Do finason ao rap: Cabo Verde e as músicas de intervenção

Cabo Verde foi na fase pré e pós-independência repleto de músicas de protesto. Antes da libertação nacional, o batuku[1], essencialmente no momento do finason[2], funcionava como o instrumento por excelência de resistência face ao domínio português. Devido à sua herança africana – do griot[3] – e do processo de branqueamento da cultura cabo-verdiana na época colonial tanto o batuku como a tabanka[4] foram reprimidos.

Esta imagem negativa do batuku foi simbolicamente invertida pelo PAIGC, utilizando-o por um lado como forma de levantar a auto-estima dos seus intervenientes e, por outro, reconverter o seu capital social em capital político. No processo da luta de libertação, refere Pedro Martins, os militantes eram incentivados a inspirar-se no que o partido considerasse cultura de resistência cabo-verdiana (Martins apud Nogueira, 2010). O livro “Nôte” da autoria de Kaoberdiano Danbará[5] era apresentado parcialmente às cantadeiras com o objetivo de as estimular na composição de letras anti-sistema colonial.        

Com a revolução dos cravos e a popularidade da chamada música revolucionária em Portugal, em 1974, em Cabo Verde, nessa mesma época, começa a aparecer composições que iam desde a denúncia e o protesto contra o colonialismo português, às louvações à libertação nacional e a necessidade da reconstrução nacional (Semedo, 2008).

Através daquilo que designo de guerrilha cultural, o então partido de luta, o PAIGC edita em 1974 o disco “Protesto e Luta – Música de Cabo Verde”, em que a partir da morna[6] e da coladeira[7] (músicas consideradas pelas elites locais como citadinas e aceitáveis) promoveu-se críticas ao colonialismo e às situações de injustiça por que passavam o povo das ilhas, buscando com isso mobilizar o apoio da elite local para a luta armada. Nesse mesmo álbum, o poema batuku de Kaoberdiano Danbará, poema esse que “termina com o verso batuku é a nossa alma” (Nogueira, 2010: 72), surge como uma estratégia com vista a recordar o povo a sua raiz africana e a necessidade de lutar contra a subjugação branca.    

Pela sua temática contra-hegemónica e o seu forte engajamento político-partidário, essa fase da música feita em Cabo Verde foi conhecida como a fase musical revolucionária ou panfletária. Vivenciava-se uma época em que se acreditava que somente o activismo político poderia edificar um futuro risonho e que a música era o instrumento ideal de questionamento e de afirmação nacional.

A guerrilha cultural levado a cabo pelo PAIGC consistia, portanto, na criação de um movimento de revalorização das manifestações culturais desprezadas e reprimidas pelo regime colonial português, manifestações consideradas anteriormente como “coisas do povo, música de África, música de preto” (Gonçalves e Monteiro, 2005: 99).

Manuel Faustino foi integrante do Grupo de Intervenção Artística (GIA), uma referência na música de protesto da época, e numa entrevista concedida a Semedo, assinala que:

 

Ao mesmo tempo que se procurava inovar, se tentava resgatar composições populares em vias de desaparecer, particularmente da ilha de Santiago. Igualmente se dissertava com algum calor acerca do carácter conformista da música de Cabo Verde. Se insurgia contra a mensagem fatalista de grande parte delas e se discutia (a eterna discussão) sobre inovação e fidelidade às raízes. (Faustino apud Semedo, 2008: 32)

Hélio Batalha na marcha CabralHélio Batalha na marcha Cabral

A revalorização cultural e musical levada a cabo na época por esses novos artistas preconizava a recriação de novos géneros musicais a partir das fontes tradicionais de músicas e ritmos, trazendo à discussão aquilo que ficou conhecido como o “problema da autenticidade” (Gonçalves e Monteiro, 2005), cuja aceitação só foi possível mediante uma intensa luta simbólica entre os inovadores e os tradicionalistas, estes últimos que consideravam estar-se perante uma deturpação de géneros folclóricos, que deveriam ser conservados e interpretados tal e qual.

