Da luta, da perda, da caboverdianidade: entrevista com Flávia Gusmão

A estreia do docudrama #4 MANGIFERA foi o pretexto para falarmos com a atriz e encenadora Flávia Gusmão, que tem aqui a sua primeira incursão na realização. O filme integra o projeto artístico NA LUT@, da sua autoria, e será exibido no dia 16 de outubro na RTP2.

Samira Pereira por Corinne Van Egeraat em 4MANGIFERASamira Pereira por Corinne Van Egeraat em 4MANGIFERA

#4 MANGIFERA é a quarta de cinco partes de um projeto artístico transdisciplinar sobre a perda e o luto, criado por Flávia Gusmão no seguimento da morte prematura da produtora, gestora e ativista cultural cabo-verdiana Samira Pereira.

A criação NA LUT@ organiza-se em torno de cinco partes, a primeira das quais estreada há cerca de um ano, no Festival Internacional de Teatro Mindelact, em Cabo Verde; e que terá o seu último capítulo apresentado no Teatro São Luiz, em Lisboa, em abril de 2023. Concebido como forma de processar a perda, NA LUT@ cria um jogo de palavras que, em crioulo, significa simultaneamente “na luta” e “no luto”, e introduz como temas as fases do luto — negação, raiva, negociação, depressão e aceitação —, assim como noções e questionamentos de identidade e pertença, o sincretismo das comunidades cabo-verdianas, e os seus conceitos históricos, políticos e culturais.

O filme #4 MANGIFERA chega ao canal público de televisão integrado nas celebrações do centenário de Agustina Bessa-Luís, autora de um dos textos que serve inspiração a este docudrama.

O filme #4 MANGIFERA é a sua estreia como realizadora, e, claramente, um trabalho muito pessoal. Qual foi a génese deste projeto? 

A génese deste projeto, que em última análise preferia não estar a fazer, foi a morte da minha melhor amiga no verão do ano passado. Além de minha amiga, foi também alguém que criou e deixou de herança de redes importantes na cultura cabo-verdiana. Penso sempre que ela teria muitos mais projetos para fazer e dinamizar, através dessas redes. Este filme é também um desenvolvimento das redes que ela criou em vida e acabou por ser produzido, editado e feito por pessoas todas elas ligadas à Samira. Aliás, alguns de nós nem nos conhecíamos e foi graças à Samira (e por ela) que nos juntámos para fazer este filme.

As atrizes e o ator do filme são pessoas a quem dei formação em teatro durante dois anos no Centro Cultural do Mindelo e com quem, na altura da pandemia, tinha feito as minhas primeiras experiências com câmara. Trabalhávamos a partir de textos de autoras e autores cabo-verdianos e fomos fazendo experimentações na sala de ensaio. Nesse processo, descobrimos a linguagem da câmera à mão, e do plano-sequência com o uso constante de uma lente muito aproximada, com focos e desfocos. Essas escolhas tiveram muito a ver com o meu percurso de atriz, e com o percurso que tínhamos feito enquanto Kanizade (o nome do grupo) e que implicava meses a praticar exercícios teatrais baseados na ideia de estar no presente e aproveitar os erros para fortalecer o trabalho. A ideia de plano-sequência também trazia o teatro, do qual tínhamos saudades, de novo para o nosso processo.

O filme integra-se num compêndio artístico de cinco peças distintas. De que forma se destaca e se liga às demais?

Este filme é uma de cinco partes de um projeto sobre a perda. Sendo que os outros capítulos foram – e serão, no caso do último – performances feitas, ou pelo menos experienciadas ao vivo. Por ser um filme já é distinto dos demais capítulos. Até na construção e execução é diferente, porque é muito difícil fechar algo e não poder mudá-lo. No caso do teatro tenta-se sempre fazer melhor no dia seguinte, como foi o caso do segundo capítulo, que mudei – inclusive a edição – até ao último dia das apresentações.

