O rap cabo-verdiano enquanto plataforma pan-africana

rap é hoje descrito como uma plataforma pan-africana (Clark 2018), visto ter-se tornado na expressão cultural mais poderosa em África, por onde as velhas identidades africanas foram desconstruídas e reconstruídas (Saucier 2011). Não obstante alguns ativistas traçarem um paralelo entre a cultura do colonizador e a comercialização da cultura hip-hop(Clark 2018), as evidências empíricas indicam que para muitos jovens africanos ele se transformou na voz de mudança e representação de um futuro de esperança e de unidade africana (Saucier 2011). 

Introduzido em Cabo Verde na segunda metade dos anos de 1980, em formato do break dance ou b-boying impulsionado pelo filme Breakin’ de 1984, o hip-hop logo passa a fazer parte da paisagem sonora das praças centrais das duas maiores cidades do país. Em ambas, vários pioneiros deste movimento foram filhos de pessoas envolvidas na luta de libertação e pertencentes à OPAD-CV, um dos dois movimentos juvenis criados pelo PAIGC. 

Apesar de muito consumido pelos jovens, sobretudo os da classe privilegiada ou aqueles com contacto com a diáspora cabo-verdiana, o rap era ainda pouco explorado nos anos de 1980. O seu desenvolvimento acontece no início dos anos de 1990 enquanto imitação da cultura urbana americana. Na Praia, a geração a seguir à pioneira, em que se destacam, entre outros, grupos como Niggas Badiu, Black Power, Tchipie, apesar de forte influência dos beats caribenhos, começaram desde cedo a desenvolver um trabalho de (re)construção de uma identidade de resistência. 

Este ciclo do rap praiense ficou também marcado pela influência do rap brasileiro, com destaque para Gabriel O Pensador, que esteve na origem da criação da música Matchuburro1 pelas Tchipie, uma versão invertida da música Loira Burra e que se constitui momentaneamente como símbolo de resistência feminina contra a submissão no namoro, pelo menos em termos discursivos. Os temas eram variados, mas, como salienta em entrevista Victor Duarte, rapper mindelense hoje radicado na Dinamarca, “as ideias eram acerca de assuntos sociais, mas havia, também muitas coisas filosóficas”. 

No Mindelo, como nos conta o Dj Letra em entrevista, nos primeiros anos o rap desenvolveu-se de forma mais agressiva, muito influenciada pelo estilo desviante e desafiador do revolutionary gangsta rap americano. Comparado com Praia, o rap mindelense nasceu como um fenómeno transurbano e com uma forte consciência coletiva, tendo introduzido, ainda nos anos de 1990, o conceito movimento inspirado em grandes coletivos americanos como Wu-Tang Clan, em que uma das grandes preocupações era ter representado todos os elementos constituintes dessa cultura2

Assim como foi descrito por Clark (2018) em relação ao rap produzido, nos anos de 1990, nos restantes países africanos, no Mindelo, muito mais do que na Praia, o papel do MC3 enquanto intelectual de rua foi uma evidência desde os primórdios e grupos como Hip Hop Art e Lod Skur, ambos pertencentes à segunda geração do rap4, funcionaram como escola de consciencialização social de rua, tendo sido um dos principais desencadeadores do processo de retoma da construção da identidade africana pós-movimentos juvenis do partido único.  

Na Praia, entre os finais dos anos de 1990 e a primeira metade dos anos de 2000, o rap começa a territorializar-se nas periferias e a associar-se à violência dos gangues (Lima 2015) e grupos como Wolf Gang ou Karaka ganham visibilidade. Essa altura ficou também marcada pelo ressurgimento do break dance impulsionados pelo filme You Got Served de 2004, com destaque para grupos como TC ou Black Style, mais tarde gangues de rua. Nesse período, as consequências sociais das políticas de ajustamento estrutural começavam a fazer sentir e, na linha do observado por Diouf (2003), fez emergir também em Cabo Verde geografias de resistência e de delinquência.

