercializam. Ademais, é interessante também observar o modo como essas mulheres se amparam quando a polícia, que muitas vezes as devia proteger, aparece e exerce violência sobre as mesmas. Quando o coletivo Ondjango Feminista na 4ª edição do seu Informe TUBA! abordou o tema da Resistência Económica das mulheres em Angola, em uma das entrevistas a uma mulher zungueira, a Nanda, quando se lhe pergunta como a crise e o contexto económico hostil que o país vive afetava a sua vida, ela responde que:

Afectou e afecta não só o meu negócio, mas também a minha vida e família no geral. As minhas irmãs são zungueiras também e ainda contam comigo para lhes ajudar. (TUBA, 2020, p. 33)

Ao referir que suas irmãs ainda contavam com ela, Nanda revela-nos que as articulações entre as mulheres são uma prática constante – aliás, várias outras mulheres nesta edição do TUBA! revelam isto. Mulheres zungueiras em Angola continuam infelizmente a ser um dos mais fortes espelhos dos problemas socioeconómicos do país, da ausência de políticas públicas efetivas para a melhoria das condições básicas de vida das cidadãs e cidadãos angolanos. No entanto, essas mesmas mulheres seguem nos dando exemplos de sororidade e de resistência na medida em que muitas estão organizadas em grupos e associações, e incentivam umas às outras a lutarem pelos seus direitos. Nanda, apesar de trabalhar como zungueira, já tinha dado aulas de alfabetização a outras mulheres noutro momento da sua vida e dizia às mesmas que “era preciso coragem para se organizar” (p.34). Ainda, ao ser questionada sobre a relevância de as mulheres reivindicarem e resistirem pelos seus direitos refere que:

É importante que as mulheres reivindiquem os seus direitos, calarmos também não está bem. Vai trazer alguma mudança sim, na verdade até já temos mudanças. Por exemplo, aqui na nossa associação tem senhoras que já não choram e agem, já não aceitam se manter caladas diante dos problemas. (TUBA, 2020, p.35)

Ana Silva, Água, 2021Ana Silva, Água, 2021

Não me lembro de lição mais forte sobre segurar a mão de outrem para construir uma sociedade melhor que venha de outro lugar que não seja das mulheres angolanas. Na minha infância, quando voltássemos da escola e não tínhamos com quem ficar porque os pais estavam na rua a batalhar pela vida, era em casa das vizinhas – que se tornavam e seguem sendo nossas tias – onde ficávamos até à mãe voltar; quando a comida na nossa mesa não chegava era sempre uma outra mulher que ajudava com o que faltava tirando da sua casa ou, em alguns casos, deixando que os filhos de uma fossem comer em casa de outra até a situação melhorar. Se nos faltava alguma coisa básica (sal, tomate, cebola, etc.) íamos à casa da tia Adelina ou da tia Evalinda buscar e o processo era recíproco; quando a tia Betuliana tinha produtos alimentares em grande quantidade partilhava com a mamã e outras amigas e vice-versa; a tia Aurora emprestava dinheiro à mamã quando era preciso, a tia Lúcia também. Criavam-se redes de apoio entre mulheres que foram importantíssimas na minha infância, na adolescência e continuam a ser até hoje. Do lugar de onde venho, as mulheres seguem tecendo laços e buscando alternativas em conjunto para sobreviver e manter a si, as suas famílias e o país em pé.

Todas e todos nós, de alguma forma, em qualquer canto do mundo, somos fruto de redes de cuidado e de apoio entre mulheres!

E essas redes de apoio têm sido fundamentais nos contextos de ausência de um Estado que garanta condições socioeconómicas para as mulheres, onde não se dá atenção às disparidades de género no acesso à educação, aos cuidados de saúde e, entre outras coisas mais, não é criado um sistema de assistência social robusto que inclua, por exemplo, uma rede de creches e berçários públicos acessíveis às mulheres que lhes permita deixar filhos e filhas em segurança enquanto trabalham por si, pelas suas famílias e pelo país.   

