Corpos migrantes à procura de definição, sobre "Dialecto" de Felipe Romero Beltrán

Na sala escura do MNAC – Museu do Chiado, a peça Instrução (2022-24) é composta por três ecrãs onde são projetados vídeos. Uma mulher mexe as mãos nervosamente, um torso respira, um corpo puxa e empurra outro corpo, um rapaz fala em espanhol para alguém ao seu lado, a câmara aponta para ele. Vai explicando a conversa que teve com o pai sobre vir para Espanha em vez de ficar em Beni Melal. Adormeceu na viagem até Tanger. Acordou para se fazer ao mar.


Tanger, Alcácer Quibir, Beni Melal, El Jadida: lugares de passagem quase todos. Lugares de espera e de partida para, na maior parte dos casos, não voltar. Em 2020, Bilal Siasse, Habib Houari e Youssef Elhafidi encontravam-se em Sevilha num centro temporário: atravessado o estreito, tinham sido interceptados pela polícia e colocados à guarda das autoridades. Eram menores.

Nascido em 1992 na cidade de Bogotá, o artista Felipe Romero Beltrán atravessou o Atlântico com dezasseis anos e uma bolsa de estudos. Desde então, não mais regressou e, após ter vivido em Espanha, hoje tem residência em Paris. 

Conheceu estes rapazes marroquinos em 2020, o início do projeto Dialecto mais alargado, aquando de um convite para falar, também ele, da sua experiência de sul-americano na Europa. Porque apesar da fachada cinzenta e enrugada, dos regulamentos e burocracias infinitas, e do evidente crescimento das forças iliberais, o velho continente nunca deixou de ser um polo de atração. 

À pergunta se é um artista mais da imagem ou mais do corpo, o simpático mas discreto Felipe, responde prontamente “Da imagem! Sou um fotógrafo. Há sempre uma câmara entre mim e o objeto que me interessa.” Hoje com 33 anos, e apesar de ter passado metade da vida fora da Colômbia, ainda se sente colombiano na sua prática artística. “Os fotógrafos colombianos trabalham a partir do social” como provam os percursos de Juan Arredondo ou Federico Rios Escobar, para dar apenas dois exemplos, acompanhando as crianças-soldado na Colômbia ou os migrantes que se aventuram na selva do Darién para chegarem ao Panamá. Apesar de serem fotojornalistas, as afinidades com o trabalho de Felipe são evidentes.

Há 25 anos, em Marrocos, miúdos como estes andariam agarrados a sebentas de três ou quatro colunas como se fossem os telemóveis de hoje. As mesmas palavras em árabe, espanhol, francês e inglês que repetiam, aprendiam e experimentavam com os estrangeiros. Também gostavam de atirar “Figo! Figo!”, ainda era o tempo dele, e, estranhamente, “Cascais! Cascais!”. Percebo agora que talvez estivessem a repetir o nome do navegador andaluz do século nono, Khashkhash. Coisas que se aprendem nas escolas e não nos deixam.

Enquanto fala num espanhol quase perfeito, o rapaz impulsiona a bailarina de um lado e para o outro. Atenta, Lúcia deixa-se levar. “Una ola desde la izquierda, otra desde la derecha, ahora una viene desde atrás y otra desde el frente”. A dança das ondas é tudo menos inocente: Bilal está a coreografar o calvário da sua travessia. O jogo do puxa e empurra também pode ser a versão literal dos labirintos burocráticos a que tantos/todos os migrantes estão sujeitos. Quem sabe se uma vaga forte não é mais simples de lidar que uma enxurrada de papéis!

No vídeo surge outro rapaz, Mohamed. Fala calmamente do encontro com a polícia espanhola. Não houve maus-tratos mas é bom ter sempre muita atenção aos pormenores. Convém saber falar, saber o que dizer, comportar-se porque encontros fatídicos são comuns. 

Hassan, amigo de Aissa, que o diga: sobreviveu para contar a história de um desses encontros. Aissa não. Ambos foram apanhados em Olhão num estado alterado, abrindo produtos num supermercado. A polícia veio, e embora sem queixa formalizada por parte da proprietária, levou-os algemados para uma zona afastada da cidade. Para uma aula de cidadania talvez. 

Hassan adormeceu no carro patrulha e foi deixado numa vala de estrada. Aissa, provavelmente mais vocal e insolente, foi espancado no corpo e na cabeça. Sempre algemado. Resistiu em coma durante 19 dias no hospital de Faro. Depois morreu.