As entrevistas indicam que os novos protagonistas da cena gangsta mundial representados por artistas como 50 Cent e Eminem contribuíram para que o processo de (re)americanização do rap praiense, mas também do mindelense, entrasse nesse período num novo ciclo. No Mindelo, segundo os entrevistados, embora não se pudesse falar de uma relação direta entre o gangsta rap e a violência, salvo algumas exceções, as brigas eram quase que exclusivamente líricas. É de ressaltar que este ciclo do rap marcou também a sua politização e além dos grupos do gangsta rap, destacaram-se grupos como os República ou GPI, tendência desenvolvida mais tarde e de forma mais crua e contundente por rapperscomo Hélio Batalha na Praia e Gol Wayne no Mindelo.

Rappers como Pex, Batalha e o grupo Sindykatto de Guetto a qual pertenceu, Pomba Preto, FARP, entre outros, surgiram na Praia na segunda metade dos anos de 2000 como uma das caras dessa mudança. Jorge Andrade, conhecido na cena rap nacional como Kadamawe, foi um dos grandes mentores desse ciclo, ao introduzir no universo rap a mistura ideológica e identitária do pan-africanismo cabralista e garveyrista, assim como uma estrutura organizativa inspirada no PAIGC e nos Black Panthers Party. Através do coletivo Ra-Teknolojia contribuiu para a (re)interpretação da ideologia Thug Life de Tupac, base do processo de (re)construção identitária, assim como a introdução do conceito rapconsciente5 tanto na Praia como no Mindelo, embora, segundo os entrevistados no Mindelo, o hip-hop mindelense já nasceu consciente.

Além da influência de Kadamawe, também contribuíram para esse processo as seguintes entidades: o coletivo Rappers Unidos, promovido por DJ Letra no ano de 1997, com vista a unir os rappers mindelenses numa única família do hip-hop. Em 2012, em parceria com uma das poucas representantes femininas do rap cabo-verdiano, criaram a exposição RAPtrospetiva, a funcionar como um arquivo do rap mindelense; a associação Movimento Hip-Hop, liderada por uma ativista6 antes radicada em França, cujo trabalho foi de socialização dos princípios do hip-hop redefinidos por KRS-One; o movimento Shokanti, coletivo liderado por um rapper radicado nos EUA, que, através do projeto de liderança comunitária, influenciou a associação Djuntarti na criação na Praia do Festival Hip Hop Konsienti; a associação Fidjus di Cabral7, coletivo pan-africanista radicado na Holanda, que apoiou em 2010 a Djuntarti a organizar a primeira Marxa Cabral, um ato de insubordinação simbólica a assinalar o dia de assassinato de Cabral, juntando no centro histórico da Praia todos os elementos do hip-hop; o historiador Kwesi Tafari, que através da organização de cursos e leituras coletivas dos textos de Cabral contribuiu para o aprofundamento das teorias da revolução junto de rappers e ativistas praienses; a Plataforma Gueto, um movimento social negro criado por rappers cabo-verdianos radicados em Lisboa, que juntamente com os autores deste texto organizaram um conjunto de eventos de consciencialização política na Praia; e as ideias revolucionárias de Mirú, ativista dos Nation of Islam residente no Mindelo.

É patente a grande influência da diáspora cabo-verdiana nesse processo, em que, através do hip-hop, buscaram manter vivos os ideais do pan-africanismo, esquecidos pelas figuras da independência (Barros & Lima 2012), criando uma espécie de identidade negra global (Clark 2018). Estas entidades foram também um dos grandes responsáveis para aquilo que Lima (2012) designou de indigenização do rap cabo-verdiano.

Clark (2018) considera que o hip-hop americano contém ele próprio elementos de cultura africana, uma vez que, além dos seus cinco elementos iniciais carregarem traços africanos, vários foram os ícones americanos que usaram samples de artistas tradicionais africanos. A mesma autora cita um conjunto de estudos que demonstram paralelos entre a função social da figura do griot e a figura do rapper africano. Ainda assim, Charry (2012) entende que o rap como escolha expressiva dos filhos da geração pós-independência não surgiu de alguma tradição africana, mas como imitação direta do rap dos EUA. Para ele, foi com a terceira geração que esta lacuna ficou preenchida, ao conectarem organicamente com as diversas tradições africanas. No Senegal, por exemplo, Appert (2011) constatou que na elaboração da figura do griot, os rappers descontextualizaram a música tradicional e os gêneros de discurso e o recontextualizaram no hip-hop. Em simultâneo, numa relação intertextual com o hip-hop norte-americano, o griot foi colocado em diálogo com a produção cultural diaspórica africana, construindo desta forma uma música que é ao mesmo tempo local, transnacional, indígena e diaspórica. 