Poder-se-á considerar a recente troca de palavras na comunicação social e nas redes sociais entre rappers (tendo o rapper Hélio Batalha sido apresentado pela imprensa como a cara de indignação do hip-hop) e o compositor Kaká Barboza[8], o reviver na cena musical cabo-verdiana dessa luta simbólica entre os inovadores e os tradicionalistas, em que numa nova conjuntura, surgem novos protagonistas à volta do velho problema de autenticidade e legitimação de novos géneros musicais.

Pegando novamente no finason, convém salientar que Cabo Verde, devido à sua localização geográfica, no Atlântico Norte, a cerca de 550 kms a Oeste da Costa do Senegal, na Costa Ocidental de África, teve um papel de realce no período do tráfico negreiro, destacando-se por ser o ponto de passagem de escravos vindos do continente africano rumo às américas.

Filho (2004) considera ser de primordial importância na análise da música rap, efectuar-se um histórico sobre a génese da música afrodescendente e da cultura hip-hop, que remonta desde os griots africanos, à diáspora negra, a Jamaica e aos Estados Unidos. Lembra que o tráfico negreiro distribuiu o negro pelo mundo na condição de escravo e, com ele, a sua cultura e a música a ela inerente, que fruto de encontros com culturas locais foi-se fundindo e transformando o panorama musical do planeta.

Os africanos escravizados, não entendendo as línguas dos países onde eram levados, retomaram a tradição oral e nas palavras de Filho:

 

A música traço de sustentação da cultura africana passou a se configurar em uma das formas de resistência à opressão, violência e usurpação a que os escravos eram submetidos, tendo a tradição musical garantido a sua sobrevivência mediante a figura dos griots. (2004: 148) 

 

Evidentemente, como ressalvam Contador e Ferreira, o griot encontra-se omnipresente em todas as formas culturais e musicais emergidas em locais onde a presença africana se fez notar.

 

Esta figura mítica é notada em toda a produção cultural que tem por base a oralidade – a palavra – em especial, quando esta se conjuga com o ritmo: do jazz à soul, do reggae à música popular brasileira, passando pelo blues, funk, R&B, e naturalmente o rap. (1997: 15)

 

Estando o afrodescendente presente nos quatro cantos do mundo, o que fica explícito na exposição de Contador e Ferreira (1997) e reforçada por Filho (2004), é que um dos desdobramentos da resistência cultural proporcionado pela escravidão negra tem sido a africanização da cultura metropolitana mundial.

Foto de Hélio BatalhaFoto de Hélio Batalha

Em Cabo Verde, ponto de passagem dessa imensa diáspora africana, o griot metamorfoseou-se dando lugar ao finason, cantado pelos escravos nas senzalas[9] de Ribeira Grande de Santiago, mais tarde introduzidas nas sessões do batuku. Princezito, Artista, activista sociocultural e investigador das várias vertentes do batuku, entre os quais o finason, que, nos anos de 2000, juntamente com outros artistas, evidenciaram a nova tendência do estilo batuku, através do Projeto Ayan, dando início a uma nova vaga musical cabo-verdiana, cujos integrantes ficaram conhecidos como “Geração Pantera”[10], considera o finason como sendo uma espécie de pré-rap cabo-verdiano, pelos seus temas e pela forma como é praticada. Como forma de experimentar as similitudes entre rap e finason, em 2008, Princezito, reuniu no Tarrafal, interior de Santiago, local simbólico de resistência colonial, o grupo rap da Praia, República, e o compositor, músico e, também, homem do finason, Ano Nobo.

Tanto Princezito como Chullage[11] consideram Nha Násia Gomi[12] e Ntoni Denti d’Oru pré-rappers, e o activista cultural Jorge “Djodje” Andrade, vê na figura de Kaoberdiano Danbará[13] uma espécie de Gil Scott-Heron[14] cabo-verdiano.

Em 2003, dois elementos do grupo rap Bairro Side radicados em Lisboa, Kaya e Polyfree, prestaram uma espécie de atributo a Orlando Pantera, misturando o original “Papia Ku Mi” (Fala Comigo) com um rap beat americanizado, inaugurando uma nova forma de fazer rap cabo-verdiano – o casamento entre os géneros tradicionais e o rap[15] – dando início à sua indigenização.   

 

Referências bibliográficas

Contador, A.C e Ferreira, E.L. (1997). Ritmo & Poesia: os caminhos do rap. Lisboa: Assírio & Alvim.

