A Grande Pausa produz efeitos. Surprise!

Cara Marta, 

Esta quarentena que já se vai despedindo de nós, fez um retorno surprendente quanto à minha relação com o Cinema. Desde criança, foi a fuga que encontrei para a minha vida interior, visto ter-me sido negado estatuto ou identidade Trans. Não é por acaso que a minha Licenciatura dá-se 30 anos mais tarde e já em Londres, em Film Studies, ou seja Filmologia, chamam-lhe os espanhóis. A minha tese final em 2000 é intitulada The Genderless Spectator. Procurava entender as ideias de identidade de Buttler e Mulvey em relação à minha própria experiência de prazer voyeurístico. Anos mais tarde, em Lisboa, numa conferência falei com a Mulvey e expliquei-lhe a importância que o texto dela teve na minha viagem de auto-descoberta. O texto Visual Pleasure & Afterthoughts foi também celebrado em Lisboa quando fez 40 anos de existência. Uma maturidade para o pensamento tal como para uma pessoa. Com a preciosa ajuda do Festival Temps des Images, mostrámos o filme Riddle of the Sphinxco-realizado pela autora, que está intimamente ligado ao texto. Isto já no doutoramento, numa conferência que fazia parte do programa a realizar. Nessa noite fechei um ciclo de vida, no qual procurava comunicar-me em coletivo, através da partilha de conhecimento nestas áreas e ainda sem fazer ideia de que o meu coming out estava por acontecer. A minha vida era muito arrumadinha e parecia que tudo iria terminar bem. Não fazia ideia do Bubble Burst que me esperava… I exploded ahahah.

Esta pausa devolveu-me tempo para revisitar alguns textos e filmes que andaram comigo uma vida. O Gender Trouble cuja capa já está “para lá de Marraqueche”. O Rear Window do Hitchcock que sempre adorei. Em criança, vivi transvestido e com prazer nos filmes, todos eles, do Rambo ao Habla con Ella. Igualmente a vivenciar uma identidade invisível que se escondia por detrás dos personagens masculinos e só com a ajuda da Teoria Feminista de Film Studies é que cresci como ser Yang. Aprendi a não me relacionar com as minhas companheiras de modo machista e dominadora, apesar de nem sempre conseguir, por vezes penso que pequei pelo contrário. Mas, isto é outro Carnaval sem visibilidade fica difícil trabalharmos em self development. Hoje entendo isto também, muito claramente. Mais uma razão para se considerar o direito a Identidade um Direito Humano. Eu cresci pela matéria e material que fui investigando sem ter muito como virar para mim um eixo de reflexão, ficava tudo no Outro nos Outros. Fazia-o em geral e com muita garra política mas, na prática, a teoria é outra. Numa reunião recente do Grupo Trans da ILGA disse “não temos que ser masculinos e femininos dos anos 40, ahahah!” Fico banzado como me apanho a cair em maus estares idiotas de masculinidade ferida. Como se o ser Trans me tivesse roubado as mascaras de bom comportamento feministas. Um retrato caricato que só o humor inteligente me protege de ser mesmo humilhante. Como diz a minha irmã “era o que faltava”. Mas é, pergunto-me se outros Trans se deparam com a mesma cena pessoal ou se sou só eu que me vejo a braços com uma extra camada de ansiedade. Lembro–me das palavras da Lynne Segal “masculinity is not in crisis, masculinity is crisis”. 

Nada melhor do que lutar com um vírus (que os mídia chamam Guerra) para nos desmanchar aquele sentido de heroísmo característico de Guerra Armada. Uma crise cujos destemidos são os cuidadores de saúde, os motoristas, os caixas de supermercado. Já vinha anunciada a transição desde a Greenpeace e os activismos mediáticos que começaram a fazer frente ao Herói combatente de Guerra Armada. Estamos a diversificar o arquétipo e isso é mesmo muito trabalho pela Paz. Falta nomear o que sai de casa para fazer as compras básicas. Saí da toca para ir num rasgo de heroísmo e alívio disfarçado comprar fiambre. Estão a abrir as comportas da nova fase de de uma nova normalidade, mas os efeitos todos desta Grande Pausa, assim me apetece chamar a Quarentena, vamos agora começar a descobrir. Mais dívida é um, mais ajudas é outro e mais desemprego. Falta o resto, o menos carbono, o desastroso avalo político de dirigentes como Bolsonaro ou Boris Johnson, as novas dinâmicas de paz por casa. Aqui, muito mais cedências e entendimentos de parte a parte, falo de família nuclear, mas também visivéis, em vez de invisivéis, mais sinais de discriminação e de exclusão. No meio da pandemia não pude deixar de procurar trabalho e é visível o aumento de candidaturas para cada lugar. Cresce a oferta de Online jobs e a lata das empresas em exigir de quem está em casa um computador para o service da empresa. Abusos e sinais de que o trabalhador é quem paga a fatura da escassez da crise, seja ela virose ou económica. Que grande lata pá! Uma empresa que disponibiliza séries e filmes online, da maior que pode haver, não fornece a sardinha de um mísero computador para trabalhar de casa. Tens que trazer a tua enxada para trabalhar, mas não para uma cooperativa – estás a ver? Eu uso o teu material mas dou-me ao luxo de continuar a ser um dos maiores negócios online sem qualquer hint de socialism que justifique o gesto de participação do trabalhador com a sua riqueza. Enfim, novos barões mais espertalhões que os do passado.Net coiso não tem dinheiro para fornecer os seus trabalhadores com equipamento para ficar em casa, entendes. São uns pobretanas sem audiência que chegue para tanta despesa – deve ser isso! 