Destacando com entusiasmo Adilson, ópera criada e apresentada por Dino D’Santiago a convite da BoCA, o curador John Romão sublinhou o aspeto de, na edição deste ano, se refletir bastante sobre a ideia de regulamentação. 

Felipe Romero Beltrán e John Romão Felipe Romero Beltrán e John Romão

Sem louvar a burocracia, dir-se-ia que a sala de espera, esse estádio intermédio onde se arrastam os corpos e as identidades, tem também potencial para ser um espaço de criação, um lugar excecional de pensamento e questionamento, artístico e político. 

Nesse sentido, as artes visuais e performativas, a música e o cinema, com os seus comentários algo mordazes, mais ou menos explícitos, são essenciais para expor a realidade dos sem papéis, para documentar os indocumentados, e tomar consciência que estes corpos existem e exigem dignidade. 

À quinta edição, a BoCA – Bienal of Contemporary Arts internacionaliza-se. Depois de Lisboa e Porto, Braga, Almada e Faro, a ponte é com Madrid e sob o título Camino Irreal. A escolha teve origem no conceito de Camino Real, uma rede de estradas em Espanha, algumas milenares, que a Coroa em gesto propagandístico e de controlo territorial, instituiu tanto aqui ao lado como nas colónias. A operação linguística procura inverter essa tendência de homogeneização e centralismo, colocando a Bienal na senda da alteridade, da escuta do outro, o que está afastado da grelha, fora da estrada ou pelo caminho. 

Em 2019 seis marroquinos vindos de El Jadida, antiga Mazagão, apontados a Cádis arribaram a Vila do Bispo, no Algarve. Todos pediram asilo mas só o mais novo com 16 anos foi considerado. Abderazzak era um rapaz pescador e em 2025, já maior, continua pescador. Não pôde voltar a Marrocos para enterrar a mãe doente. Depois de grandes dificuldades de adaptação, vive em Sesimbra, e embora possa ter nacionalidade portuguesa, ainda se encontra no limbo particular daqueles que não conseguem existir em lado nenhum. Em agosto deste ano, 38 migrantes vindos de Marrocos chegaram ao Algarve. Desde 2020 é um total de 175 pessoas a chegar a Portugal desta forma. Não serão muitas mas todas têm corpos e rostos, nomes e histórias. 

Voltando aos vídeos, a pergunta que se coloca é: quais são os movimentos necessários para cruzar uma fronteira? Num outro ecrã, os corpos dos bailarinos Lúcia e Kim procuram a naturalidade do gesto e a mímica do momento da passagem. Nas fronteiras, “estas pessoas têm que andar depressa embora carreguem peso”. Vários pesos, medidos não só em quilogramas. Outro paradoxo, de entro dos obstáculos e “irrealidades” que estes corpos atravessam e são atravessadas por eles. Um olhar preguiçoso argumentaria que se está perante uma certa estetização do migrante. Mas não será justamente a representação da componente física e a tentativa de replicar a violência nos corpos-migrantes, um modo eficaz de envolver os corpos não-migrantes? 

Nas Carpintarias de São Lázaro, a peça Recital (2020), consiste em três projeções vídeo fechadas nas caras de três rapazes marroquinos. Leem o índice e as primeiras páginas da lei da imigração espanhola. Percebe-se o misto de impossibilidade, esforço e luta na tentativa de compreenderem e se reverem nessa lei. Mesmo que com alguma fluência no idioma espanhol, há partes que não percebem de todo. Contraste e tensão entre um corpo que tenta definir-se a si mesmo através de um documento legal. Os enquadramentos de Recital são tipicamente retratos, sublinhando o sentido legalista da obra. Planos que mostram sobrancelhas arqueadas e expressões por vezes confusas por oposição a Instrução onde os planos são mais abertos para captar o movimento dos corpos. 

Inicialmente com a lei espanhola, a instalação intitulada “Esta é a tua Lei” (2025) foi adaptada para a bienal, com a lei da imigração portuguesa. “Quando comecei a ler a lei, ela tenta definir um corpo. Esta é a grande pergunta: como definir um corpo migrante? Dei-me conta que há muitas decorações no texto, muitos bordões de linguagem”. O artista rasurou tudo o que não tivesse que ver com a definição de um corpo per se. Como um predador que procura cercar e aproximar-se, a lei não consegue definir esse corpo, mesmo que “vá sendo polido, ele sempre escorrega”. Um exercício de novo falhado na procura da verdadeira estrutura que define um migrante em Portugal. 

