État de lieux: França 2018, o debate sobre o passado colonial

Estamos em meados de 2018. Emmanuel Macron é o Presidente de França. Há  um ano declarou  que a colonização foi um “crime contra a humanidade”. A crítica de Macron contra a colonização foi feita no contexto de uma  visita à Argélia, território dominado pelos franceses ao longo de  114 anos, de 1848 a 1962. Na Argélia o Presidente francês evocou a necessidade de “olhar de frente para esse passado”, pois como já advertira Benjamin Stora,  em 1991, no seu livro La gangrène et l’oubli, esse “esquecimento” tomou a forma de “gangrena” na sociedade francesa. O que por longos anos foi chamado de “eventos” na história francesa é hoje considerado a “maladie algérienne” – a doença argelina. A difícil relação colonial entre a França e a Argélia causa até hoje um mal estar nos cidadãos franceses que possuem uma ligação direta com esse passado: pieds-noirs, judeus repatriados, militares, harkis, franceses de origem argelina, imigrantes argelinos…
Passou  meio século desde o fim do Império colonial, contudo a França continua assombrada por esse passado. É o que se revela sobretudo na sua relação com o Outro e a consequente falha nos modelos de integração social. Para se diferenciar dos seus predecessores, Macron afirmou que a dinâmica da língua francesa é hoje mundial – e talvez mais africana que francesa. Contudo, o que dizer do discurso presidencial e de suas ações? Já em janeiro o único teatro de criação francófona em França, Le Tarmac, recebeu um comunicado ministerial para fechar as portas e ceder seu espaço a outro teatro. Ao mesmo tempo, a revista “Africultures”, que desde 1997 documenta as culturas africanas e diaspóricas e que constitui hoje um arquivo fundamental para o estudo das manifestações artísticas contemporâneas – corre o risco de  desaparecer por problemas financeiros. A Agência Francesa para o desenvolvimento (AFD) perdeu metade de seu orçamento.
Principales productions d'origine végétale | 1931 | Michel Georges Dreyfus (cortesia do Museu Quai Branly)Principales productions d'origine végétale | 1931 | Michel Georges Dreyfus (cortesia do Museu Quai Branly) Percebemos que não podemos contar com iniciativas governamentais para melhorar o debate sobre o passado colonial francês. Por isso, convém assinalar algumas iniciativas, como a da Villa Gillet1 que, em colaboração com o Teatro Nacional Popular (TNP) de Lyon, organizou em fevereiro de 2018 dois dias de debate sobre as escritas pós-coloniais em perspectiva comparada. Escutar o ponto de vista francês e os contrapontos das experiências belgas e holandesas em torno de três questões principais – “Expor o fato colonial”, “Contra o esquecimento : lembrar-se da violência colonial” e “Atualidade do passado colonial : restaurar um discurso fragmentado ” – foi essencial para perceber que a transmissão da memória do fato colonial e sua discussão ganham muito mais interesse quando discutidos de maneira comparada e situada e não isolada.
Esse debate, embora aberto ao grande público, não tem o mesmo poder de alcance como a exposição Peintures des lointains, que ocorre no museu do Quai Branly de 30 de janeiro de 2018 até 6 de janeiro de 2019. As obras expostas foram produzidas entre os séculos XVIII e XX. Entretanto, o que nos incomoda é o eufemismo utilizado para evocar essas “pinturas longínquas”, de territórios ditos “exóticos” e que foram colonizados pelos franceses. Trata-se de uma coleção pouco conhecida, exatamente porque toca no âmago de um passado colonial que suscita atualmente grandes controvérsias na sociedade francesa. Grande parte das obras expostas vinham do museu colonial, criado em 1931, no Palácio da Porte Dorée. Com a descolonização em marcha, essas obras foram para um o depósito e somente em 2006 chegaram ao museu Quai Branly2. As imagens exóticas que vemos ao longo da exposição revelam a superficialidade da percepção sobre as outras culturas. Não raro essas imagens se assemelham, embora ilustrem diferentes territórios – são imagens deformadas sobre o Outro. Seria adequado dizer que essa exposição exprime a maneira como a França faz seu debate público ainda hoje?
Ora, na grande  bienal no Instituto de France, Rencontres Capitales, cujo tema era a memória e as suas mutações, não houve espaço para a questão colonial. Foram dois dias de programas, com especialistas oriundos de diversas áreas. Falou-se de história, falou-se de guerra, falou-se de cultura e patrimônio. Não se falou da questão colonial francesa. Reflexo de uma instituição enferrujada cujos participantes são em sua maioria pessoas de mais idade ? Reflexo da desconsideração das pessoas com mais poder em França em relação ao passado colonial?
Pelo que podemos observar a partir desses quatro exemplos pontuais, a vontade de se discutir criticamente a história francesa é ainda minoritária. É possível observar discussões sendo feitas no mundo universitário, com encontros e congressos, mas a memória coletiva precisa de um debate público de qualidade que é ainda  muito incipiente e genericamente desinformado, apesar do dito desejo do governo atual de reparar os destroços. As fraturas estão expostas e ainda não foram tratadas, apenas remediadas.

 

Artigo produzido no âmbito do projeto de investigação MEMOIRS – Filhos de Império e Pós-memórias Europeias, financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (nº 648624), Programa Europeu para a Investigação e Inovação Horizonte 2020.

por Fernanda Vilar
A ler | 29 Junho 2018 | argelia, colonialismo, frança, guerra, memória, Passado