Vi a Lagarde de sorriso e, cada vez que aquela mulher, sorri sinto um calafrio na espinha. Lá vem a conta da Grande Pausa para a mesa dos fundos. Trememos, mas o António Costa não. Fica todo certeiro. Dá apoio a quem precisa e residência a quem precisa e uma palavrinha a quem precisa e mesmo assim o BE diz que não chega. Sou pela total força de conjunto e direitos For All, mas sim penso: onde vamos encontrar tanto dinheiro? A questão não é só nossa, está claro. Já nem vale a pena fazer algo se não conduzir dívida, mas não era esta a linha de gestão de Sócrates? Pondo de parte a novela caricata de malas, motoristas e amigos etc, de um universo pessoal-público. O bom do maluco dizia: “esqueçam lá isso, não se paga e já está”. A Lagarde sorri e eu fico sério que nem um polícia. God Help Us All que vão fazer mais por conta desta conta. Andam os psicopatas a sorrir de esquina em esquina com a queda de mercados e pandemias. Metem medo ao susto, isso sim. Sem mais conversa injeta-se mais dinheiro. O capitalismo como o conhecemos agora parece precisar de injeções periódicas de capitais para não morrer. É um Federal Reserve dependente! E ainda anunciam a grande conversa que os ambientalistas e seus negócios é que vão salvar isto tudo, também acreditei nesta até ver um doc que me tirou as dúvidas – mais do mesmo! Esses e a Economia Digital. Deve ser essa mesmo. Levamos o computador para lhes dar uma ajudinha, cooperative? Enfim, estou a ficar um veado mais velho. 

Esta quarentena trouxe surpresas a muitos, mas a mim trouxe-me o retorno de uma ex-namorada sueca. Foi preciso o mundo parar para conseguirmos voltar a falar – foi o que senti com o meu ego exarcebado masculine. Its all me you see? Ahahah!!! A sério que foi uma surpresa maravilhosa. Dividimos por uns meses um apartamento em Bayswater, Londres, que me lembro tinha um fotógrafo que morava em frente e nos tirava fotos pela janelas – todas elas despidas de cortinas, que é aliás algo de que gosto muito. A Monika, sendo sueca, andava nua pela casa quando lhe apetecia e eu, está claro, tuga vestido desde o duche da manhã – sem essas frescuras nórdicas. Fazíamos um casal de lésbicas muito bonito, por isso não nos tocávamos em público ou aquilo era logo uma matilha de lobos. Tínhamos muita consciência desse foco. Lembro-me de, por mais uma vez, me revoltar essa chatice de ser lésbica. Its all me you see? Ahahah. Mesmo assim gravitava um pobre coitado de um amigo em torno da nossa casa e era chato como tudo porque não se calava com filosofia (foram tantos os chatos). Era um cromo e agora, justo nesta pausa, ficámos a rir desmesuradamente daquela seca. A Monika é fotógrafa e sempre teve cromos à volta que queriam uma fotozinha. Também o meu primo lhe pediu que lhe tirasse uma fotozinha artística, mas ela não cai nessas de Bô Querer Tirar Minha Foto e segue sempre a conversa como se não tivesse percebido. É uma fotógrafa de imenso talento. Sempre me afastava quando começava com as minhas ondas de cozinhar ou ler, e hoje afinal é o que mais sente falta. Olha que a vida tem coisas. Chega a grande pausa e pensou: “onde está o meu cozinheiro?”. Disse-lhe que estava em transição e por momentos tive receio de ela tentar tirar fotos, já tinha acontecido no passado. Foi a única grande discussão que tivemos. Foi esperta e percebeu por outras palavras que nada a esse respeito tinha mudado. Não sou nem serei nunca Spectacle – to the best of my abilities. Só na minha mão como sujeito e objecto simultâneo. Sobre isto existe muita reflexão a fazer. Porque se desloca o Trans male to female para uma zona de exibicionismo ou porque se deslocam os Trans female to male para o mesmo? Possivelmente para ganhar a vida que já me parece puro demais difícil de conseguir erguer com esta carga de identidade, mas algo mais há por aqui. Gostaria de passer ao largo desta zona e poder fazer a transição sem mirones ahah. Ela entendeu logo; Bô Não Quer Tirar Foto.

