"Nunca me faltou o sonho de expor na minha terra", entrevista a Nú Barreto

Manuel Jerónimo Barreto da Costa de Oliveira, ou simplesmente Nú Barreto. Nascido no ano de 1966, em São Domingos, a norte da Guiné-Bissau é, sem dúvida, o artista plástico guineense mais relevante internacionalmente. Participou em bienais, feiras de arte, exposições coletivas e individuais em vários países de África, Europa, América e Ásia. Vive em França desde o ano da queda do Muro de Berlim, 1989, embora não tenha relação direta com o facto. Lá se graduou pela École Nationale des Métiers de Image em 1996. Conhecido pela versatilidade e multidisciplinaridade artística, mistura de cores em que o vermelho e o cinzento ganham destaque, pela reciclagem de objetos em obra de arte, Nu Barreto procura, através de pintura, desenho, fotografia e vídeo, retratar a condição do ser humano no mundo contemporâneo, com especial enfoque nas situações sociais e políticas no seu país e no continente africano. É desta faceta afro-centrada do artista que procuramos compreender nesta entrevista.  

A sua obra circula nos países europeus, em muitos países de África, alguns da América e Ásia. Como avalia a divulgação dessa mesma obra no seu país, Guiné-Bissau?

É uma profunda dor que arrastamos ao longo do tempo, esperando por tão almejada situação diferente, mas que, pelos vistos, permanecerá um horizonte a conquistar. Tem havido uma luta árdua em tentar organizar algo no nosso continente e acaba sempre por não ter impacto desejado ou nunca acontecer. Talvez abria uns parênteses e registar algumas exceções dos países do continente, onde, apesar de tudo, se consegue dar voz às Artes Plásticas. Há onde exista alguma consideração ao nosso trabalho. 

O caso mais preocupante é obviamente o nosso. Confesso que o atravessar das inconstâncias rotativas não permitem o sossego das consciências e a projeção das forças vivas, explorando as capacidades intelectuais, içando o país para o patamar merecido. A estagnação do processo embarca, infelizmente, todo um dinamismo à volta do desenvolvimento duma sociedade. Isto é essencialmente a lamentação com que me deparo desde que sou artista. Aguardamos melhores instantes para um renascer cultural nosso. Dentro dessa conjuntura e as suas peripécias, tenho que agradecer as redes sociais pelo papel que me têm desempenhado. Acho que foi por essa via que muitos guineenses tiveram acesso às minhas criações artísticas. Não existe nenhuma iniciativa de divulgação do meu trabalho ao nível nacional, infelizmente! O facto de viver na diáspora e a lacuna de conhecimento implicam diversas complicações para certos projetos. Daí me sentir vítima do meu próprio destino. Continuo optimista, acreditando que um dia terei a sonhada ocasião de expor e partilhar o mundo meu na minha Guiné, em óptimas condições, obviamente.

Já pensou em fazer uma exposição em Bissau ou noutro lugar do país, mesmo sabendo do enorme desafio que isso acarreta? Como é que imagina essa experiência?

Nunca me faltou o sonho de expor na minha terra. Como foi supracitada, houve tentativas que falharam, infelizmente. Já lá somam vinte e dois anos em que o primeiro convite me foi feito, mas até hoje aguardo pela preciosa e sonhada exposição. De mais a mais, estou convicto de que será por iniciativa pessoal, a realização da exposição sonhada. A “notoriedade” vem complicar e adiar ainda mais o sonho, pois o nível da exigência actual é de considerar. Realizei um projecto fotográfico intitulado Gritos de Desabafo – gritos esses, espelhando as nossas incongruências – que apresentei a pessoas que conseguiram convencer-me da utilidade da sua realização. Não me desviei dos objectivos do projecto, mas as inconstâncias rotativas evocadas contribuem para o levantamento duma série de questões sobre a mostra e a sua pertinência, num estado oposto da realidade. Por enquanto, não há nenhuma possibilidade de exibição. Trabalhamos no projecto, por enquanto.

