«A Despedida», um filme de Marcelo Galvão

O cinema brasileiro continua a oferecer alternativas de requinte estético. Marcelo Galvão e a sua equipa construíram esta narrativa baseada numa história real. As narrativas estão sempre ancoradas na realidade, ora servindo-se de uma única história, ora bebendo de episódios díspares, ora recriando, ora ficcionando sobre um fato, sobre uma probabilidade, sobre caminhos alternativos, sobre o insólito. Neste drama estamos perante uma história tal como foi registada pela memória e pelos sentidos de quem a viveu de perto, raiando o conto biográfico.

O elenco: Nelson Xavier e Juliana Pais dão corpo aos protagonistas com tal autenticidade que chega a apagar o seu estatuto de atores consagrados; eles são, efetivamente e apenas, o Almirante e a sua Morena, despojados de maquilhagens várias, nus e vulneráveis.

O enquadramento: O velho Almirante vive num ambiente familiar protegido e rodeado de atenções permanentes. Embora muito acarinhado, e sobretudo vigiado, ele decide, contrariando todas as regras do bom senso, aventurar-se numa saída sozinho, apenas apoiado num andarilho e na sua vontade férrea de provar intensamente o que lhe resta por viver, de fazer as pazes com a vida. Assim ele anima-se a retomar as rédeas do seu destino: porém, o seu acordar é um lento e difícil processo feito de rotinas entediantes e de desafios vários. Tudo é difícil preante as traições do corpo: sair da cama, a toma dos comprimidos, barbear-se, vestir-se, a higiene; desde os pequenos passos titubeantes, tudo nele é um ato de rebelião contra a dependência que gera o inevitável avançar da idade.

O ritmo do filme é propositadamente arrastado e permite ao espectador mergulhar a fundo no universo da terceira idade, sentir como sente o idoso, ouvir como ele (quase não) ouve, alheado do ambiente exterior pela sua surdez e pela sua condição de dependência. Mergulhar no ruído insuportável do silêncio até que se abra uma tímida porta para o mundo quando o aparelho auditivo é ativado, para o idoso e para o espectador. A descrição desta coreografia matinal é feita de forma quase rude, crua, e essa opção implica-nos a todos de maneira irrecusável. A revolta do velho já não é só dele, mas de todos nós, que assistimos, impávidos, com vontade de interferir numa cena que nos exclui.

A aventura congeminada pelo elegante Almirante é apenas uma: a determinação de atravessar esse dia intensamente e de forma autónoma, senão não vale, pois como ele próprio afirma: “só vale se eu for sozinho”. Para levar a cabo essa missão quase impossível ele terá de desvalorizar a perplexidade e o terror da família, o espanto da vizinhança, a desconfiança dos transeuntes ante a sua marcha perigosamente hesitante, com os atacadores desapertados. Gestos que poderiam parecer anódinos para alguém menos dependente, são aqui vividos com prazer e sofreguidão. O Almirante vai ao café do bairro (onde alguns já o davam como morto), e acerta antigas contas pendentes; ele levanta dinheiro de uma caixa multibanco com a ajuda de uma bela moça, expondo-se desnecessariamente a ser extorquido de maneira infantilmente fácil.    

Entretanto vai conhecendo, quiçá pela primeira vez na vida, o sabor de pequenas transgressões, junto com os rappers do bairro, “ressonhando” a sua juventude num sonho acordado a preto e branco: um homem jovem, sedutor e moreno, impecavelmente fardado de branco, enfrenta aí o velho senhor, ávido de novas e adiadas exuberantes experiências.

Depois ele toma um táxi e dialoga poeticamente com um condutor filósofo e atencioso; num clima de grande deferência e cumplicidade masculina recém-estabelecida eles discorrem sobre as mulheres, sobre o amor carnal como um imperativo. Perante o deslumbramento do mais novo, o Almirante acaba por soltar uma das suas mais brilhantes tiradas: “Na vida você pode ter muitas mulheres mas só uma pode ter você”.

Essa corrida conduz o idoso a um amigo de sempre (amigos desavindos mas não esquecidos); eles caem num abraço definitivo (“não tem depois”), daqueles abraços que resolvem. E numa linguagem muito própria de machos os dois amigos entendem-se e choram, sangrando por dentro, como só os homens sabem chorar.

O amor como princípio e fim de tudo: Finalmente o velho senhor vai até à casa onde conhece cada canto e cada ave. Usando a sua chave retirada do esconderijo ele entra e toma posse do seu mundo, dos seus objetos, do seu amor. Quando a Morena (Juliana Pais) regressa a casa é surpreendida pela presença do seu homem, a quem acarinha, assustada, com gestos apaixonados, desvairados, numa mescla de respeito, imenso afeto e temor. O encontro de ambos é vivido com uma intensidade transbordante, num clima de sensualidade que ultrapassa todos os limites da imaginação. Há um pudor intrínseco, um pacto de reserva e silêncio que torna tudo mais excessivo e urgente. Não se pode adiar o amor, o desejo, a morte. É muito mais desafiante amar quando o caminho é curto, estreito e conduz ao abismo inevitável da noite.

Sendo embora uma insubstituível dimensão da vida, a sexualidade e o erotismo na terceira idade são ainda temas melindrosos, quase um tabu, em muitas sociedades: no entanto o assunto é aqui tratado com uma enorme contenção, proporcionando um quadro de inestimável valor antropológico e sensorial.

A mensagem subliminar ou talvez nem tanto: O autor aproveita também soberbamente esta narrativa para enumerar subtilmente muitas barreiras arquitetónicas e sociais das nossas cidades modernas, que excluem todos os que são mais vulneráveis: pela idade, pela deficiência ou pelas carências sociais que determinam a ostracização e fragilidades várias.

Fica-nos assim um filme belo, profundo e luminoso, para sentir o valor dos dias na pele de um homem idoso decidido a usufruir da vida até ao último instante de lucidez, antes da Despedida.

 

 

 

 

 

 

por Luísa Fresta
Afroscreen | 15 Agosto 2015 | Marcelo Galvão, «A Despedida»