"Entre mim e o mundo" - PRÉ-PUBLICAÇÃO

Entre mim e o mundo, de Ta-Nehisi Coates (editora Ítaca) é uma reflexão profunda e pessoal, muitas vezes indignada, sobre o racismo. Numa carta ao filho adolescente, Ta-Nehisi Coates recorda a sua infância e juventude num bairro violento de Baltimore, o despertar intelectual por via dos livros, dos discursos de Malcolm X e de mulheres amadas. Dolorosamente, relembra ainda a perda de um colega de faculdade, também ele negro, vítima de uma perseguição policial. O BUALA publica as primeiras páginas do livro. 

 

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Filho,

No domingo passado, a apresentadora de um noticiário conhecido perguntou-me o que significava perder o meu corpo. A apresentadora transmitia a partir de Washington, D.C., e eu estava sentado num estúdio longínquo no extremo ocidental de Manhattan. Um satélite abreviava as milhas que nos separavam, mas nenhuma máquina poderia abreviar a distância entre o mundo dela e o mundo que eu tinha sido chamado a representar. Quando me perguntou sobre o meu corpo, o rosto dela desapareceu do ecrã e foi substituído por uma concatenação de palavras que eu tinha escrito nessa semana.

A apresentadora leu as palavras para o público e, quando terminou, voltou ao tópico do meu corpo, ainda que não o mencionasse especificamente. Por esta altura, no entanto, já estou habituado a que pessoas inteligentes me perguntem acerca da condição do meu corpo sem se aperceberem da natureza desse pedido. Em particular, a apresentadora queria saber por que razão eu sentia que o progresso da América branca, ou, antes, o progresso daqueles americanos que acreditam serem brancos, se construiu com base no saque e na violência. Ao ouvi-la, senti uma tristeza antiga e indistinta crescer dentro de mim. A resposta a esta pergunta é o registo dos próprios crentes. A resposta é a história da América.


Não há nada de extremo nesta afirmação. Os americanos deificam a democracia a tal ponto que só muito vagamente têm consciência de terem desafiado o seu Deus de tempos a tempos. Mas a democracia é um Deus que perdoa, e as heresias americanas – a tortura, o roubo, a escravatura – são tão comuns entre os indivíduos e as nações que ninguém se pode declarar imune. Com efeito, num sentido muito real, os americanos nunca traíram o seu Deus. Quando Abraham Lincoln declarou, em 1863, que a batalha de Gettysburg teria de assegurar que «o governo do povo, pelo povo e para o povo não perecerá neste mundo», não estava apenas a ser ambicioso; no início da Guerra Civil, os Estados Unidos da América tinham um dos maiores universos eleitorais de todo o mundo. Não se trata de saber se Lincoln verdadeiramente acreditava no «governo do povo» mas de saber que significado o nosso país, ao longo da sua história, atribuiu de facto ao termo político «povo». Em 1863, esse termo não designava a tua mãe nem a tua avó, não se referia a mim nem a ti. Assim, o problema da América não é o de ter traído o «governo do povo», o problema são os meios pelos quais «o povo» adquiriu o seu nome.

O que nos leva a outro ideal igualmente importante, um ideal que os americanos aceitam implicitamente mas sem o defenderem de forma consciente. Os americanos acreditam na realidade da «raça» enquanto característica definida e indubitável do mundo natural. O racismo – a necessidade de atribuir características indeléveis a diferentes pessoas e depois humilhá-las, reduzi-las e destruí-las - advém inevitavelmente desta condição inalterável. Deste modo, o racismo é explicado como o filho inocente da Mãe Natureza, e só se pode deplorar o tráfico esclavagista1 ou o Trilho das Lágrimas2 como se deplora um terramoto, um tornado ou qualquer outro fenómeno que não seja obra dos homens.