Em Cabo Verde, podemos falar de um processo idêntico de recontextualização. Esta discussão foi trazida pelo coletivo Ra-Teknolojia e surgiu num trabalho de história de autoria de Madjer Moniz que, segundo Lima (2020), busca semelhanças entre o batuku8 e o hip-hop, partindo da ideia de que o finason9 está para o batuku como o rap está para o hip-hop. Por exemplo, autores como Clark (2018) consideram que com o comércio negreiro, o homem negro africano escravizado foi distribuído pelo mundo e, com ele, a sua cultura que, fruto de encontros com culturas locais, foi-se fundindo, transformando e africanizando o panorama musical global.

Cabo Verde, enquanto hipermercado do comércio negreiro erigido no século XV, a cerca de 500 km da costa ocidental africana, surge como um desses lugares de desterro e de passagem de africanos escravizados, inicialmente para a Europa e posteriormente para as Américas. Foi, portanto, o primeiro lugar onde o griot se metamorfoseou, dando lugar ao finason, mais tarde introduzido nas sessões do batuku. Por exemplo, um importante elemento de semelhança entre as músicas e danças tradicionais africanas e a cultura hip-hop apontadas são as sessões de cyphers, muito presente no batuku. Com base nestes pressupostos e no trabalho etnográfico desenvolvido desde 2010 junto de rappers, Lima (2020) tomou o rap como herdeiro direto do griot e uma versão urbana, juvenil, fundamentalmente masculina e sofisticada do finason, na mesma linha como o tassou é encarado pelos rappers senegaleses.  

Nos últimos anos, além do batuku, têm-se utilizado samplers e batidas de músicas tradicionais e, desde os anos de 1990, as letras são em língua cabo-verdiana. Como aponta Clark (2018), o uso das línguas africanas foi um dos primeiros indicadores da sua indigenização e o desenvolvimento de uma identidade pan-africana. Outro indicador é a utilização nas músicas de figuras nacionalistas africanas. No entanto, ao contrário de outros contextos africanos, onde há incorporação de instrumentos tradicionais (Appert 2011), nas ilhas isto não acontece, apesar da tendência recente do uso de bandas, se bem que mais visível no rap comercial. Contudo, tem havido uma apropriação da estética das músicas tradicionais, particularmente do batuku e funaná (Robalo 2016) que, de certa forma, indica esta incorporação.

Ainda que tem sido raro os intercâmbios ou colaborações entre rappers locais e os do continente, timidamente tem havido alguma conexão, em termos políticos. Em 2010, por exemplo, o Djuntarti participou no Waga Hip Hop Festival, na Burkina Faso. Hélio Batalha produziu uma versão da música Povo no Poder de Azagaia, ambos fundamentais no contexto do levantamento popular nos dois países. Em 2016, este mesmo rapper teve uma participação na música Desahogo10 do rapper equatorial-guineense Negro Bey. Igualmente, a partir de 2017 alguns rappers participaram no intercâmbio político na África do Sul promovida pela Escola Ideológica Nkrumah para o pan-africanismo. 

De forma geral, o que percebemos é que a partir do rap os jovens vêm questionando o legado colonial, permitindo uma releitura da história do arquipélago enquanto património cultural africano. Assim, ao representar o cabo-verdiano como uma identidade racializada, fez renascer o debate em torno da conexão entre classe, espaço, raça, cultura e memória.

Bibliografia

Appert, C., 2011, ‘Rappin Griots: Producing the Local in Senegalese Hip-Hop’, In P.K. Saucier, org., Natives Tongues: An African Hip-Hop Reader. Trenton: African Word Press, pp. 3-21. 

Barros, M. e Lima, R.W., 2012, ‘Rap Kriol(U): O Pan-Africanismo de Cabral na música de intervenção juvenil na Guiné-Bissau e em Cabo-Verde’. REALIS – Revista de Estudos AntiUtilitaristas e PosColoniais, vol. 2, n. 2, pp. 89-117.