Continuamos em contacto e rimos como sempre rimos de tudo que era “normal”, era algo que partilhamos: um sentido de humor sobre a vida normativa. Foi recentemente criticada como fotógrafa por ser demasiado hetero, ou seja, os seus modelos são homens e os radicais LGBT não ficam satisfeitos. Ofereci uma solução, já que fui o único corpo de mulher com quem ela esteve – explicas, disse eu, gosto do masculino, até a única mulher com que estive saiu do armário como Trans. Gosto de homens – so what? Desatamos a rir porque ia mesmo trocar as voltas ao trabalho dos críticos do hetero norma… ahahahah! 

Enfim, piadas à parte foi uma enorme alegria voltar a contatar um amor do passado desta forma e algures fez-me regressar aos loucos anos de Londres e à calma que tive naquela relação. Estar com alguém que vem de uma cultura sem cortinas faz muita diferença. Só com os anos descobrimos que sim. Não é só blá blá… existe uma facilidade em trocar visões agora como sentia naquela altura. Mas então, Marta, para mim o amor não era Easy era o Drama. Deixei-a pendurada em Londres com um desaparecimento súbito do cozinheiro. Foram tantos os meus desaparecimentos. Esta questão de desaparecimento já explorada em terapia tem muito a ver com a disforia e provocou astronómicas perdas na minha vida. E eis que a Monika aparece a ligar de Estocolmo onde as pessoas seguiram com as suas vidinhas normais e apenas com distaciamento social que aliás já é, para os nossos padrões, o que faziam anyhow. Rimos disso também. A verdade é que a economia deles não deve ter levado a mesma factura da nossa. Perguntei-lhe como está a Suécia - boring - respondeu.  Boring?, respondi eu, mas rica. Ela disse YYYEEESSS com alegria e rimos. Este Norte-Sul que até o Sá Carneiro provou é refrescante. Mais uma vez a minha mudança a minha estória é levada com uma dose de OK então agora é assim. Mas quando é que nós largamos o DRAMA? Foi um suave beijo sueco o que senti, Kiss Kiss, como sempre se despediu de mim. Mais riqueza e menos drama era bom para este Trans – e para todos os outros. Começo a fazer uma ligação entre Drama e pobreza, e não é que o Segundo faça o primeiro mas que o primeiro faz o segundo. Começar por tirar as cortinas e deixar a transparência das nossas vidas tomarem lugar público já era um passo. Em vez de filtrar o que interessa para os Facebooks e Instagrams etc. Diz tanto e é tão velha esta conversa, mas segue ali, sem dúvida, a dizer algo. Que saudades tenho de tudo e que bom é voltar a sentir no presente quem nos amou. Situacional também. Fiz uma pirâmide: Identidade. Localização. Comunicação. Família. Ego e Trabalho. Ando a trabalhar nestas frentes para conseguir arrumar-me no presente e no passado.  

E éis que nos começamos a telefonar mais do que a conta e que a alegria entra pelo dia como uma manhã adiada. Ficamos a pensar, mas que se passa? E que fazemos com isto. Voltou tudo, Marta. Um retorno fulminante de absolute easy. Diz-me ela então I’m done with waiting. Informa toda a familia que afinal eu sou Trans e já me estou a resolver e vamos ficar juntos. Pronto. Um despacho sueco. A verdade é que sempre me queixei horrores de deixar Londres e a minha vida em troca de dramas familiares e de uma namorada portuguesa mais mimada do que o Ronaldo. Voltei a rir-me, a sentir falta da suas mensagens, a olhar o futuro, a pensar no futuro. Faço um filme? Pensei. Até isso a vontade de fazer documentários me voltou. A Monika amou-me sempre e eu levei muito tempo a aceitar esse amor easy, fun e produtivo que tivemos. Trabalhávamos muito em Londres em legendagem, em fotografia, em estudo e, no meio de muito café sueco (é a coisa mais forte que existe), tínhamos uma relação sem dificuldade nenhuma. Foi o que voltou a acontecer sem qualquer barreira – thus, os meus dias suecos voltaram. Graças a esta quarentena tivemos espaço para nos reencontrarmos e éis que vem fadinho com ele: é que parece destino.

Diverti-me a fazer uma apresentação para proposta de filme, aqui fica o link. Não sei se acontece mas que importa, divirto-me a fazer estas coisas. 

Só por milagre né na terra de nossa senhora de Fatima ahahah só por milagre. É que de brandos costumes não temos é nada.

por Adin Manuel
Corpo | 30 Maio 2020 | Coronavírus, normalidade, quarentena, quotidiano, trans