O jardim

The Garden, Gemena, DR Congo, de Deana Lawson, 2015.The Garden, Gemena, DR Congo, de Deana Lawson, 2015.

A imagem mostra um homem e uma mulher num jardim. Ele parece apaixonado. Tem a mão aberta sobre o ventre dela e um olhar consolador, mas também triste. Ela tem o olhar no vazio, não o encara. Parece o momento após terem perdido um filho e não um instante numa gravidez. É algures no Congo, numa aldeia remota: Gemena. Ela tem o cabelo trançado com extensões. Tem madeixas. Ele rapou o cabelo com uma máquina, como fazem os rapazes nas cidades. A imagem é de Deana Lawson, que viajou da América a África em 2015 à procura dos jardins de Bosch.

Perdemos o nosso filho, diz o olhar de Eva. Outros virão, diz-lhe Adão. Será que importa que, em plano recuado, se veja apenas sombra, que mesmo as plantas de Gemena pareçam artificiais?

Qual o nosso lugar nesta história, podia pensar Eva. Porque nos deixaram aqui aos dois? No jardim de Lawson é o olhar de Eva que faz as perguntas. Quando começou o mundo? A mão de Adão sobre o seu ventre desconversa, consolando-a das dúvidas.

“Precisei de descolonizar a minha imaginação”, afirmou Deana sobre esta peça à Interview Magazine. Mas o olhar de Eva captura os avanços e recuos desse processo e não o resolve. Pergunta sem responder: quem nos deixou aqui, porque nos abandonaram aqui, porquê, porquê — porquê?

Eva pergunta. Adão consola-a. Terá sido assim? Ela metendo o nariz onde não era chamada, como uma menina de três anos: porquê que há aqui tanta fruta, porquê que esta flor é amarela, porquê, porquê, por que é que não posso trincar esta maçã? E ele, Adão, paciente, sem curiosidade, agradecido, sem querer saber mais do que aquilo que lhe foi explicado.

Perderam o seu filho ou alguém ficou de aparecer e não apareceu? Será que, pelo contrário, ela está grávida e nada é o que primeiro me pareceu? 

Noutras imagens, Deana Lawson surpreende casais na intimidade, igualmente nus, em contextos domésticos. Parece interessar-lhe o que fazemos dentro de casa: lugar por onde andamos sem roupa e descalços, onde nos despimos e vestimos, onde nos mascaramos, dentro de portas. As suas figuras revelam-se à câmara numa languidez que contrasta com a sua pose de desafio. Em várias das suas séries, a fotógrafa parece acabada de entrar no apartamento de alguém sem que ninguém se tivesse composto para a receber, como nos casos criminais em que se presume que o assassino conhecia a vítima porque a porta de casa não foi arrombada. Deana entra com a sua câmara de grande formato. Lá dentro, encontra mulheres e homens deitados em sofás, ora seminus, ora vestidos com exuberância. Mas a indumentária das suas personagens lembra sempre o género de exibicionismo que temos diante dos espelhos da nossa casa e das pessoas com quem vivemos, não codificado pelo olhar do exterior.

The Garden está a par das imagens domésticas de Deana Lawson. Adão e Eva estão ainda em casa, nesta aldeia do Congo. Mas, na casa de quem? Serão dois amantes deixados pernoitar em casa de amigos? Estarão na casa de todos, que é toda parte e lado nenhum? O que é uma casa, pergunta Eva. Deixa-te de perguntas, meu amor, responde Adão.

Quem são estes dois e onde moram? Apetece questionar. Parece que os conheço de algum lado. É então que The Garden conversa com toda e qualquer vida, como um ícone. Descolonizar é, aqui, tornar-nos parte, integrar-nos na história, sentar-nos no jardim. Eva posa como alguém a quem acaba de acontecer um desastre. Talvez queira dizer que não sabe o que a aguarda e que tem medo.

Ele consola as dúvidas dela. Tenho-te a ti, bastas-me tu, diz a sua mão sem dizer palavra. Lawson fotografou o primeiro jardim em 2015 e, de facto, deu-nos dois amantes com dois mil e quinze anos de dúvidas e poucas respostas. Pode ter viajado até à República Democrática do Congo à procura de uma promessa, mas não encontrou um homem e uma mulher sem mácula. Talvez tivesse viajado até Gemena à procura do olhar das primeiras perguntas, o olhar da sua Eva irrequieta. Ele põe a cabeça nas extensões dela. Sentirá a textura do nylon do fio das suas tranças? Chiu, tem calma, sussurra-lhe ele. Tudo se há-de compor. Mas Eva está confusa, perdida em pensamentos.

 

 

por Djaimilia Pereira de Almeida
Mukanda | 28 Outubro 2019 | Adão e Eva, Congo, Deana Lawson, Fotografia, jardim, Literatura, Paraíso