Charry, E., 2012, ‘A Capsule History of African Rap’, in E. Charry, ed., Hip-pop Africa: New african music in a globalizing world, Bloomington: Indiana University Press, pp. 1-25.

Clark, M.S., 2018, Hip-hop in Africa: prophets of the city and dustyfoot philosophers, Athens: Ohio University Press.

Diouf, M., 2003, ‘Engaging postcolonial cultures: african youth and public space’. African Studies Review, vol. 46, n. 2, pp. 1-12.

Lima, R.W., 2020, Di kamaradas a irmons: o rap cabo-verdiano e a (re)construção de uma identidade de resistência. Tomo, n. 37, pp. 47-88.

Lima, 2015, ‘Lógicas de desafiar a mudança nas ‘periferias’ do espaço urbano em (i)mobilização: representar Zona Ponta, Praia, Cabo Verde’, em L. Ferro, O. Raposo, e R. Gonçalves, orgs., Expressões artísticas urbanas: etnografia e criatividade em espaços atlânticos, Rio de Janeiro: Mauad, pp. 189-208. 

Lima, 2012, ‘Rappers cabo-verdianos e participação política juvenil’, Tomo, n. 21, pp. 263-294.

Robalo, A., 2016, ‘Música e poder em Cabo Verde: das práticas contestatárias dos jovens rappers à potencialidade ‘castradora’ do Estado, Desafios, n. 3, p. 105-130. 

Saucier, P.K., 2011, ‘Introduction. Hip-hop culture in red, black, and green’, in P.K. Saucier, ed., Natives tongues: an african hip-hop reader, Trenton: African Word Press.

* Este texto resulta do projeto “Jovens, espaço urbano e sociedades em movimento: um olhar sócio-antropológico sobre os movimentos urbanos em Cabo Verde”, financiada pelo programa MRI CODESRIA 2018/2019.

  • 1. Macho burro.
  • 2. Inicialmente eram cinco os elementos do hip-hop: breaking; graffiti art; djing; beatboxing; e street knowledge. Mais tarde, o rappernorte.americano KRS-One promoveu a sua redefinição, juntando mais quatro elementos: street language; street fashion; e street entrepreneurism (entrepreneurislism).
  • 3. Mestre de Cerimónias.
  • 4. Grupos como Nigga Sem Vida, Ice Company, Bairro Norte, Black Side, entre outros fazem parte da primeira geração do rap mindelense.
  • 5. Esta questão remete à discussão sobre a autenticidade do hip-hop que, segundo o estudo de Kembrew McLeod’s (Clark 2018), significa representar-se a si próprio, a sua realidade e sua cultura, especificamente aa culturas underground e urbana do gueto. Inclui também a compreensão sobre o seu legado e a defesa dos seus valores fundamentais.
  • 6. A continuidade desse trabalho é desenvolvida hoje pelo Street Force Motivation, um movimento de promoção do ativismo social com recurso à arte e ao desporto.
  • 7. Surgiram no ano de 1993 na Praia com o nome de D.L.T.T. e em 1997 com a entrada de novos elementos mudaram para Cikatriz Crew. O nome Fidjus di Cabral surge enquanto coletivo em 2003, já na Holanda.
  • 8. Expressão cultural característica da ilha de Santiago, que exprime uma vivência emocional de um indivíduo ou de um grupo. Como mensagem, procura consciencializar para a vivência sociocultural da comunidade com a finalidade de esclarecer e reforçar a vida comunitária, estimulando a solidariedade social, reforçando a coesão social e resistindo culturalmente.
  • 9. Parte de uma sessão de batuku em que se cantam geralmente de forma improvisada, baseada em provérbios e máximas populares.
  • 10. Desabafo.

por Redy Wilson Lima e Alexssandro Robalo
Palcos | 25 Março 2021 | black power, Cabo Verde, Gabriel o pensador, identidade de resistência, identidade negra global, música, niggas badiu, pan-africanismo, plataforma pan-africana, rap, rap brasileiro, rap cabo-verdiano, resistência feminina, tchipie