De Emmett Till a Giovani Rodrigues: a política de memória nos tempos de Covid-19

Emmett Till, vive!

Emmett Till. Mississippi, 1955. No mês de agosto completará sessenta e cinco anos do brutal assassinato de um rapaz de catorze anos, no Estado de Mississippi, nos EUA. Emmett Till, depois de acusado por uma mulher branca, por um conjunto de atos, entre eles assobios, seria sequestrado, brutalmente torturado, assassinado e lançado ao rio Tallahtchie. Três dias depois, seria encontrado neste rio num estado praticamente irreconhecível.

Aquele assassinato seria apenas mais um, na longa lista de linchamentos nos estados sulistas norte-americanos. Mas não o foi! Felizmente, não o foi! Uma razão fez deste caso algo inédito… não se trata da barbaridade do caso em si, obviamente. Barbaridades daquela natureza não faltam na história dos EUA, assim como de outros territórios que vive(ra)m a escravatura, o capitalismo racial e o racismo estrutural! 

Emmett TillEmmett TillA história ganhou um contorno radicalmente diferente quando a mãe do “Bobo” (nome pelo qual Till era afetuosamente chamado pela família) decidiu, corajosamente, manter o caixão aberto durante o velório… Mamie Till-Mobley, mãe de Emmett, disse na altura: “Quero que o mundo veja o que fizeram com o meu bebé”. Trata-se, indubitavelmente, de um ato revolucionário! A determinação de uma mãe que, apesar da profunda dor, acreditou que aquela atitude seria fundamental para reforçar o sentido da batalha contra o supremacia branca. A coragem da Mamie deve continuar nutrindo as nossas lutas, tanto as de hoje como as de amanhã!

É desnecessário afirmar como tal “fenómeno” influenciou a luta pelos direitos civis (que, mais tarde, Malcolm X, por exemplo, diria tratar-se de uma luta por direitos humanos, uma vez que nem esses lhes eram reconhecidos, até então!)… Exemplo disso foi a atitude forte, inabalável e radical de Rosa Parks, ao ter negado levantar-se do seu lugar no autocarro para cedê-lo a um branco. Confessou, posteriormente, que, ao lembrar-se de Till, decidiu não se levantar. 

Mais de seis décadas se passaram. Ainda duras, necessárias e vitais têm sido as nossas lutas em defesa das nossas próprias vidas. Forte, inabalável e omnipresente é a supremacia branca. Nos EUA essa realidade, tal como em 1955, continua evidente. Do seu atual presidente às estatísticas de brutalidade policial… do encarceramento em massa à prisão de Mumia Abu Jamal… e “Black Lives Matter”.

 

Pedro Gonzaga vive!

Quando se pensa e se fala de supremacia branca, racismo e capitalismo racial, os quatro cantos do mundo devem ser tidos em conta. Além dos EUA, o resto do mundo tem de ser considerado. Da mesma forma, a racialização e, por conseguinte, a desumanização das vidas e corpos negros foi/é um projeto político global. Projeto esse que transcende todos os territórios imagináveis, atingindo o cume através do genocídio negro (físico, cultural, mental, espiritual e ontológico).

O Brasil é outro país onde esse genocídio sempre esteve presente, apesar de ter sido camuflado por muito tempo através do mito da “democracia racial”. Prova paradigmática dessa ocultação é o “espanto” que causou a “tese” do grande Abdias Nascimento, sobre o genocídio do negro brasileiro, aquando da sua apresentação, em 1977, no âmbito do II  Festival Mundial das Artes Negras, na Nigéria. 

Pedro GonzagaPedro GonzagaFalemos, então, de um caso concreto. A catorze de fevereiro do ano passado, um jovem de dezanove anos foi brutalmente assassinado, depois de ser asfixiado por um segurança no supermercado Extra, no Rio de Janeiro. Pedro Gonzaga, acompanhado pela mãe, foi abordado agressivamente por um segurança, que lhe aplicou um “mata-leão”, por alguns minutos, enquanto ia perdendo a capacidade de respirar. As pessoas presentes foram chamando atenção ao segurança que o Gonzaga estava ficando sufocado. A voz maior, naquele momento, foi da própria mãe, Dinalva Oliveira, gritando que a mão do jovem filho estava ficando roxo. Mesmo assim, o “direito” de matar falou mais alto. 

Dinalva teve que presenciar cada segundo daquela brutalidade de forma impotente, não obstante toda dor e revolta. Dá para imaginar a dor sentida por aquela mãe? Dá para imaginar os efeitos daquele terror psicológico para aquela mãe? E como fica o filho de Gonzaga, quando perguntar pelo pai?

… Gonzaga simplesmente parou de respirar… deixou de sorrir… de sonhar… de existir… 

Gonzaga deixou um filho… o filho perdeu o pai… a mãe perdeu o seu filho…

E a “justiça”? Permanece tão racista como aqueles criminosos que eliminam a vida de negras e negros. Afinal de contas a “justiça” é, também, parte do mesmo sistema genocida. O genocídio é, indubitavelmente, um projeto político, definido e posto em prática pelo próprio sistema capitalista, racista e patriarcal. O que esperar então dessa “justiça”?

