E eu não me lembro dos teus olhos serem azuis

Cara Marta,

Foi no pátio do Colégio Saleseano de Campo de Ourique que vi o primeiro “preto”. Era o meu amigo Fernando, bom guarda-redes como eu, mas informado pelos meus amigos, fiquei a saber que era preto. Não o vi como tal assim sem mais nem menos, fui para Luanda em bébé e consta que brinquei com blacks na minha infância, por isso essa coisa da cor não me era legível. As crianças tinham nomes, tal como brinquei com os ciganos do bairro de São João, na Estrada da Luz. Não pensava a não ser que simplesmente brincávamos. Também não me lembrava que os olhos da minha namorada sueca eram azuis. Lembrava-me, sim, da sua boca, que é linda e fala muito. Race é sem dúvida uma aprendizagem. 

Lembro-me bem do momento em que chamaram “preto” ao Fernando, e de repente, vi cor onde havia Fernando. Devia ter uns 7 ou 8 anos e ali acordei para a cor, e depois vi que o meu amigo Sérgio, que tanto gostava também, era mais escuro e vi que o melhor aluno da turma era o Alexandre, branquinho, mas não olhei para mim. Chamaram-me muitos nomes na infância e passei pela devida categorização de excluídos, através de name calling. A quem era aceite nenhum nome assentava. Ninguém te chamava de “branquinho” ou de “bem comportado” ou o que for. A minha paixão de infância é uma miúda chamada Alice, linda e bem comportada, mas tinha um coração de ouro e falava até comigo, imagina, logo eu, um dos piores. A Alice não deixou de parte as minhas capacidades intelectuais, sorriu com o meu 18 a Matemática, comentado como feito quase impossível, pela doença que combatia na altura, mas também pela minha estranha desadequação de género, e, já agora, os meus amigos de raça porque, sendo branco e louro, porque eram os meus melhores amigos dark? Trazia talvez da minha tenra idade uma familiaridade que ficou, quem sabe? E agora? Os olhos azuis que me amam? Que faço eu com uma sueca de olhos azuis?

Deixei de ver merda faz muitos anos, e voltei a ver pessoas que me agradam pelo brilho nos olhos ou a simpatia do sorriso, ou as mãos que são sempre algo que me diz muito sobre elas. A Monika tem umas mãos lindas que me fazem viajar na maionese, porque segura uma câmara fotográfica com elas, e é apaixonada pelo que faz e isso é encantador. Tal como a maneira como mexe os lábios a procura da próxima palavra. Coisas que vejo e que os outros bem podiam ver, não fossem encandeados com diferenças educadas e fúteis como tudo. Vi o Fernando como bom guarda-redes e segui a vê-lo como tal. Não colou a pastilha, não em mim. Por isso, lá tenho que lidar com os olhos azuis da Monika, sem que me cole a pastilha nos olhos e a passe a ver como uma sueca loura, de olhos azuis e de preferência burra, em vez de uma mulher artística com a boca mais linda que já vi e a decência de um ser humano profundo, que deita por terra qualquer das minhas arrumadas teorias. Sente mais que o sul, que era suposto ser eu, e manda-me com cada arrumação que me calo mesmo sem mais nada a acrescentar - you are correct Monika. Simples? Sim, é simples, mas difícil como tudo. Já me vai devolvendo a pastilha e diz- me - you are correct so lets just do it. Bem ditas cortinas deitadas ao chão. Assim se mudava o mundo na base do “ah pois, é que tens razão”. Period ou ponto final parágrafo.  

Os Estados Unidos é um país racista. Period. A Europa é colonialista. Period. Os Trans não são aberrações da natureza. Period. Isto está tudo mais atrasado do que esperávamos. Period. Enfim, vivíamos numa de suecos ou seja, vai morrer muita gente? Sim, vai. A Economia leva outra panada? Não, não deixamos. Pois é, a imunidade que procura o quase magicien sueco com a sua política de desenvolvimento de imunidade. Metemos o nariz fora de casa e levamos logo com uma derrocada nos números das tabelas dos bem comportados e mais mil avisos de perigo. Que fazemos Marta? fingimos que o que não tem solução terá. O melhor seria calcularmos imunidade mas como? O sueco falhou.