O projecto fotográfico deverá ser exposto nos outdoors da cidade e eventualmente nas regiões (se as condições permitirem), dando acesso ao povo de partilhar um olhar conciso de um cidadão nacional, preocupado com o rumo do bem comum. Seja como for, será certamente uma experiência inesquecível.

Sei que tem uma forte ligação com o seu país e com a realidade do continente africano. Alguns dos seus desenhos partem de objetos dispersos, de corpos humanos deformados e em posições invulgares… posso citar a representação que fez da desunião dos povos e Estados africanos através de uma bandeira; de quadros que sugerem o movimento para interior ou exterior de uma garrafa, ou mesmo o fechamento no interior de uma garrafa; de representações de cadeiras ora partidas, ora viradas para baixo, ou pintadas de vermelho. São alguns exemplos que sugerem uma problematização da vivência sociopolítica na Guiné-Bissau e na África. Qual é o significado que a Guiné-Bissau e a África têm no conjunto da sua obra? E como é que explica a ligação com as suas raízes através da sua criação artística, mesmo criando a partir da diáspora?

A presença da Guiné na minha escritura artística tem um lugar de destaque, sendo uma fonte de inspiração de onde extraio elementos, e bem das vezes proverbiais, para a construção duma narrativa. É tão natural que acaba por ser um vício. Acredito que servirá sempre que possível, facilitando as leituras das minhas escrituras. É uma sorte, confesso. 

Em certos casos a Guiné acaba por ter semelhanças com outros países do continente africano. Ou seja, a similitude das inconstâncias sociopolíticos que envolvem e atrasam o continente são de reciprocidades entre os seus pontos cardeais. Falando ou escrevendo algo baseado nas referidas problemáticas, envolvemos duma maneira geral as preocupações do continente. De certa forma, acabamos sempre por nos preocuparmos com as nossas invariáveis incertezas. Sendo extremamente crítico com tudo quanto é mal nas nossas sociedades, não perco instantes de elogios quando aparecem, porque África tem coisas boas, e de sobra. Uma das obras em bandeira cujo título é La Source/A Fonte, exprime, duma forma extremamente gritante, o espelhar do valor intelectual. É o perfeito símbolo do elogio evocado hoje na coleção do museu negro-americano de Smithsonian DC.

 Le Source/A Fonte, 2018. Le Source/A Fonte, 2018.

 

Dois dos maiores escritores de África usaram recentemente as suas pinturas para a capa dos seus livros – refiro-me a Tony Tcheka, guineense, e ao angolano José Eduardo Agualusa. O que representam para si essas escolhas e qual a relação das suas criações com outras formas de arte?

Não escondo a gratidão e orgulho vividos quando recebi a solicitação desses dois escritores que marcam de forma indelével o nosso tempo. Seria impossível uma outra leitura, seja ela complexa ou ligeira, mas a relação entre a arte que eu faço e o que eles fazem (Artes Plásticas & Literatura), é no sentido de que convergem numa preocupação comum para com as sociedades onde giram as histórias que contamos. Tanto o Tony Tcheka como o José Eduardo Agualusa – e eu, por fim – inspiramo-nos na mesma fonte, a da sociedade e as suas dissonâncias. As dores e as jubilações são fenómenos que nos abalam e nos transcendem. A convergência da ideologia facilita a relação entre as artes. Daí, no meu ponto de vista, acreditar na fusão entre artistas com linguagens profundas e inovadoras. 

As minhas criações abraçam dinâmicas criativas que partilhem as preocupações da sociedade na qual labutamos para um mundo melhor. A finalidade é similar, diferencia o modo operando. 