Filho, J.L. (2004). Hip hopper: tribos urbanas, metrópoles e controle social. In: Pais, J.M. and Blass, L.M. (eds.) Tribos urbanas: produção artística e identidades. Lisboa: ICS, pp.145-167.  

Gonçalves, C. e Monteiro, W. (2005). Cabo Verde, 30 anos de música – 1975-2005. In: Correia e Silva, F.E. (ed.). Cabo Verde: 30 anos de cultura – 1975-2005. Praia: IBNL, pp. 99-119.

Nogueira, G. (2010). Batuku, património imaterial de Cabo Verde. Percurso histórico musical. Dissertação de Mestrado, Praia: Universidade de Cabo Verde.

Semedo, M.B. (2008). A morna-balada: o legado de Renato Cardoso. Praia: IBNL.

 

 

 


[1] Expressão cultural característica da ilha de Santiago, que exprime uma vivência emocional de um indivíduo ou de um grupo de indivíduos. Como mensagem, procura consciencializar para a vivência sociocultural da comunidade com a finalidade de esclarecer e reforçar a vida comunitária, estimulando a solidariedade social, reforçando a coesão social e resistindo culturalmente.  

[2] Parte de uma sessão de batuku em que se cantam cantigas em geral improvisadas, baseadas em provérbios e máximas populares.

[3] Contadores de estórias originários da África Ocidental. Considerados sábios da comunidade que através de suas narrativas passam de geração a geração as tradições dos seus povos.

[4] Manifestação cultural característica da ilha de Santiago, entendido como uma africanização das festas dos santos populares portugueses. Festejada normalmente no mês de Junho. Era, por exemplo, proibida a sua subida ao Plateau, centro histórico da cidade e símbolo da dominação colonial, antes da independência.

[5] Pseudónimo de Felisberto Vieira Lopes. Advogado, poeta e inventor da ideia negritude crioula.

[6] Género musical cabo-verdiano tradicionalmente tocado com instrumentos acústicos. Reflecte a realidade insular do povo de Cabo Verde e é tido como o género musical que mais identifica o povo cabo-verdiano.

[7] Parecido com a morna mas caracterizado por um andamento mais rápido. Destaca-se mais como um género de dança de salão.

[8] Numa entrevista sobre a música cabo-verdiana, na edição número 257, de 2 de Agosto de 2012, Kaká Barboza reage à afirmação de que o rap conquista os jovens cabo-verdianos em detrimento da música tradicional, argumentando que essa nova onda musical não passa de música “chuinga” (pastilha elástica) que consome-se e deita-se fora. Na edição posterior (nº 258, de 9 de Agosto de 2012), após a indignação dos rappers, reforça o argumento afirmando que o hip-hop não passa de “papel higiénico”, sem nenhuma mensagem, porquanto, uma pura imitação e macaquice da cultura norte-americana. Nos dois encontros promovidos pela Plataforma Gueto CV e IPericentro, na Assomada e na Praia, Barboza reforçou a sua posição na presença de rappers e agrupamentos de promoção do hip-hop em Cabo Verde, defendendo a indigenização do mesmo, ao invés de uma simples imitação do rap norte-americano, algo que no seu entender, estaria a acontecer no país.     

[9] Alojamento destinado aos escravos nos engenhos.

[10] Alusão feita ao compositor e cantor Orlando Pantera, falecido em 2001, cuja obra artística visou redesenhar o finason, incorporando-o sonoridades musicais várias, nacionais e estrangeiros, forjando assim um estilo próprio chamado por muitos de neo-batuku.   

[11] Rapper, ativista sociocultural e político, português, filho de pais cabo-verdianos.

[12] Uma das referências do finason. Falecida em 2011.

[13] É de salientar que este poeta, muitas vezes, declamava os seus poemas ao som de tambores.  

[14] Poeta, spoken word, ativista sociocultural e político norte-americano, considerado o “avô do rap”.

[15] Embora alguns grupos utilizaram samples tradicionais nas suas criações musicais, a maioria não o fez, preferindo beats baixados na internet, devido, sobretudo, ao fraco poder económico.  

por Redy Wilson Lima
Palcos | 6 Abril 2015 | Cabo Verde, Finason, música, rap