 

Giovani Rodrigues, vive!

A capacidade de negar o racismo, a brutalidade das instituições do Estado (mormente a polícia), a violência (física e psicológica) dos brancos em relação aos negros (e não-brancos), não é uma característica peculiar do Brasil! Longe disso. Portugal é um outro exemplo. Ele tem estado, há séculos, a negar o seu passado e o seu presente!

Aquele país europeu tem sido incapaz de assumir tanto o seu passado escravocrata e colonial como o seu presente racista e neocolonial. Tentou sempre, de todas as formas, negar o óbvio: a sua violenta e criminosa presença no além-mar. Aquando da luta de libertação nas suas então colónias (que, posteriormente, numa manobra demagógica, designou de “províncias ultramarinas”), buscou argumentar que não havia motivos para tal, uma vez que, supostamente, tudo estava bem. Muitos dos argumentos usados na altura são, em larga medida, semelhantes às palavras usadas, hoje, pelo seu atual presidente da República, replicadas pelos seus “papagaios” nas neo-colónias. 

Giovani RodriguesGiovani RodriguesEntretanto, atualmente, no “mundo digital” ficou mais difícil ocultar/camuflar o mundo real. Apesar de todas as manobras… todos os discursos… “sorrisos” e “beijos”… Exemplo disso é o “caso esquadra de Alfragide”. A mediatização do “caso”, os relatos e o próprio processo de julgamento serviram para pôr um basta naquelas narrativas suavizadoras e românticas do passado e, sobretudo, do presente.

A brutalidade no bairro da Jamaica foi/é mais um elemento.

E a violência contra Cláudia Simões na paragem de autocarro? Mais uma na longuíssima lista.

No entanto, há um caso que, pela sua própria natureza, provocou uma enorme indignação, revolta e mobilização. A indignação foi de tal ordem que em várias cidades as pessoas saíram às ruas para protestar. Falo do bárbaro assassinato do jovem Giovani Rodrigues, jovem de vinte e um anos, na cidade de Bragança. Natural dos Mosteiros, ilha do Fogo, em Cabo Verde, encontrava-se há poucos meses naquela cidade para frequentar um curso… 

Giovani, juntamente com mais três amigos, todos cabo-verdianos, foram atacados violentamente por um grupo armado de quinze pessoas. Giovani, devido ao ataque que sofreu, acabou por morrer, depois de ter resistido duramente por um período de dez dias. 

Portanto, os sonhos daquele jovem, que mudou de país para fazer um curso superior, foram brutalmente interrompidos. Além da vida de Giovani, outras tantas foram radicalmente alteradas. A vida dos seus três colegas, também vítimas da mesma violência, ficará marcada pelo trauma daquilo que sofreram e, principalmente, pela perda irreparável de um amigo. Quanto ao pai, além da perda do amado filho, em modo trágico e bárbaro, também carregará marcas da forma como o processo foi tratado, sobretudo pelas autoridades policiais. Tudo isso sem esquecer a dor de uma mãe, distante, cheia de tristeza e com sentimentos de profunda impotência.

E a “justiça”? Muito pouco se tem feito! No entanto, os dirigentes cabo-verdianos, por exemplo, desde o primeiro momento, garantiram ter a “total confiança na justiça portuguesa”! Parece-me que essa confiança é inabalável… não há casos esquadra de Alfragide, brutalidade nos bairros, violência contra as “Cláudias” que a mude… É a profunda confiança desses enteados no padrasto.

A Polícia Judiciária muito cedo concluiu que o assassinato teve na base um “motivo fútil e não o ódio racial”. Novidade? Nem por isso! No fim do julgamento do “caso de Alfragide”, a conclusão não foi muito diferente. Afinal de contas nada que acontece em Portugal é motivado por questão racial, vive-se numa perfeita harmonia racial. Pois, o sentido de harmonia é uma vocação natural do Estado e do povo portugueses…

 

O lugar da “justiça” no contexto da supremacia branca

Os três casos referidos ao longo deste texto possuem vários elementos comuns. O modo como foram ceifadas estas três vidas diz-nos muito sobre a supremacia branca e a sua profunda ligação ao projeto genocida. As três histórias demonstram a fragilidade das nossas vidas no contexto de dominação branca. Estados Unidos para Emmett Till. Brasil para Gonzaga. Portugal para Rodrigues. Fundamentos continuam os mesmos, não obstante a diferença do tempo e do espaço.

Outro elemento comum é o “desfecho” judicial para os três crimes. No caso Emmett, os criminosos não cumpriram qualquer pena, nem foi pago um tostão. Simplesmente saíram livres do caso, mesmo tendo confessado, meses depois, que cometeram aquele bárbaro crime. 

Em relação ao Gonzaga, o seu assassino pagou uma fiança e “responde” em liberdade. Simplesmente! Apesar de toda mobilização, protesto e repúdio… 

Para Rodrigues, dos cinco suspeitos que se encontravam a cumprir a prisão preventiva, dois deles estão agora a cumprir a prisão domiciliária. Com a situação da pandemia Covid-19, tudo indica que a “justiça” portuguesa decidiu cumprir as recomendações da OMS: garantindo que os dois suspeitos ficassem em casa.