Contudo, a raça é a filha do racismo, não a mãe. E o processo de dar nome ao «povo» nunca teve que ver com genealogia ou fisionomia, mas com hierarquia. A diferença de tons de pele e de cabelos é antiga. Mas a crença na proeminência do tom de pele e do cabelo, a noção de que estes factores podem organizar correctamente uma sociedade e que designam atributos mais profundos que são indeléveis – esta é a nova ideia no centro do novo povo que foi ensinado, irremediavelmente, tragicamente, enganadoramente, a acreditar que é branco.

Esse novo povo é, como nós, uma invenção moderna. Porém, ao contrário de nós, o seu novo nome não tem nenhum significado real para lá da maquinaria do poder criminoso. O novo povo era qualquer outra coisa antes de ser branco – era católico, corso, galês, menonista, judeu – e, se todas as nossas esperanças nacionais se cumprirem de algum modo, terá de ser qualquer outra coisa outra vez. Talvez venha verdadeiramente a tor-nar-se americano e a criar uma base mais nobre para os seus mitos. Não sei dizer. Por ora, é preciso asseverar que o processo de branqueamento das diferentes tribos e a ascensão da crença em ser-se branco não se concretizaram com provas de vinho ou a comer gelados, mas saqueando a vida, a liberdade, o trabalho e a terra; chicoteando costas; acorrentando braços e pernas; estrangulando dissidentes; destruindo famílias; violando as mães; vendendo os filhos; e vários outros actos destinados, antes de mais, a negar a ti e a mim o direito de protegermos e governarmos os nossos próprios corpos.

Ta-Nehisi CoatesTa-Nehisi CoatesO novo povo não é original a este respeito. Talvez tenha existido, em dado momento da história, uma qualquer grande potência cuja ascensão não passasse pela exploração violenta de outros corpos humanos. Se ela existiu, ainda não a descobri. Mas esta banalidade da violência nunca poderá desculpar a América, porque a América não visa o banal. A América acredita ser excepcional, a maior e mais nobre nação que alguma vez existiu, um cavaleiro solitário entre a cidade branca da democracia e os terroristas, os déspotas, os bárbaros e outros inimigos da civilização. Não se pode declarar que se é sobre-humano e ao mesmo tempo alegar um erro mortal. Proponho levar a sério as declarações dos nossos conterrâneos sobre o excepcionalismo americano, o mesmo é dizer que proponho submeter o nosso país a uma fasquia moral excepcional. É um projecto difícil, pois existe à nossa volta um aparato que nos urge a aceitar a inocência americana prima facie e a não inquirir demasiado. E é tão fácil olhar para o lado, viver com os frutos da nossa história e ignorar o grande mal feito em nome de todos nós. Mas tu e eu nunca tivemos verdadeiramente esse luxo. Creio que sabes isso.

Escrevo-te quando tens quinze anos. Escrevo-te por-que este foi o ano em que viste Eric Garner3 a ser asfixiado até à morte por vender cigarros; porque sabes agora que Renisha McBride4 foi abatida a tiro por estar à procura de ajuda; que John Crawford5 foi abatido a tiro por deambular numa loja. E viste homens fardados passarem num carro-patrulha e assassinarem Tamir Rice6, uma criança de doze anos que eles estavam obrigados, por juramento, a proteger. E viste homens com a mesma farda a espancar Marlene Pinnock7, a avó de alguém, junto a uma estrada. E sabes agora, se não o sabias antes, que as esquadras do nosso país foram investidas com a autoridade de destruir o teu corpo. Não interessa se a destruição resulta de uma infeliz reacção excessiva. Não interessa se teve origem num mal-entendido. Não interessa se a destruição advém de uma política estúpida. Se venderes cigarros sem a autorização devida, o teu corpo pode ser destruído. Se levares a mal que alguém tente cercar o teu corpo, o teu corpo pode ser destruído. Se virares para umas escadas escuras, o teu corpo pode ser destruído. Os destruidores raramente serão responsabilizados. Em muitos casos, receberão pensões. E a destruição é meramente a forma superlativa de um domínio cujas prerrogativas incluem buscas, detenções, espancamentos e humilhações. Tudo isto é comum para pessoas negras. Nada disto é novidade para pessoas negras. Ninguém é responsabilizado.

