«ALDA E MARIA – POR AQUI TUDO BEM» - um filme de Pocas Pascoal

Este é a odisseia de duas irmãs angolanas que só se têm uma à outra na selva urbana de uma metrópole europeia – Lisboa – nos já longínquos anos 80 do século XX. Longínquos pelo tempo decorrido e pela história trilhada nos caminhos de sangue e conciliação, reconciliação de um país nascido República Popular de Angola, hoje República de Angola.

Esse mesmo país em que alguns filhos decidiram buscar noutros horizontes uma paz e um futuro que julgavam impossível na terra que os viu nascer. Alda e Maria (magnificamente defendidas pelas atrizes Ciomara Morais e Cheila Lima), essas ternurentas meninas que “fomos nós”, hoje alegres “cinquentinhas” e filhas dos anos 60, tentam sobreviver a duras penas, sem dinheiro e com o futuro preso pela saudade dos pais e a vontade de voltar, de partir, de ficar, de viver, as memórias comuns, as incertezas que vivem também individualmente. O pai desaparecido vive como uma recordação presente e uma interrogação dolorosa na memória de uma e de outra filha. A mãe, pilar familiar, como muitas vezes na sociedade angolana, providencia o sustento e a segurança de que ambas precisam. E a promessa de um reencontro em breve reacende todos os dias um brilho no olhar destas miúdas que lhe transmitem a ideia de que “Por aqui tudo bem”, que é um outro nome para ambas e uma outra síntese do filme. Um drama privado convertido numa vida bem-sucedida e sem maiores dificuldades para os olhos de uma mãe que está longe e que não deve nem pode ser preocupada com detalhes anódinos.

Em face de um aperto financeiro inesperado causado pelas dificuldades cambiais da época, hoje perfeitamente atuais, as adolescentes vêem-se obrigadas a desbravar caminhos num ambiente agreste, se não hostil, onde impera o materialismo e o pragmatismo dos negócios e da sobrevivência do pequeno comércio, num mundo sem contemplações.

Elas procuram uma forma de viver sem quaisquer recursos, expondo-se necessariamente à cobiça de uma sociedade que as venera pela sua graça e juventude e as devora pela sua inocência e vulnerabilidade. Duas meninas sem dinheiro e apenas com o inevitável apelo da sobrevivência acabam por conhecer pessoas que numa fase inicial as ajudam e posteriormente revelam o seu lado mais obscuro e desprezível. Não seremos nós todos assim, meio anjos, meio demónios? A natureza humana tem preferência, dir-se-ia, pelas meias-tintas, meios-tons, meias verdades e doces mentiras. Alda e Maria tornam-se expeditas e sofrem na pele as agruras da pobreza na condição de quase sem-abrigo, quase sem consolo e sobretudo sem a fundamental proteção familiar, em cenários despojados com os quais desenvolvem também uma forte relação de pertença e interação, uma sujeição física.

Mercê da ajuda de Dona Alice, uma modista angolana de mãos de fada (a atriz Vera Cruz), que carrega também uma dor maior (a qual, aliás, as aproxima), elas conseguem encontrar o que parece ser, numa efémera temporada, um sucedâneo da paz e do clima familiar. Uma mesa certa, algum trabalho e a promessa de uma profissão potencialmente rentável mantêm-nas presas à dependência dessa mulher estranha que as auxilia com um mão enquanto as chicoteia com a outra. A Mãe, essa, vive na promessa de um regresso em breve para o tão esperado reencontro familiar, através dos telefonemas dominicais à hora certa que as colam ansiosas à porta de uma cabine telefónica. Essa é uma imagem muito forte para quem cresceu com um ipod ou um smartphone colado aos dedos e não sabe das tristezas e das esperanças que guardava então uma chamada internacional feita através de uma impessoal cabine.

Quando umas das irmãs conhece o que parece ser uma imagem crua e desapiedada do amor, através de um rapaz do bairro degradado que as acolheu, ela percebe que, afinal, o amor, se é amor, pode não ser tão rosa, azul ou dourado, e que vive apenas duma eternidade tão fugidia e matreira que se esvai num instante para logo se materializar noutro lugar e com outros protagonistas. O amor tem então um gosto amargo de sedução barata, de sexo casual, de estímulos químicos e alucinogénios, de abandono e de rejeição inesperada.

O único afeto que permanece é o dessas duas irmãs que finalmente se encontram face a um destino sem promessas nem certezas, a uma Mãe que não virá, e elas sabem-no. O Pai é a figura que persiste na expectativa teimosa de uma e na dúvida esperançosa de outra.

Enquanto uma delas persegue o seu sonho europeu, mesclado de inquietude, a outra decide voltar às origens, procurando ambas reconstruir o paraíso perdido, enfim, uma identidade. Uma separação que culmina com aquele abraço que prescinde de palavras e sentimos como nosso.

É uma história de emigração e de afetos que Pocas Pascoal, a realizadora angolana que vive hoje na ponte aérea Paris-Lisboa, trouxe para a nossa intimidade, apesar dos nossos receios e da nossa fragilidade intelectual e emocional.

Não há como resistir a esta narrativa, em que a realidade, auto-descrita, imita cruelmente e poeticamente a ficção. Preparem-se para uma dose de drama na quantidade certa. Não é um filme: é a nossa vida.

 

Para mais informações sobre o filme, consultar também:

https://www.facebook.com/events/563198847167775/

https://www.facebook.com/pocas.pascoal?fref=ts

 

 

por Luísa Fresta
Afroscreen | 2 Outubro 2015 | Pocas Pascoal, Por aqui tudo bem