Em várias das suas entrevistas recentes falou da sua dinâmica criativa durante os tempos de confinamento imposto pela pandemia da Covid-19. Tenho impressão de que algumas dessas criações alertam para os problemas expostos pela própria pandemia. Posso citar, por exemplo, a representação que fez de médico com estetoscópio numa dessas criações e um conjunto de recriações em torno do estado de solidão. Que mensagem procura transmitir com essas criações em específico?

O confinamento de 2020 foi um instante atroz e inquietante para o mundo. Foi um imprevisto imposto às nossas vivências. Surgiu-me, nessas condições, a ideia de imposição dum desafio que consistia em desenhar diariamente (uma caderneta de bordo), tudo quanto me passava pela cabeça, o que finalmente deu uma centena de desenhos intitulados Traços Diário (I, II, III). Nesta primeira fase, preocupou-me bastante as consequências do confinamento, assim como o retorno da Humanidade. Durante a criação dessas obras num contexto vedado de particularidades, sendo artista, o confinamento/isolamento não era algo de novo. A minha vida é completamente isolada, exigida pelas necessidades profissionais. Embora essa especificidade do meu trabalho, acabei por sentir, numa determinada altura, o peso do confinamento, mesmo com o privilégio de ter tudo à minha volta.

Na segunda fase dos desenhos em torno da problemática do confinamento, interessei-me pela questão da liberdade dos seres num espaço confinado. Questionando: para que serviria um pequeno ou grande espaço sem liberdade? A ideia é propor ou abrir um diálogo em torno da questão do Excesso e do Escasso. 

Abordando as imperfeições dos Homens, a produção deu uma exposição individual intitulada “L’Imparfait et l’Impératif”, na qual foi mostrada a obra Traços Diário I.

Que apreciação faz da condição das artes plásticas na Guiné-Bissau: dos artistas e do diálogo entre as obras e o público?

É extremamente árduo concluir ou até opinar num campo vazio. Pode até parecer algo fácil, mas a inexistência de factos comprovativos afunda qualquer otimista. Evocamos um país onde a Cultura não é a preocupação fundamental de qualquer um dos que chamamos de governantes. O Estado é totalmente ausente no que refere ao seu dever para com o povo. Não existem infraestruturas culturais, tanto educativas como promocionais. Por mais que sejam organizados, os artistas guineenses, na Guiné, vivem num “anonimato” absurdo, onde só se salvará o ajudado. É de certeza uma caricaturada forma de ver a situação. Não existe sequer um espaço cultural, onde os artistas poderiam exibir as suas criações. Num país sem nenhum Centro Cultural Nacional, nenhum museu e nenhuma galeria, é complicado estabelecer qualquer que seja diálogo entre o vazio e o público. Anedoticamente, vira um cemitério sem campa. Talvez uma curta história verídica para ilustrar o grau do sofrimento: Encontrei uma senhora que me reconheceu por me ter visto na televisão, dia antes. Depois de uma longa conversa sobre o estado das artes na Guiné, disse-me: «Não é que somos todos iguais. O facto de não haver, não significa que somos todos iguais, mas precisamos para a nossa instrução. O silencio expõe a ignorância». 

Rejected, 2021Rejected, 2021

Tem particular admiração por algum ou alguma artista guineense da sua área? O que lhe impressiona no conjunto da sua obra?

Tenho uma grande admiração e consideração pelos esforços consentidos e os empenhos de cada um, fazendo face às dificuldades da vida de artista que abraçam, num contexto de extremo abandono. Juntos evoluímos, de forma a elevar a arte guineense no patamar merecido. Não nos faltam talentos, só nos faltam valentes.

Fonte referida: Nú Barreto - Overview | Galerie Nathalie Obadia 

 

Artigo produzido como trabalho final do curso Comunicação Cultural para os PALOP, promovido pela Fundação Calouste Gulbenkian, coordenado por Marta Lança (BUALA).

por Sumaila Jaló
A ler | 13 Fevereiro 2022 | afrodiáspora, Guiné Bissau, Nú Barreto, pintura, Sumaila jaló