A construção de um legado de inclusão na 7.ª Arte

Nos últimos anos a discussão em torno da falta de diversidade na indústria de Hollywood tem sido alvo de maior atenção. Questões estruturais como a predominância do privilégio branco e do racismo, das minorias étnicas ou da igualdade de género, têm sido colocadas à indústria cinematográfica americana, um canal responsável pela filtragem de valores éticos e morais e pela criação de modelos de identificação e projeção do espectador nas sociedades industriais e tecnológicas contemporâneas.

Reconhecendo a necessidade em adotar metas de inclusão que desconstruam paradigmas estabelecidos, a indústria cinematográfica começa a delinear formas de contornar a invisibilidade das realidades marginais dentro dos grupos minoritários. De bom exemplo, surge-nos uma das maiores plataformas de streaming, a Netflix, empresa norte americana com espetro internacional que nos últimos anos tem vindo a apostar na partilha de conteúdos digitais de entretenimento com profissionais tradicionalmente sub-representados como Laverne Cox, Rachel Morrison, Yance Ford e Dee Rees.

Assumindo-se como um grande negócio, a Netflix mostra dar ao público não só o que ele quer mas também uma posição de valorização da arte cinematográfica virada para a narração e reflexão da diversidade cultural e humana a partir da criação de modelos de inclusão e de diversidade duradouros no seu serviço. Neste jeito, encomenda um estudo à Universidade da Califórnia do Sul sobre os filmes e séries que a Netflix produziu nos EUA durante o período de 2007 a 2018, de forma a conhecer a composição das suas equipas de atores e atrizes, dos criadores, produtores, argumentistas e realizadores em torno da representatividade da identidade de género e sexual, etnia e das pessoas com deficiência.

Considerado como o mais abrangente até aos dias de hoje, este estudo avalia cerca de 1200 filmes e 53178 personagens, esclarecendo-nos que apesar do bom caminho que a Netflix mostra trilhar ao longo dos últimos anos, com a contratação de um maior número de mulheres de várias etnias para realizarem os seus filmes, com o alcance da paridade de género entre protagonistas das suas séries e filmes, ou mesmo do aumento da representatividade de grupos étnicos/raciais durante o período de estudo, o privilégio branco heterossexual masculino mostra prevalecer como dominante atrás e à frente das câmaras mostrando ainda um longo caminho pela frente.

A crise de inclusão revelada pelo estudo começa por ser mais percetível nas personagens com deficiência; nas personagens latinas e LGBTI+, sobretudo se considerarmos a ausência do género feminino. A representatividade do género feminino à frente e atrás das câmaras, é flagrante. Mostrando-nos a falta de oportunidades das mulheres quer para cargos de produção de conteúdos (direção; produção; composição musical), quer na atribuição de papeis principais ou de papeis narrativos entre as diferentes tipologias de filmes, estando também sujeitas a estereótipos de idade e de sexualização dos seus corpos.

Entre 2007-2018, a sexualização entre os géneros das personagens mostra não ter sofrido alterações significativas. Começando com a sub-representação das mulheres acima dos 40 anos (com apenas 25% dos papeis atribuídos), da propensão das mulheres latinas em serem hipersexualidadas em comparação com outros grupos étnicos (mulheres brancas, negras, asiáticas), ou ainda pelo uso de roupas sexualmente reveladoras e pela nudez, marcadamente presente entre os papeis femininos mais jovens que os papeis masculinos.

Como fator explicativo os investigadores mostram que o problema se prende com a representação dos cargos de produção de conteúdos, sendo que entre 1.135 criadores de conteúdos apenas 4.5% das mulheres seriam realizadoras, 14.4% das mulheres argumentistas; 21.1% produtoras e 2.8% compositoras. Sendo necessário procurar adicionar mais mulheres à narrativa popular na produção de conteúdos, de forma a desvincular a ligação entre a identidade de um personagem principal e do diretor de cinema, aumentando as oportunidades para as mulheres nestes cargos.

Relativamente à diversidade interseccional nas representações LGBTI+ entre 2014 e 2018, percebe-se também um aumento pouco significativo entre as personagens Bissexuais e Trans nos melhores filmes de 2018, concentrando-se mais uma vez em homens brancos (63.8%). Em 2018 um total de 4 387 personagens foram avaliados pela sua sexualidade sendo que apenas 58 personagens ou 1.3% dos papeis falados foram preenchidos com retratos LGBTI+ e nenhum personagem trans retratado nos 100 melhores filmes de 2018.

Também a incorporação de papeis de pessoas com deficiência parece ser deficitário. Entre os 4443 personagens em análise apenas 1.6% foram representados com algum tipo de deficiência física, cognitiva ou comunicativa, sendo que 72.5% do sexo masculino e 27.5% do sexo feminino. A incorporação de personagens com deficiência mostra ser essencial para que o cinema de Hollywood reflita a realidade do mundo em que vivemos, rompendo com estereótipos e uniformizações culturais estabelecidas.

Assim, propondo algumas medidas que contrariem as disparidades contínuas na indústria cinematográfica criando mais oportunidades para que as vozes das pessoas das comunidades sub-representadas sejam ouvidas, sugere-se a reflexão em torno da interseccionalidade das vozes que faltam, da representação autêntica dos grupos excluídos, começando pela contratação de pessoas nas diferentes áreas da empresa, como são os criadores de conteúdos que devem contemplar a diversidade dos grupos sociais e étnicos nas suas obras.

Junto com os resultados apurados pelo relatório a Netflix anunciou também a criação de um Fundo para a Criatividade Inclusiva num total de 100 milhões de dólares para investir em várias organizações externas com experiência na preparação de comunidades sub-representadas para alcançar o sucesso nas indústrias do cinema e da televisão, além de programas específicos da Netflix que ajudarão a identificar, formar e empregar novos talentos em todo o mundo.

Invisibilidade pandémica nos melhores filmes de 2018:
33 filmes sem personagens negras ou mulheres afroamericanas; 54 filmes sem personagens asiáticas ou mulheres asiáticas;
70 filmes sem personagens latinas;
89 filmes sem mulheres LGBT;
51 filmes sem mulheres multirraciais;
83 filmes sem personagens femininas com deficiência.

Artigo originalmente publicado por Cinema Sétima Arte a 28.02.2021

por Daniel Morais
Corpo | 13 Março 2021 | arte, cinema, dee Rees, Igualdade de género, inclusão, laverne Cox, LGBTQI, minorias étnicas, Netflix, Rachel Morrison, racismo, representatividade, sociedade, yance Ford