O aspeto particular é que, tanto no caso português como no espanhol, são os corpos europeus que votam a lei, que votam em quem cria a lei, que votam para uma lei que não se aplica aos seus corpos. A lei de 97 páginas e foi impressa cem vezes, o que dá 9700 páginas. As folhas estavam ali para serem levadas, se quiséssemos. Eu quis. Afinal, esta é a minha lei. 

O que está riscado, trancado e intensificado a negro é a especificidade do migrante, esse corpo mais denso que a letra e mais forte que a lei. É como se, de um todo, fossem retirados tecidos, órgãos, carne e sangue, e ficasse apenas a estrutura óssea, uma pífia figuração da autoridade, do furor regulatório. Assim, torna-se clara a dupla vertente. Por um lado, a confirmação do absurdo desta lei (de todas as leis?) que, ao não saber definir o corpo destinatário, impossibilita a sua compreensão, organização ou proteção. Por outro, partindo exatamente dessa falha, vai materializando, num processo autofágico da linguagem jurídica, um corpo mais autêntico e próximo da realidade, com todas as suas nuances e contradições.

Feita entre 2020 e 2023, a série fotográfica Dialecto acompanha a vida de Bilal, Habib e Youssef de maneiras diferentes mas complementares. As fotografias têm um caráter direto ao documentarem a espera de três anos para obtenção de documentos legais em Espanha. Ao mesmo tempo, é feita uma mise-en-scéne teatral do quotidiano, das memórias e experiências que os rapazes tiveram ao atravessarem o mediterrâneo até chegarem ali. Nas Carpintarias de São Lázaro podemos ver apenas a edição em livro do trabalho, com textos de Caterina Borelli, Albert Corbí ou Zakaria Mourachid. Mas as fotografias expostas em Berlim ou Amesterdão (ver o instagram ou site ) talvez nos dessem uma perspetiva mais completa, tanto do pontual como do total, do perto e do longe, do gesto fortuito e da composição aprimorada. Ou seja, os belíssimos grandes formatos a que Lisboa não teve direito (!), parecem transportar essa carga, verista mesmo se encenada, que nos faz aproximar do corpo migrante e da sua narrativa. A incursão pelo vídeo, ainda que preponderante para o conjunto, não tem a délivrance da fotografia. 

A filósofa Rosi Braidotti diz-nos que o corpo, ao constituir-se como factor de subjetividade “torna-se o lugar onde se sobrepõem códigos culturais e práticas discursivas múltiplas e contraditórias.” O corpo é o suporte comum mas também é aquilo que nos distingue: o corpo do amo difere do lacaio, o corpo do burguês do corpo do proletário. Reconhecer isso é o princípio de uma aproximação ao território e problemática que estas obras nos colocam.

Há 25 anos, Jose-Manuel Thomas Arthur Chao ainda não tinha 40 anos. Pai galego e mãe basca, Manu Chao cresceu em Paris com as cenas punk, ska e rockabilly, e forma os míticos Mano Negra. Quando a banda chegou ao fim, andou pela América do Sul com o seu violão compondo ocasionalmente. Pouco tempo depois saiu Clandestino, um álbum que foi um fenómeno internacional. Pa una ciudad del norte yo me fui a trabajar / Mi vida la dejé entre Ceuta y Gibraltar / Soy una raya en el mar, fantasma en la ciudad / Mi vida va prohibida, dice la autoridade. Versos que se ouvem na rádio e não nos deixam.

Neste momento, depois de tantas notícias de migrantes injustamente acusados de ilegalidades, de migrantes expulsos com filhos portugueses, acontece uma grande manifestação pelos seus direitos à porta da Assembleia da República. A manifestação é pacífica, embora as reivindicações tenham contornos surreais, ou “irreais” para nos mantermos no tom, que poderiam espoletar maior indignação e sobressalto. Algo próximo disso foi visto na manifestação “Não nos encostem à parede”, de janeiro passado. E as perguntas ficam em forma de conclusão: reconhecemos já como iguais estes corpos? Decorámos já os seus nomes, rostos e histórias? 

por Tiago Lança
Vou lá visitar | 19 Setembro 2025 | Adilson, BoCA, Felipe Romero Beltrán, Fotografia, Manu Chao