Que Lisboas são as nossas? Acerca de Lisboa Mesma, Outra Cidade, vol.2

Dia de reflexão antes das eleições autárquicas. Entre alguns pavões curiosos e os ecos da turba do futebol nacional, cerca de cinquenta pessoas no jardim do Museu da Cidade - aliás, Museu de Lisboa porque, como ouvi “cidade ninguém sabe o que quer dizer”- , para o lançamento do segundo volume de Lisboa Mesma Outra Cidade

Editado em 2023, o primeiro volume cobriu o período 2011 a 2015 - os chamados anos da troika -, e debruçou o olhar sobre uma Lisboa “modernizada e higienizada, projetada pelo marketing”. Tendo optado então por “representações alternativas” capazes de romper “com a ideia de cidade-produto”, este segundo livro também editado pela Ghost, com uma bela e arroxeada capa melancólica, tem um objetivo diferente. 

David-Alexandre Guéniot e Catarina Botelho, curadores do projeto, explicaram que, uma década depois, a intenção era encarar a cidade pelo prisma da rua e dos corpos que se deslocam e habitam, de forma mais ou menos orgânica, esse espaço resultante daquilo a que podemos chamar pós-gentrificação. Uma outra Lisboa que, simultânea e contraditoriamente, queremos muito conhecer (saber que existe) e manter reservada (a salvo da voragem do sistema). Pontos cegos iluminados por diferentes autorias, nas imagens (7 fotógrafos) e nas palavras (3 escritoras), que emprestam complexidade e espessura ao conjunto.

Relógio, Tiago AmorimRelógio, Tiago Amorim

Pareceu estranho que o fotógrafo Tiago Amorim, autor do ensaio Relógio, tomasse a palavra e se pusesse a ler do telemóvel. Mas logo elucidou o público sobre a criação do Bairro do Relógio (realojamento de mais de 700 famílias que viviam em Alcântara na zona onde viriam a ser erguidos os pilares da ponte), lembrou as várias vidas desta Feira cinquentenária ou contou a história impagável de uma família que todos os domingos sai de Lamego às duas da manhã para vender os seus queijos em Lisboa. Chegou a ser comovente o cuidado e a atenção que dedicou a esta série.

Uma imersão semelhante fez Golgona Anghel ao escrever sobre o Poço dos Negros, recolhendo fragmentos da história e da arqueologia da cidade, cruzando-os com as suas próprias vivências e inquietações.

Pagar o Chão, Fábio CunhaPagar o Chão, Fábio Cunha Pagar o Chão, Fábio Cunha Pagar o Chão, Fábio Cunha

 

O ensaio Pagar o Chão aponta a lente à crise da habitação. Fábio Cunha mostra-nos o ambiente das manifestações - o título foi tirado de um cartaz -, o aparecimento de elementos de “arquitetura hostil” (dissuasora dos sem-abrigo) ou a gente nova que interpela a câmara, tentando manter a compostura quando tudo à volta parece terreno minado. Um ensaio muito completo do qual foi retirada a imagem para a capa do livro.

Uma rapariga sorridente tenta equilibrar-se num monociclo, ajudada por rapaz voluntarioso. Ela morde a língua, ele transpira experiência e força. É uma fotografia que resume bem o ensaio Senhor Roubado, de Diogo Simões, mostrando simultaneamente a determinação de uma comunidade circense às portas de Lisboa e a instabilidade que, de um momento para o outro, a pode fazer resvalar e cair. Queda que, de facto, como explicou o próprio Diogo, acabaria por acontecer.

Senhor Roubado, Diogo SimõesSenhor Roubado, Diogo SimõesSenhor Roubado, Diogo SimõesSenhor Roubado, Diogo Simões

 

A certa altura, a conversa tomou um rumo amargo. Não caindo na autocomiseração constatava-se que, nestes tempos, nem o mais resistente e empenhado está imune ao vírus da perda. 

O desaparecimento dos espaços e dos lugares significativos, de que falou e escreveu Gisela Casimiro no livro, a atomização e paralisação das existências na cidade outrora pulsante, parecem ocupar parte da cabeça dos artistas. Isso, quer queiramos ou não, afeta a sua prática. Basta espreitar no Ípsilon a recente reportagem “Crise no turno da noite”. 

Cada um, sobretudo os que cá vivem, sempre viveram, trabalham, etc., constrói o seu mito de cidade: a “sua” Lisboa. Mas num momento de oscilação entre o cinismo e a descrença, talvez a expressão do coletivo só seja possível a partir da representação individual, à medida que é posta em prática. 

O tipo de fotografia que o livro preconiza (muito próxima do sujeito fotográfico tornando-se, ela própria, parte do observado e não um mero agente), apresenta-nos a cidade nestes termos: um conjunto de alteridades, ensaios de comunidade que, por vezes, coincidem, dialogam e se agregam.

