Que Lisboas são as nossas? Acerca de Lisboa Mesma, Outra Cidade, vol.2
Dia de reflexão antes das eleições autárquicas. Entre alguns pavões curiosos e os ecos da turba do futebol nacional, cerca de cinquenta pessoas no jardim do Museu da Cidade - aliás, Museu de Lisboa porque, como ouvi “cidade ninguém sabe o que quer dizer”- , para o lançamento do segundo volume de Lisboa Mesma Outra Cidade.
Editado em 2023, o primeiro volume debruçou o olhar sobre uma Lisboa que vira as costas aos anos da troika e se entrega “modernizada, higienizada e projetada pelo marketing” ao turismo. Tendo optado então por “representações alternativas” capazes de romper “com a ideia de cidade-produto”, este segundo livro também editado pela Ghost, com uma bonita e arroxeada capa, tem um objetivo diferente.
David-Alexandre Guéniot e Catarina Botelho, curadores do projeto, explicaram que a intenção era encarar a cidade mais pelo prisma da rua, dos corpos que se deslocam e habitam, de forma mais ou menos orgânica, o espaço resultante daquilo a que podemos chamar pós-gentrificação. Uma outra Lisboa que, simultânea e contraditoriamente, queremos muito conhecer (saber que existe) e manter reservada (a salvo da voragem do sistema). A estes sete fotógrafos, de uma geração mais nova, e às três escritoras, foi pedido que enveredassem por territórios mais específicos e pessoais.
Assim, o trabalho resulta na iluminação de “pontos cegos” por diferentes autorias, que emprestam complexidade e espessura ao conjunto.

Relógio, Tiago Amorim
Pareceu estranho que o fotógrafo Tiago Amorim, autor do ensaio Relógio, tomasse a palavra e se pusesse a ler do telemóvel. Mas logo elucidou o público sobre a criação do Bairro do Relógio (realojamento de mais de 700 famílias que viviam em Alcântara na zona onde viriam a ser erguidos os pilares da ponte), lembrou as várias vidas desta Feira cinquentenária ou contou a história impagável de uma família que todos os domingos sai de Lamego às duas da manhã para vender os seus queijos em Lisboa. Chegou a ser comovente o cuidado e a atenção que dedicou a esta série.
Uma imersão semelhante fez Golgona Anghel ao escrever sobre o Poço dos Negros, recolhendo fragmentos da história e da arqueologia da cidade, cruzando-os com as suas próprias vivências e inquietações.

Pagar o Chão, Fábio Cunha
O ensaio Pagar o Chão aponta a lente à crise da habitação. Fábio Cunha mostra-nos o ambiente das manifestações - o título foi tirado de um cartaz -, o aparecimento de elementos de “arquitetura hostil” (dissuasora dos sem-abrigo) ou a gente nova que interpela a câmara, tentando manter a compostura quando tudo à volta parece terreno minado. Um ensaio muito completo do qual foi retirada a imagem para a capa do livro.
Uma rapariga sorridente tenta equilibrar-se num monociclo, ajudada por rapaz voluntarioso. Ela morde a língua, ele transpira experiência e força. É uma fotografia que resume bem o ensaio Senhor Roubado, de Diogo Simões, mostrando simultaneamente a determinação de uma comunidade circense às portas de Lisboa e a instabilidade que, de um momento para o outro, a pode fazer resvalar e cair. Queda que, de facto, como explicou o próprio Diogo, acabaria por acontecer.