Continuo a escrever do aeroporto de Frankfurt a caminho de Estocolmo. Tinha que apanhar um avião para a ir ver, e enfrentar Covid em transportes e na Suécia, pareceu-me que a razão merecia. O que nos faz parar de viver? O que nos paralisa? A Covid é muito séria mas não tarda muito e já nem sabemos voltar a sair de casa. É sexta-feira e esta noite tenho uma pasta com tomato sauce e uma garrafa de vinho tinto a minha espera em Estocolmo. Há coisas que são mais importantes que a vida. Ela. Saber que raio me entra pela vida de novo, pela janela, o amor do passado perdido em tanta política e teoria. Esqueci-me das coisas simples como o estar com quem conseguimos falar. Que nos entende e era o principal, não o complementar. O principal era o contacto e, nesta era de máscaras, parecemos poesia andante a espelhar o medo do contacto e contágio - e não, não sou como o Bolsonáro. A Covid existe, mas isto anda a ficar poético como tudo. O nosso Trump debita números de emprego, e de mortos nada né? Black Lives Matter. Sim a Covid mata mais blacks nos Estados Unidos da treta. 

A Monika já me ligou vezes sem conta she’s nervous e eu também. Passamos a quarentena a reconciliar divergências anteriores. Working it out. Trabalho de escriturário numa relação. Ele existe. Estão sete pessoas na secção de fumadores do aeroporto de Frankfurt. Está tudo com medo de voltar a viajar e eu, por ela, passo o portal, mas não é preciso muito, a minha natureza é destemida de tragédias e acontecem-me tantas. Deve ser por isso, menos espaço a fantasias burguesas.

Os meus anti-psicóticos estão a fazer efeito e junto com a dosagem da testosterona a aumentar, algo parece novo por aqui. Um vislumbre do que é viver em paz comigo e com os outros. A família já vai agradecendo tanta tranquilidade e acham a Monika muito bem. Será dos olhos azuis? Da nossa escala de reaproximarmos fomos de I talk até I see até agora I be contigo. Vamos ver o que acontece. Estou a meio caminho entre Lisboa e Estocolmo, no limiar entre vidas. Passado, presente, passado, presente, futuro. Decidimos quebrar o élan online e agora lidarmos com presença. Cheguei a pensar que não conseguia vir, mas devagar tudo se consegue. É essa a próxima tarefa humana: recuperar devagar deste isolamento marado, sem perder a esperança de que algo nos aguarda que vale a pena a travessia. Não existem bloqueios maiores do que aqueles que estamos a viver. O recato pode se transformar num vício. Um isolamento que promove o egoísmo a misantropia, o que é bom para os votos no Trump e mau para o resto do mundo. Estou a caminho de Estocolmo e não me apetece ficar em casa. Parar, Marta, é morrer e a economia está a dizer isso mesmo. Já mando relatório do país enfant terrible da Covid. É onde me dirijo. 

A Monika está na cama a dormir. É o primeiro amanhecer com sol desde que cheguei. São 6.43 minutos. Os suecos são muito civilizados, assim fica fácil fazer o que estão a fazer. Fast track. Morre quem se espera que morra, e seguem vida. Duro, sim, nada mais duro que encarar a mortalidade com tanta realidade. O trabalho fotográfico da Monika é, nestas linhas de dureza com o corpo, a vida e ainda assim não deixa de ser poético e belo. Algo de bom o permeia, talvez um compromisso com a verdade. Um compromisso com a vida e não a fotonovela. Somos profundamente diferentes e ainda assim lovers. Pergunto-me se amar a diferença não se apresenta como um desafio concreto nas nossas vidas. Algo que se impõe como escolha. Uma relação. Um outro país. Uma outra classe. Raça ou mesmo orientação identitária ou sexual. Não ficar entre balizas seguras do que conhecemos sobre nós e sobre os outros. Embarcar nesse terreno de descoberta, mano a mano, e não sobre os livros, os filmes as sessões de discussão sobre a diferença. Gastamos tanto tempo e recursos nisto e fazemos tão pouco. 