Não há nada de singularmente maligno nestes destruidores ou mesmo neste momento. Os destruidores são apenas homens que põem em prática os caprichos do nosso país, interpretando correctamente a sua herança e legado. É difícil fazer face a isto. Mas todo o nosso vocabulário – relações entre raças, divisão racial, justiça racial, discriminação racial, privilégio branco, até mesmo supremacia branca – serve para obscurecer o facto de o racismo ser uma experiência visceral, que desloca cérebros, bloqueia vias respiratórias, rasga músculos, extrai órgãos, parte ossos, esmigalha dentes. Nunca podes desviar o olhar disto. Tens de lembrar sempre que a sociologia, a história, a economia, os gráficos, as tabelas, as regressões caem todos, com grande violência, sobre o corpo.

 

O livro que pôs a América a discutir o racismo nas livrarias a 1 de Março.

Para mais Informações: Isabel Castro Silva  T (+351) 964 440 940 Editorial Ítaca

  • 1. 1 No original, Middle Passage, a viagem dos navios negreiros de África para as Américas, constituindo o segundo troço do circuito triangular de comércio de escravos: da Europa para o continente africano, daí para as Américas, e daí de volta para a Europa.
  • 2. 2 «Trilho das Lágrimas» (Trail of Tears) é o nome dado pelos índios cherokee à migração forçada e ao abandono das suas terras que resultaram da Lei de Remoção dos Índios de 1830.
  • 3. 1 A 17 de Julho de 2014, Eric Garner, homem negro de 34 anos, foi detido pela polícia de Nova Iorque por estar a vender cigarros à unidade. Durante a de-tenção, Garner foi imobilizado e asfixiado por um dos polícias, tendo repetido a frase «Não consigo respirar» várias vezes até perder a consciência e morrer. No final desse ano, o júri ilibou o polícia Daniel Pantaleo, homem branco de 29 anos, e essa decisão espoletou uma grande onda de protestos. Mais tar-de a família Garner receberia uma indemnização de perto de seis milhões de dólares.
  • 4. Rapariga negra de 19 anos que, depois de ter tido um acidente de carro, bateu à porta e nas janelas da casa de Theodore Wafer, para pedir ajuda, na madrugada de 2 de Novembro de 2013. Wafer matou Renisha McBride com um tiro de caçadeira, tendo explicado à polícia que julgou que alguém estaria a tentar forçar a entrada em sua casa. Wafer, homem branco de 55 anos, foi condenado por homicídio em 2º grau e condenado a uma pena de 17 a 34 anos de prisão.
  • 5. A 5 de Agosto de 2014, John Crawford, rapaz negro de 22 anos, foi morto numa loja Walmart no Ohio por dois polícias que haviam recebido queixas de outros clientes da loja, segundo as quais Crawford estaria a exibir uma arma. A arma era de brinquedo (à venda na própria loja), e os polícias não foram condenados.
  • 6. Também Tamir Rice, rapaz negro de 12 anos, foi morto por dois polícias por empunhar uma arma de brinquedo, a 22 de Novembro de 2014, no Ohio. O caso ainda está a ser investigado.
  • 7. Marlene Pinnock, mulher negra de 51 anos que tivera recentemente o seu primeiro bisneto, foi atirada ao chão e brutalmente espancada pelo polícia branco Daniel Andrew, a 1 de Julho de 2014. Em Setembro, Andrew aceitou demitir-se e Pinnock recebeu uma indemnização de 1,5 milhões de dólares.

por Ta-Nehisi Coates
Mukanda | 14 Março 2016 | EUA, pré-publicação, racismo, segregação racial, Ta-Nehisi Coates, violência policial