Até porque as imagens canónicas dos edifícios representativos, dos grandes conjuntos arquitectónicos ou as vistas em olho de pássaro já não traduzem absolutamente nada do que é uma cidade. Mais do que um território, Lisboa é sobretudo um organismo sociocultural de trocas, harmonias e conflitos em tempo real: uma cidade outra que ao olhar desprevenido (ainda) parece a mesma.

Por um acaso, reencontrei o livro “Bolsões de resistência” do crítico de arte John Berger, uma edição de 2004 em português do Brasil. O original de 2001 intitula-se The Shape of a Pocket. Pocket, bolso, bolsão. Diz a Wikipédia que é um vale ou depressão desértica, geralmente desembocando numa praia ou salina, e totalmente cercado por colinas ou montanhas. Bolsões são locais de deposição ativa de sedimentos. Gostei sobretudo desta última definição. 

Na contracapa, o autor explica que “um bolsão é formado quando duas ou mais pessoas se unem em acordo. A resistência é contra a desumanidade (…) E inesperadamente, (as) nossas trocas de ideias fortalecem em cada um de nós a convicção de que o que está (a acontecer) com o mundo atual é errado”

As pessoas de que Berger fala, e onde se incluía, seremos nós, tanto os que aparecem nas fotografias como os seus autores. Sedimentos depositados em processo de ativação.

Passagem, Laura PalmaPassagem, Laura PalmaPassagem, Laura PalmaPassagem, Laura Palma

 

 

Se tudo é político, não o será ainda mais aquilo que suporíamos apenas estético? Talvez a arma política mais bem carregada seja a que, existindo sem um sentido programático, surpreende o receptor na sua acutilância, na sua ingenuidade. É o caso do ensaio Passagem, de Laura Palma, em que vemos a “juventude a ser ela própria”, divertindo-se pela cidade, dê lá por onde der. O prazer pode ser entendido como um ato de resistência? Sem dúvida. 

Hedonismo e libertação à parte, grande parte do produção fotográfica resulta das condições em que é feita. O conjunto de características técnicas, saberes e contingências dos próprios artistas determina bastante o objeto final. 

É o caso do ensaio Trabalho, de Cristiana Ortiga, cujo interesse surgiu a partir de um piropo que a fotógrafa ouviu “vindo de um trolha”. Subitamente, uma mulher de câmara em riste nas obras, encontra-se num lugar inusitado de poder. Tem aliás, acesso privilegiado ao corpo masculino, invertendo a lógica instituída. As imagens tornam evidentes a hierarquização e distinção entre estes corpos, negros e brancos, braçais e encarregados, mais novos e mais velhos. Alguns dias passados, numa obra a poucas centenas de metros, e dois trabalhadores morreriam num acidente com uma grua: homens novos e africanos. 

Olívia Borges é brasileira e, no seu ensaio com o delicioso título Qual a melhor forma de sentir calor?, seguiu os seus compatriotas em Lisboa. Foi flanando, nos passos das amigas que, ora vivendo na Amadora ora em Cacilhas, experimentam o quotidiano de entrar e sair da cidade. A escolha do preto e branco ajudou a homogeneizar a alternância entre as imagens de interior e exterior, entre o íntimo e o grupo, entre o festivo e o solitário. O contraste do caráter emblemático com uma certa nostalgia, tornam este conjunto muito eloquente. 

Foi utilizada a expressão “brechas” para descrever todos estes pontos de vista, imagéticos ou literários (é sempre interessante ver como tantas vezes são usadas metáforas do tipo construtivo ou geográfico para descrever os fenómenos urbanos…). Brechas é uma expressão feliz porque tanto pode indiciar a fragilidade de uma condição temporária – rapidamente podem ser tapadas - como o princípio de uma rotura no futuro. Podem ser ainda, e revemo-nos nesta hipótese, passagens que permanecem estreitas mas funcionais.

Pequenas brechas ou bolsões de resistência - em vez de uma Resistência com R maiúsculo – possivelmente mais fortes do que imaginámos. Continuemos a pensar e a alimentá-las.

 

 Trabalho, Cristiana Ortiga Trabalho, Cristiana OrtigaTrabalho, Cristiana OrtigaTrabalho, Cristiana Ortiga

Qual a melhor forma de sentir calor?, Olívia BorgesQual a melhor forma de sentir calor?, Olívia BorgesQual a melhor forma de sentir calor?, Olívia BorgesQual a melhor forma de sentir calor?, Olívia Borges

por Tiago Lança
Cidade | 17 Outubro 2025 | Fotografia, John Berger, Lisboa