«FIEVRES» um filme de Hicham Ayouch

Benjamin, 13 anos, vai transtornar a vida apagada e sombria do seu pai e dos seus avós paternos, pondo a nu o frágil equilíbrio que os liga, alicerçado em silêncios e omissões. O pai, Karim, é um adulto que vive ainda com os pais, com os quais partilha dramas recalcados e uma sufocante atmosfera entre as paredes de um HLM e o peso dos remorsos, em meio a uma identidade fragmentada, sequelas de um exílio sempre presente e palpável.


O adolescente institucionalizado teima em reencontrar o pai, que simboliza para ele a liberdade e uma porta de saída para o mundo; no entanto, a imersão abrupta no universo desta família magrebina vem a revelar-se um choque brutal para todos, inclusive para ele próprio que reconhece ser o cerne do problema. A sua família de sangue mostra-se incapaz, numa primeira abordagem confusa e vacilante, de convencê-lo a adotar um comportamento pautado por regras, afetos e compromissos. Karim é um pai hesitante e frágil, arrastando o olhar desgastado pela monotonia dos dias; este homem de aparência desleixada e olhar baço, que soçobra num alheamento permanente, virá progressivamente a aprender, a duras penas, que a educação de um filho vai para além do mero sustento.

O avô é um homem de hábitos, cavalheiro solitário e disciplinador, e a avó uma mulher terna disposta a instalar-se no coração desse neto dissimulado e esquivo. Karim terá que optar a cada instante entre uma educação mais rigorosa e austera, impregnada de firmeza e de limites claros, e o aconchego incondicional e protetor que se espera de um pai. Ele próprio é um quase-nada numa casa triste, em que a figura do irmão Heikel está sempre dolorosamente presente, como uma marca de água, convertendo-se numa alusão permanente ao longo deste drama. Benjamin não vai facilitar a vida à família que não escolheu e que o acolhe com carinho mesclado de assombro e desconfiança. Ele é a fera que desafia o bom senso e as noções mais elementares de educação e convívio social. Malandro, cheio de manhas, gingão, adota a postura de um reles arruaceiro dando azo a duros confrontos resultantes de tensões incontidas que se ampliam a cada gesto, a cada olhar de viés, na linguagem das ruas. O miúdo carrega uma rebeldia incómoda que consegue exprimir apenas através da sua arte, o graffiti. Vem a conhecer um estranho poeta, que pinta histórias no ar com spray de tinta, com quem partilha conversas improváveis numa roulotte. Benjamin é também Antik, a sua versão artística, ou uma besta acorrentada ao seu próprio desejo de parecer mais assustador do que na realidade é. Ele risca os muros da cité francesa com violência em traços de cor, sangue e desesperança. Oscilando entre o miúdo perverso e intrinsecamente mau e uma criança sedenta de um gesto de amor e de um colo paterno, Benjamin consegue exasperar, surpreender e provocar até o mais fleumático dos espectadores.

Fièvres, de Hicham AyouchFièvres, de Hicham Ayouch

Esta família terá que escolher em que versão acreditar e construir a relação possível com este pequeno estranho insolente que fuma dentro de casa, bate com as portas, coloca fones para melhor sentir o silêncio e distanciar-se do céu fechado e dos corredores intermináveis dos altos e tristonhos HLM, tão cinzentos como uma trovoada iminente. Ele recria a figura do tio Heikel nas paredes do bairro, sem o conhecer ainda, e surge finalmente como o sobrinho empático que oferece uma saída a esse personagem, que é afinal um dos mistérios e o principal tabu desta família.

Hicham Ayouch, na sua terceira longa-metragem de ficção, serve-nos este drama urbano com profunda delicadeza, sem condescendência nem julgamentos definitivos, com objetividade, não obstante a beleza transparente com que pinta algumas cenas deste quadro familiar doloroso. Há lugar para leves pinceladas de humor e até mesmo de um suave erotismo. Das janelas do HLM nasce finalmente um sopro de vida quando as luzes se acendem desenhando cintilantes quadrados multicores e convidando o amor a entrar.

Mas o drama é a nota que prevalece, fornecendo matéria para reflexão sobre as selvas urbanas de betão armado em que tentamos continuamente replantar raízes e não desistir de sonhar.

 

Para mais informações sobre o filme, por favor consultar também :

http://www.africultures.com/php/index.php?nav=film&no=17003

http://www.africultures.com/php/?nav=personne&no=9053

https://www.facebook.com/fievres?fref=ts

 

por Luísa Fresta
Afroscreen | 28 Junho 2015 | Hicham Ayouch