Manifestação anti-racista de homenagem a Cláudia Simões agredida em janeiro 2020 (foto de Marta Lança)Manifestação anti-racista de homenagem a Cláudia Simões agredida em janeiro 2020 (foto de Marta Lança)

A impunidade, portanto, mantém-se mais viva do que nunca.

Contudo, a luta pela justiça por parte da senhora Mamie (mãe de Emmett), Dinalva (mãe de Pedro) e Joaquim (pai de Giovani) não pode ser confundida com o sistema judicial que enfrenta(ra)m. Este, por seu turno, continua racista e ao serviço do grupo (branco) dominante. Tal como o sangue derramado demonstra a violência gerado por aquele sistema, o modus operandi das autoridades policiais e judiciais é coerente com aquele mesmo sistema! As duas partes (os crimes em si e a ação das instituições do Estado) servem a mesma agenda de dominação: controle e eliminação das vidas negras.

É fundamental que continuemos a lutar para que a justiça seja feita. As nossas mobilizações e ações não podem parar… esse sistema não nos dá tréguas. 

O aspeto central dessa luta é nos organizarmos, para que nós mesmos defendamos (By any means necessary) as nossas próprias vidas. O direito à autodefesa é simplesmente inalienável, qualquer povo no mundo tem a consciência disso (talvez sejamos o único que o ignora). Esse é um ponto incontornável, sobretudo para garantir o nosso futuro enquanto povo.

 

Covid-19 e o processo de reset da memória

Muitas pessoas têm afirmado que a atual pandemia tem estado a mexer com tudo. Da economia à política. Da sociedade à cultura. Dos hábitos alimentares às formas de entretenimento. Para citar apenas algumas esferas. Realmente, é compreensível essas mudanças, considerando a propagação do vírus e os estragos por ele causados.

Outrossim, tem sido dito que a Covid-19 veio colocar-nos todos no mesmo “barco”. Para muita gente estamos perante um vírus verdadeiramente “democrático”, porquanto o mesmo não tem feito diferenciação entre ricos e pobres, brancos e pretos, norte e sul, etc. Ainda, para a maioria, o novo “humanismo” vai ser forjado no pós-Covid-19.

A maior parte destas ideias é construída num contexto marcado, globalmente, não somente pela pandemia em si, mas, sobretudo, pelo pânico gerado, muito por conta das informações difundidas nas grandes mídias ocidentais (paradoxalmente, o Ocidente vem mostrando, de forma inquestionável, a sua fragilidade face ao vírus). 

Contudo, o que muita gente ignora é que a pandemia encontrou um mundo edificado com base na profunda desigualdade, resultado de séculos de escravização de corpos e espíritos, desumanização em todas as latitudes e a onipresença da supremacia branca e os seus efeitos. A forma como o poder foi construído e exercido ao longo desses séculos criou uma realidade concreta, que tem facilitado tanto a propagação vírus quanto a fraca capacidade de o combater. Portanto, o vírus não criou, de modo algum, esse mundo estruturalmente desigual, mas tem, isso sim, aproveitado da existência deste para fazer o seu respectivo “trabalho”.  

Infelizmente…

Os nomes relatados, neste ensaio, fazem parte de um universo enorme de vítimas deste sistema criminoso e desumanizador, que vem alterando a vida, as relações sociais e a história deste planeta, incluindo todas as formas de existência. Esse sistema não foi criado pela Covid-19. Aliás, em vários países do mundo essa pandemia tem mostrado o quão perverso é esse sistema: pensemos nos dados em relação às vítimas (negras) de Covid-19 nos EUA ou no Brasil, os africanos que denunciaram a forma como foram abandonados nos hospitais italianos, sem falar no dia-a-dia de inúmeros africanos nalgumas províncias chinesas.

A pandemia tem, sim, retirado o “véu” criado por esse sistema, para esconder a sua face criminosa e genocida.

Não podemos deixar que o atual momento sirva para causar um apagamento da nossa memória histórica. Se isso acontece, nem a situação atual estaremos aptos para compreender, e ainda menos o passado e o futuro. O direito à memória não pode ser alienável. A memória é intrínseca à nossa humanidade, é parte inerente à nossa própria existência. O colonialismo, desde sempre, tentou controlar e apagar a memória histórica dos povos colonizados. Arquivos queimados, destruídos, adulterados constituíram uma parte essencial do projeto colonial. 

Enquanto a Covid-19 se vai propagando, novos projetos coloniais vão sendo forjados e implementados. Sendo assim, negar o apagamento da nossa memória é um ato de resistência nos tempos de Covid-19. Lembrar Emmett Till é um ato de resistência! Lembrar Pedro Gonzaga é um ato de resistência! Lembrar Giovani Rodrigues é um ato de resistência!

 

por Alexssandro Robalo
A ler | 8 Maio 2020 | anti-colonial, Brasil, Emmett Till, EUA, Giovani Rodrigues, Pedro Gonzaga, Portugal, racismo