Quando as mulheres do meu berço, as que de alguma forma me são próximas ou não, juntam-se e cuidam umas das outras, dos filhos e filhas de umas e das outras, elas semeiam e ensinam-nos sobre a cultura dos afetos, da empatia que nasce do olhar a outra pessoa e reconhecer-se nela. Eu vejo-te, eu reconheço-te, eu importo-me! Uma sociedade justa constrói-se assim: no reconhecimento e na importância que damos a outrem.

 

Não são só flores…

Chego quase ao fim do texto. E importa deixar registado que nem tudo são flores e não tenho pretensão alguma de romantizar as relações entre as mulheres. Importa referir que as mulheres do meu berço não são feministas ou se auto intitulam de feministas, não são académicas a teorizarem sobre sororidade. No entanto, isto não constitui uma barreira para deixar de colher e aprender com elas exemplos práticos de sororidade. Como feminista, uma das principais lições que carrego comigo há muito tempo é a de que as mulheres no quotidiano, sendo feministas ou não, passam-nos bastante conhecimento para a nossa luta e mobilização política através das suas diferentes vivências. 

bell hooks, no livro Teoria Feminista: da margem ao Centro aponta para o facto de que as nossas experiências individuais entre mulheres variam muito, mesmo quando partilhamos antecedentes étnicos ou de outra natureza. Há desafios, há complexidades, há barreiras e valores inculcados em nós através da cultura que se não forem desaprendidos separam-nos, fazem-nos competir e hostilizar umas às outras, e retardam o nosso processo de tomada de consciência política. No entanto, ainda de acordo com Hooks (2020): 

Se deixarmos de aceitar passivamente esta tendência adquirida de comparar e julgar, podemos encontrar valor em cada experiência. Podemos descobrir também que as nossas experiências diferentes significam muitas vezes necessidades diferentes, e que não há uma estratégia ou fórmula para o desenvolvimento de consciência política. Ao traçarmos diferentes estratégias, afirmamos a nossa diversidade, e trabalhamos no sentido da solidariedade. Se queremos desenvolver solidariedade política, as mulheres têm de explorar diferentes formas de comunicar transculturalmente umas com as outras. (hooks, 2020, p.125)

A sororidade é uma construção, não um processo  findo num único ato de solidariedade ou cuidado entre mulheres. Tampouco é quantificável. A sororidade vai acontecendo na medida em que conscientemente lutamos para melhorar a qualidade das nossas relações entre mulheres até que seja parte cada vez mais fluída em nós. Neste processo precisamos estar sempre atentas para o facto de que não partimos todas dos mesmos lugares. Compreender isto é importante para não cairmos na armadilha de nos invisibilizarmos ao longo do caminho, bem como para a nossa construção política de um mundo mais equitativo entre todas as pessoas. 

Nas relações entre a minha mãe e suas companheiras que descrevo acima havia discordâncias e embates. A diferença, e nisto aprendi muito com elas, é que sempre existiu escuta ativa e vontade de ultrapassar as barreiras pelo bem comum. A sororidade passa também por lutarmos a sério para desconstruir e questionar os valores e ideias que permeiam as sociedades patriarcais, misóginas e machistas em que vivemos e ensinam-nos a sermos mais duras, mais intolerantes, mais competitivas e mais propensas a apontar o dedo e a desumanizar outras mulheres.

Deixo-vos só uma última nota:

Todo o ato de sororidade entre mulheres é político, mesmo quando não tem pretensões de o ser.

 

Referências

Hooks, Bell. (2020). Teoria Feminista: da margem ao centro. Lisboa: Orfeu Negro.

Martins, Divaldo. (2015). Vidas de Areia. Luanda: Texto Editores.

Ondjango Feminista. (2020). TUBA! Informe: Resistência Económica das Mulheres, 4ª ed. Luanda: Ondjango Feminista.

 

por Leopoldina Fekayamãle
Corpo | 17 Janeiro 2024 | angola, cuidado, feminismo, guerra civil, sororidade, zungueiras