O nosso cantinho tem, sem dúvida, um toque de lamecha com a vida. Gostamos dos amigos e dos velhinhos da família nossa e dos outros. Parece-nos esta Covid um susto e uma ameaça a tudo isto. E está para perdurar. A Monika vai marcando jantares para conhecer o seu novo círculo de amigos. Começa pelo Nico, um verdadeiro veterano LGBT na Suécia, marcado pelo desaparecimento de tantos pelo outro vírus, agora uma leve memória em conversa de pandemias, falo da SIDA. Falamos sobre isto e sobre o que representa no contexto deste novo mundo, onde até esse pequeno incidente está ultrapassado. Conta-me que jovens rapazes agora tomam um comprimido e vão brincar como lhes apetece. Perdemos muitos e isso ainda está no ar da conversa cuidada e sensível. Foram muitos. Pensamos sobre isso e sentimo-nos ainda ligados a uma tragédia anterior que ficou quase sem espaço de memória com a Covid. Um dos seus filhos é gay e fala-me da forma despreocupada com que enfrenta a sua orientação sexual - como se fosse normal. A dois veteranos ressoa como uma vitória no tempo que é subtil, mas a mais importante - novas gerações que não têm que sofrer o que sofremos. É assim, como em qualquer família ou clã alargado, ficamos contentes. Temos pequenas conquistas, mas depois grandes, como a de um rapaz poder viver a sua vida amorosa sem o drama que vivemos, simplesmente vive-la sem grandes dramas. Fala-me também das taxas de suicídio, que ainda enchem o interior da Suécia, que não é Estocolmo, e avisa-me que ainda há muito para fazer por esses interiores. Vou-lhe falando das leis em Portugal e das mudanças possíveis e as impossíveis de fazer. Sabe-me bem uma conversa tão adulta sobre o meu grupo e história. Um sentimento de belonging e e pertença apodera-se de mim. Sou este grupo, desde que em 1994 desfilei em Londres na Marcha Pride e encontrei todos os outros que, tal como eu, viram as suas vidas alteradas por uma condição de identidade. All lives matter. Black, Jewish, White, Gay, Straight and so on 


Estamos perante uma questão no início deste século 21. Progresso ou retrocesso. O discurso da Angela Merkel apareceu nestes dias a apontar caminho rumo a uma Europa, que não quer perder o seu projeto de unificação, mesmo perante e principalmente perante um desafio económico colossal. Esta relação norte-sul sempre em tensão, e agora, west, east também. Complexidades que fazem uma Europa difícil de manejar e, ao mesmo tempo, tão interessante. Trata-se de um momento histórico onde os alemães avançam e os ingleses recuam. A Europa encontrou o seu líder, por convicção, mas este não é nada perfeito nem pode, num ápice, fechar esta desigualdade de eixos. Vai levar tempo e recursos. A Suécia está ainda no eixo do socialismo (social democrata) e mantém relações bem ao seu estilo, apaziguadoras e pacificadoras. Ganhou com a presença da Greta internacionalmente uma missão: a de ser dura nos limites e exigências com o green deal. Ganhou presença discursiva com esta saída dos ingleses do panorama moral europeu. Há muitas décadas que trabalha discretamente nas relações internacionais em direitos humanos e questões ligadas ao ambiente. Tem uma visão muito particular de socialismo que promove um tipo de Swedish dream que contempla uma sociedade mais feliz e menos desigual, mas não condena a riqueza nem a abundância. Querer pagar os impostos numa sociedade que os aplica de forma a criar mesmo uma rede de segurança e bem estar social, é apenas um resultado. A Suécia aparece como alternativa moral ao modelo inglês. Afinal a estrela Greta anuncia um novo paradigma. As novas gerações ligadas a questões ambientais e, ao mesmo tempo, pouco negociadoras com a verdade. Enfim, desenham-se novos quadros de modelos e valores. All lives matter indeed. O ambiente no epicentro destes novos modelos. Que virá?

Ando aqui de um lado para outro a aprender a não pôr a mão na cara o tempo todo, a manter distância de 2 metros entre pessoas e a desinfectar as mãos e o telemóvel, a toda a hora e ao mesmo tempo a refazer uma relação que sofreu um afastamento de quase duas décadas. Isto tudo no mês de julho, e aqui, o verão parece um despertar de primavera portuguesa. É que temos muito sol, e culturas que lhe correspondem, nem sempre se entende bem isto, mas é cada vez mais claro que o Norte já anda muito mais habituado ao seu contato com o Sul, e ficarem sem férias uma vez por ano ao sul, não lhes apetece, acho. Sou eu que estou no Norte. Fiz bem em vir até ao país da Monika nesta pausa. Está a chover. Está deitada enquanto escrevo nesta manhã. O mundo por momentos parece-me certo, acolhedor e simples. Longe da buzz do Sul até parece que nada de errado o pode perturbar. Ando sobre efeito da Suécia, mas sei mais que isto. Acordei estes dias com vontade de escrever uma estória aqui, visto as pessoas que vou conhecendo me parecerem quase irreais. Valha-nos o amor que aproxima de forma quase mágica o que parece distante. 

por Adin Manuel
A ler | 8 Agosto 2020 | Coronavírus, Europa, Norte, Raça, Suécia, sul