Na Rua do Loreto

Viveu em Lisboa, na Rua do Loreto, uma rapariga que se rodeava de lixo na paragem do 28, onde dormia. Assombra-me de noite. Atordoada, despertando, julgo tocar na sorte que tenho por viver no presente, por ter quem me ame, sem saber bem o que significa tocá-la, pois também a rapariga é minha contemporânea. Com o passar dos meses, o lixo acumulado à sua volta tornou impossível que ali se aguardasse pela chegada do eléctrico, parecendo antes que o ponto de passagem se tornara uma morada permanente, nauseabunda. Tinha o rosto luzidio e inchado de uma boneca e, mesmo ausente, um sorriso muito belo. Todas as manhãs, arrumava a sua casinha de caixotes, como se fizesse a lida da casa. Empilhava caixas de fósforos e beatas de cigarro. A sua figura operática, agigantada, contrastava com a sua voz melodiosa, que parecia pertencer a outro corpo, que não o dela. A voz anunciava, talvez, a rapariga que fora. 

colagem da autoracolagem da autora

Baila entre sacos do lixo, mudando de sítio os seus tesouros. Abre um caixote e põe lá dentro uma folha de jornal amachucada. Apanha bilhetes usados do chão e guarda-os numa trouxa de trapos, ou lança-os ao ar sobre a cabeça num aguaceiro de confeti. Alinha fósforos queimados no banco da paragem enquanto palita os dentes com arame. Coça o cabelo: curto, pontas queimadas. Tira cera dos ouvidos e lambe os dedos, sorri com olhos de siso. Ou ri sem razão, deita-se de cara tapada, a cabeça num caixote. Fiquei a observá-la de uma pastelaria, do outro lado da estrada, uma hora inteira. Cansada, a princesa via passar a freguesia: a rotina de uma colónia de flamingos. Dessa vez, não me viu. Sentada, era um único ponto negro na paisagem contra o rosa-almagre do palacete e os tons passageiros dos transeuntes à sua volta, salpicos de cor que a olhavam entre o espanto e o nojo, falando ao telemóvel. Ocupava o espaço de três pessoas e afugentava-as com piropos e pedidos, beijos repenicados; sustos que pregava às raparigas, gritando-lhes de súbito, os braços sobre as suas costas desprevenidas, como uma tarântula benigna. Não esperava pelo eléctrico, mas pela morte, com a paciência de uma menina perdida dos adultos. 

Desenhei-a num guardanapo. Como se chamaria? Saiu um borrão descabelado, redondo. À saída do café, pus os óculos escuros para o meu olhar não se cruzar com o dela. Atravessei a estrada e, aproveitando um instante em que meteu a cabeça dentro de um saco, desci em passo rápido a Calçada do Combro. 

Da segunda vez que a vi, tinham passado três anos. Não me ocorreu que a encontraria e não mudei de passeio. Apanhei-a quando lhe voou um guardanapo e, por pouco, não esbarrámos. A um palmo do meu rosto, tapou o nariz como se lhe cheirasse mal e, com uma voz nasalada, perguntou: “Querida, dás-me um copo de leite?”. Parecia ter acabado de sair de um molho de couves podres mergulhado em patchuli. Sorriu-me, piscou-me o olho e sentou-se de pernas abertas, alheada, os trapos negros que a cobriam abaulavam-se sobre o ziguezague da linha do eléctrico, formando a cauda de uma dama antiga de luto a quem só faltava uma sombrinha a rodar no ombro. “Volta para a tua terra!”, berraram de um carro.“Querida, dás-me um copo de leite?” Ainda pensei que fosse para mim, mas pediu-o ao primeiro turista que cruzou a rua. 

Costumava mudar de passeio ao avistá-la, ou esforçava-me para que não cruzássemos o olhar, se me via forçada a passar junto à paragem. Temia que me falasse como só temi na minha vida os beijos das velhas na missa, quando era menina. E então se colasse a mim, me desse um abraço apertado, o seu hálito a vinho no meu pescoço, o cabelo sujo no meu nariz, saudando-me, feliz, como a uma amiga. Esse abraço imaginado de ternura persiste em mim, revelando a minha cobardia, ao desviar-me do olhar dela.

Na paragem do eléctrico, quando adormece ao sol, talvez as mãos lhe tremam ou também ela bata o ritmo da Marcha Fúnebre nos caixotes, como eu faço sem dar conta, enquanto fumo à janela. 

Talvez não seja digna da sua memória. Não sei como se chamava a rapariga da paragem do eléctrico. Certo dia, desapareceu. Gigante, sobe a Calçada do Combro nas pontas dos pés descalços. As unhas são negras, recurvas. Os joelhos surrados, as carnes frouxas, o cabelo imundo solta pelo passeio um aroma a carne passada. Lança beijos ao eléctrico e às gentes dentro dos cafés, que vêm à rua vê-la passar. “Minha querida, arranjas-me um copo de leite? Um cigarrinho?” Faltando quem a acuda, bebe do leite numa taça imaginária, com a mão direita, fuma com a esquerda por uma boquilha invisível. Às tantas, cansa-se da subida. Queria sentar-se como uma senhora, alçar o rabo com elegância, mas tomba na calçada como uma pata choca. 

Está nua, a barriga dobra-se sobre o púbis. Eleva os braços, espreguiça-se, como um orangotango fêmea cansado. Deixa-se estar ali, lambendo os braços, levando ao nariz o cheiro dos sovacos, acarinhando um bebé que ninguém vê, dando-lhe de mamar com um desvelo maternal. 

Dessa vez, não a vi. Contaram-me que abriu as pernas, cheirou-se e sentindo-se, quem sabe, terrivelmente desamparada, começou a chorar de desespero. Alguém chamou a Polícia Municipal. Levaram-na, cobriram-lhe as costas com uma manta, de novo uma menina no banco de trás do carro de patrulha, talvez chuchasse no dedo. 

De noite, regressa ao meu quarto, deitada no chão, aos pés da minha cama, nua entre os sacos e os cobertores sujos. Estendo-lhe os meus dedos. Tem as palmas frias e suadas. Só quando estamos as duas sozinhas sou mulher para a socorrer. Dormimos de mãos dadas. 

por Djaimilia Pereira de Almeida
Cidade | 8 Setembro 2020 | crónica, Lisboa, mulher, sem-abrigo