Os capítulos estão todos ligados, fazem todos parte de um projeto de longa duração que começou faz agora um ano. O Mindelact (Festival Internacional de Teatro de Cabo Verde) decidiu, pouco tempo depois da morte da Samira, dedicar-lhe a edição desse ano. Eu tinha regressado a Lisboa, mas pensei logo que teria de fazer artisticamente alguma coisa para essa edição – foi então que pensei na ideia de uma gravação. Muito rapidamente percebi que uma performance não seria suficiente para tudo aquilo que estava a sentir – daí a ideia de fazer algo de longa duração em cinco partes, como as fases do luto – e os capítulos não poderiam ser construídos em cima da ideia de uma linearidade, nem em cima da ideia de “um capítulo/uma fase”, porque senti, desde o início, que as fases do luto se misturam, que andam para trás e para a frente e inclusive se entrelaçam e se sobrepõem umas às outras.

Neste quarto capítulo resolvi pegar numa ideia que tinha começado a desenvolver no segundo. Ao ler vários livros e textos sobre o luto, e no meio da minha dor, resolvi fazer um mapa cromático das fases do luto. Por uma questão de investigação e organização mental, defini uma cor para cada fase e tenho esses livros sublinhados com essas várias cores. Era algo que estava na performance a solo apresentada na Galeria Zé dos Bois e que agora ganha mais forma. Outra das questões com que me deparei constantemente foi a minha tentativa de colocar o meu corpo sempre de fora destes trabalhos. No segundo capítulo estive, quase até ao fim, a tentar que fosse uma instalação em que não estivesse sequer presente. Neste filme também tive essa resistência, apesar de termos filmado dessa maneira – com várias câmeras e com o cuidado de ter os figurinos da equipa presentes nas sequências. Felizmente, em equipa foram-me alertando sobre o facto de eu não poder ficar totalmente de fora de um projeto que parte do meu luto sobre uma amiga e que também pretende refletir sobre questões de identidade e de caboverdianidade, que são também reflexões minhas.

Escolheu excertos da obra As mãos contra a luz, de Agustina Bessa-Luís; e excertos de Shauna Barbosa, escritora de ascendência cabo-verdiana. Qual a relevância destes textos?

No trabalho que fiz com o grupo Kanizade, explorámos muito textos de outras pessoas que eram sempre cruzados com a biografia das atrizes e atores. Achei que este conto de Agustina Bessa-Luís poderia ser, de alguma forma, sobre a Samira. A meu ver, o texto amplifica problemáticas que se relacionam com a ideia de identidade(s), o papel da mulher, geografias de onde se quer fugir e para onde se quer voltar e também me sugeriu um ponto de partida para uma tentativa de se pensar sobre o que nos faz denominar alguém de “um intelectual”. O conto cita também, ao de leve, o sincretismo das festividades do São João que, neste filme, têm bastante importância. No caso do poema da Shauna Barbosa, foi escrito de raiz para o filme, a partir de uma memória de um fim de semana passado com a Samira em Cabo Verde.

Como realizadora e diretora de fotografia — algo incomum numa primeira obra — introduz uma gramática visual peculiar, experimental, frequentemente com a câmara tremida, com imagens desfocadas, pontilhada de momentos poéticos. De onde vem esta linguagem, e porquê, também, a opção de ser a Flávia filmar?

Foi esta a linguagem que tínhamos descoberto em conjunto há dois anos quando resolvi pegar numa câmara por causa da pandemia, com o Kanizade. Ou melhor, esta era a memória que eu tinha desta linguagem e que seria o ponto de partida para o que queria fazer com as atrizes neste filme. A câmara é também uma personagem que anda no meio dos atores, que se mexe, que segue ou não determinada ação sempre com uma distância próxima. Se fosse outra pessoa, a relação com as atrizes também seria outra. Aqui, acabou também por surgir uma ideia de explorar ainda mais o desfoque que era algo que estava a ser explorado na dramaturgia e que ia a par e passo com o processo da dor do luto. O luto também era o meu. Tudo razões para quase me obrigarem a ser eu (também) a filmar. Isso e algumas pessoas, em quem confio muito, continuarem a dizer keep going, para não duvidar de que fazia sentido ser eu, como mulher, naquelas relações com aquelas mulheres todas e com esta história, a introduzir o meu ponto de vista.