Senhor Roubado, Diogo Simões
A certa altura, a conversa tomou um rumo amargo. Não caindo na autocomiseração constatava-se que, nestes tempos, nem o mais resistente e empenhado está imune ao vírus da perda.
O desaparecimento dos espaços e dos lugares significativos, de que falou e escreveu Gisela Casimiro no livro, a atomização e paralisação das existências na cidade outrora pulsante, parecem ocupar parte da cabeça dos artistas. Isso, quer queiramos ou não, afeta a sua prática. Basta espreitar no Ípsilon a recente reportagem “Crise no turno da noite”.
Cada um, sobretudo os que cá vivem, sempre viveram, trabalham, etc., constrói o seu mito de cidade: a “sua” Lisboa. Mas num momento de oscilação entre o cinismo e a descrença, talvez a expressão do coletivo só seja possível a partir da representação individual, à medida que é posta em prática.
O tipo de fotografia que o livro preconiza (muito próxima do sujeito fotográfico tornando-se, ela própria, parte do observado e não um mero agente), apresenta-nos a cidade nestes termos: um conjunto de alteridades, ensaios de comunidade que, por vezes, coincidem, dialogam e se agregam.
Até porque as imagens canónicas dos edifícios representativos, dos grandes conjuntos arquitectónicos ou as vistas em olho de pássaro já não traduzem absolutamente nada do que é uma cidade. Mais do que um território, Lisboa é sobretudo um organismo sociocultural de trocas, harmonias e conflitos em tempo real: uma cidade outra que ao olhar desprevenido (ainda) parece a mesma.
Por um acaso, reencontrei o livro “Bolsões de resistência” do crítico de arte John Berger, uma edição de 2004 em português do Brasil. O original de 2001 intitula-se The Shape of a Pocket. Pocket, bolso, bolsão. Diz a Wikipédia que é um vale ou depressão desértica, geralmente desembocando numa praia ou salina, e totalmente cercado por colinas ou montanhas. Bolsões são locais de deposição ativa de sedimentos. Gostei sobretudo desta última definição.
Na contracapa, o autor explica que “um bolsão é formado quando duas ou mais pessoas se unem em acordo. A resistência é contra a desumanidade (…) E inesperadamente, (as) nossas trocas de ideias fortalecem em cada um de nós a convicção de que o que está (a acontecer) com o mundo atual é errado”.
As pessoas de que Berger fala, e onde se incluía, seremos nós, tanto os que aparecem nas fotografias como os seus autores. Sedimentos depositados em processo de ativação.

Passagem, Laura Palma
Se tudo é político, não o será ainda mais aquilo que suporíamos apenas estético? Talvez a arma política mais bem carregada seja a que, existindo sem um sentido programático, surpreende o receptor na sua acutilância, na sua ingenuidade, como no ensaio Passagem, de Laura Palma, em que vemos a “juventude a ser ela própria”, divertindo-se pela cidade, dê lá por onde der. O prazer pode ser entendido como um ato de resistência? Sem dúvida.
Hedonismo e libertação à parte, muita da produção fotográfica resulta das condições em que é feita. O conjunto de características técnicas, saberes e contingências dos próprios artistas determina bastante o objeto final.
É o caso do ensaio Trabalho, de Cristiana Ortiga, cujo interesse surgiu a partir de um piropo que a fotógrafa ouviu “vindo de um trolha”. Subitamente, uma mulher de câmara em riste nas obras, encontra-se num lugar inusitado de poder. Tem aliás, acesso privilegiado ao corpo masculino, invertendo a lógica instituída. As imagens tornam evidentes a hierarquização e distinção entre estes corpos, negros e brancos, braçais e encarregados, mais novos e mais velhos. Alguns dias passados, numa obra a poucas centenas de metros, e dois trabalhadores morreriam num acidente com uma grua: homens novos e africanos.
Olívia Borges é brasileira e, no seu ensaio com o delicioso título Qual a melhor forma de sentir calor?, seguiu os seus compatriotas em Lisboa. Foi flanando, nos passos das amigas que, ora vivendo na Amadora ora em Cacilhas, experimentam o quotidiano de entrar e sair da cidade. A escolha do preto e branco ajudou a homogeneizar a alternância entre as imagens de interior e exterior, entre o íntimo e o grupo, entre o festivo e o solitário. O contraste do caráter emblemático com uma certa nostalgia, tornam este conjunto muito eloquente.
Não estiveram presentes no lançamento a escritora Tatiana Salem Levy, que escreveu a crónica De volta para a minha terra, onde revisita as suas várias moradas na cidade a partir da condição dupla de estrangeira nascida em Lisboa, e a fotógrafa Cristiana Morais, que produziu o ensaio Casal Ventoso para sempre, um retrato pitoresco mas contemporâneo da vida bairrista, no território entre Campo de Ourique e o Vale de Alcântara.
Foi utilizada a expressão “brechas” para descrever todos estes pontos de vista, imagéticos ou literários (é sempre interessante ver como tantas vezes são usadas metáforas do tipo construtivo ou geográfico para descrever os fenómenos urbanos…). “Brechas” é uma boa expressão porque tanto pode indiciar a fragilidade de uma condição temporária – rapidamente podem ser tapadas - como o princípio de uma rotura no futuro. Podem ainda, e revemo-nos mais nesta hipótese, ser passagens que permanecem estreitas mas funcionais.
Continuemos a pensar e a alimentar estas pequenas brechas ou bolsões de resistência - em vez de uma Resistência com érre maiúsculo – possivelmente muito mais fortes do que imaginámos.
Trabalho, Cristiana Ortiga

Qual a melhor forma de sentir calor?, Olívia Borges
Casal Ventoso para sempre, Cristiana Morais