Que desafios sentiu, técnica e conceptualmente, como realizadora e do ponto de vista pessoal, num projeto tão íntimo?

Todos os dias pensei em desistir. Talvez o capítulo em pensei menos em desistir tenha sido o terceiro, quando dei uma formação de três meses às mulheres batucadeiras que fazem parte do grupo Finka Pé, da Cova da Moura. Esse também foi o capítulo em que estive realmente mais de fora (sendo que, a certa altura, percebi que tinha de ter um texto meu e que seria projetado como forma de solidificar e unir este trabalho dedicado à Samira com as histórias de luto e de vida das mulheres). Mas voltando às dificuldades deste capítulo, foi muito duro. Ainda é. É muito exigente quer pessoal, quer profissionalmente. Tenho a sorte de estar muito bem rodeada de pessoas que me ajudam e ensinam muito todos os dias.

O filme começa com uma sequência hipnotizante, quase onírica, com a sua voz off sobre o negro, falando de mangas e mangueiras. Qual é o significado da mangueira [a Mangifera] neste filme? Aliás, porque têm todos os outros capítulos nomes de árvores?

A ideia-base das árvores tem a ver com a ideia de eu própria tentar ir buscar mais aprendizagem neste processo de luto aos ciclos da natureza onde tudo nasce, morre e se transforma. A mangueira surgiu porque, no quintal da última casa em que Samira viveu, havia (há) um (vários) pé(s) de manga. No primeiro capítulo os espectadores andavam no percurso perto de duas das casas em que Samira morou. Aqui, decidi filmar primeiro no jardim e depois dentro da casa, que pertence a uma das atrizes do filme. Depois, ao investigar sobre esta árvore, percebi que a mesma também está associada a questões de identidade, porque não é sequer natural dos locais a que normalmente a associamos, como Cabo Verde ou São Tomé.  

O #4 MANGIFERA fala-nos do luto, da perda, da morte física, mas também da identidade, da auto-pertença, da ausência… E da catarse. Fale-nos de como estes sentimentos complexos se introduzem na história.

É engraçado porque foi a Samira que me chamou a atenção para o facto, depois da minha primeira viagem a Cabo Verde (2011), de o meu trabalho como criadora ter ficado mais autobiográfico. Na verdade, foi a soma de vários fatores: nessa altura comecei a fazer mais trabalhos meus, não só como atriz, e isso também se seguiu a uma primeira experiência no Brasil, em que os artistas com quem trabalhei usavam muito as suas experiências como matéria-prima para escreverem. Mas a decisão de levar a minha mãe a Cabo Verde pela primeira vez, há onze anos, foi, sem dúvida, muito importante para aquilo que sou hoje, como pessoa e como artista. Foi nessa altura que dei aulas, pela primeira vez, na Cova da Moura e, pensando na parte mais emocional e menos política deste projeto, depois da morte da Samira, sinto que Cabo Verde voltou a morrer um pouco dentro de mim, e quero, de algum modo, tentar resgatar o laço construído naquela altura em que fui procurar as memórias que não me foram passadas pelo meu avô.

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por Flávia Gusmão, P.J. Marcellino e Helena Ales Pereira
Cara a cara | 26 Setembro 2022 | 4 mangifera, agustina bessa-luís, caboverdianidade, cinema, crioulo, flávia gusmão, luta, luto, Mindelo, NA LUT@, pandemia, perda, samira pereira