O que há num nome?
Começo com Aldegundes, uma menina da escola onde andei. Não gostava nada do nome. Tinham-lho posto os pais para agradar a uma tia (rica). Dou-lhe toda a razão (à Aldegundes) – imagine-se o desânimo dos (futuros) namorados quando se lançassem à indeclinável tarefa de lhe cantarem os louvores em rima. Mas, ainda assim, teve mais sorte do que os três filhos do sr e da sra Campbell, de New Jersey (EUA), a quem foram dados os nomes de Adolf Hitler Campbell, Honszlynn Hinler Jeannie Campbell (Hinler, em honra de Heinrich Himmler), e JoyceLynn Aryan Nation Campbell. Diz a notícia onde li isto que, mais tarde, o sr Campbell requereu uma alteração da certidão de nascimento da filha. Queria corrigir a ortografia do nome, de Arian para Aryan.
Por estes exemplos, já se pode ver como pode ser pesada a herança legada pelo nome que nos calha em sorte. Oiça-se a coitada da Julieta (sim, a do Shakespeare) quando se queixa como os seus amores com Romeu se vêem travados pelos nomes das famílias (rivais) que cada um arrasta consigo: “Que há num nome? Não teria a rosa, se lhe déssemos outro nome, igual perfume?” Será justa a ingenuidade da Julieta, mas nem sempre são justas as razões da força e de quem tem o poder de decidir. Não admira também por isso mesmo que haja quem pondere (logo que pode fazê-lo, atingida a idade da razão, atingida a independência) renegar essa herança.
Claro que também haverá sempre alguém para contrariar: pode apagar-se o nome de alguém, dirão, mas a verdade é que ao apagá-lo se apaga também a sua identidade. Mas que identidade? – há que perguntar. A de quem (im)pôs o nome ou a de quem o carrega? Pergunte-se à Aldegundes (a quem as amigas, aliás, tratam por Aldy). Pergunte-se aos meninos americanos a quem (im)puseram o nome de “Hitler”, ou de “Himmler”, ou de “Nação Aryana”.
E o que se diz para uma pessoa como não dizê-lo quando são milhões de pessoas, países inteiros, “batizados” por quem se considerava donos deles?
Chega o colonizador português (ou francês ou inglês, que a lógica é a mesma) a uma terra e porque aí vê que a riqueza a explorar é o marfim dá-lhe por nome Costa do Marfim. Se ouro, Costa do Ouro. Se o que há de mais imediatamente visível para enriquecer é a madeira exótica, o pau-brasil, pois ficará “Brasil”. Se o estuário onde aportam lhes parece ter a forma de um gabão, o casaco que usam os navegadores portugueses, é mesmo esse o nome que darão ao novo entreposto de escravos, Gabão. E assim ficará, declinado nas várias línguas europeias. Outro entreposto dos escravos que traficavam fica numa zona rica em camarões? O país será chamado Camarões, decidem os comerciantes portugueses, ignorando as mais de 230 línguas locais, faladas por milhões de pessoas. Pode ser que o colonizador chegado a novas terras queira homenagear o rei a quem serve: chamará a essas terras Filipinas, do nome de Sua Majestade Filipe II de Espanha. Outros batizarão de Rodésia uma nova colónia em homenagem ao empresário e colonizador britânico Cecil Rhodes. Os portugueses darão à capital de Moçambique o nome de um comerciante e aventureiro, Lourenço Marques, que aí assentara arraiais para explorar o marfim e o cobre, como o testemunha D. João de Castro já em 1545.
Depois…, sabe-se como é, mudam-se os tempos mudam-se as vontades. Por meados do século XX um terremoto avassalador abala todo o edifício colonial. Um a um, povos e nações dominados pelo colonialismo europeu sacodem o jugo imposto há séculos. A estes abalos hão de seguir-se réplicas imparáveis, que ainda nos dias que correm se fazem sentir. Doravante donos da sua vontade, esses povos querem desfazer-se de uma herança que lhes era alheia. Derrubam-se estátuas, monumentos, memórias dessa outra vontade que não era a deles. As línguas locais vêm ao de cima: Burquina Fasso (e já não Alto Volta), Essuatíni (e não Suazilândia), Sri Lanka (e não Ceilão), Botsuana (e não Bechuanaland), Gana (e não Costa do Ouro). Nomes dados por assentes como o da Índia, estão agora na berlinda. O ressentimento contra a dominação britânica levou já a mudanças de nomes de ruas e cidades em todo o país. O último passo pode não estar longe: O lugar do primeiro ministro Modi na última cimeira do G20 estava assinalado por uma placa onde se lia “Bharat”, um termo sânscrito com mais de dois mil anos usado para designar o país.
Já estou a ouvir os paladinos da memória do passado e do Império: E a História? Acaso de pode apagar a História? Ainda há pouco uma amiga minha – em resposta a um postal que publiquei aqui questionando a prática de dar nomes no mínimo discutíveis às ruas e praças que deveriam ser de todos, não só de alguns – me contrapunha isso mesmo, que era apesar de tudo importante guardar essa memória, mesmo a dos erros cometidos, que era essa uma maneira (também) de aprender com a História.
Mas aprender o quê? – gostaria eu de saber. Se o autarca Avelino Torres dá o seu próprio nome ao estádio local que lição há aqui a imortalizar? Se uma Câmara decide distribuir ruas, praças e estátuas pelos seus apaniguados por que razão havemos todos de aprender com eles tal lição de cidadania? Porque hei de eu confrontar-me diariamente com a homenagem prestada pela minha rua a um negreiro? A um ditador? A um embusteiro da Ciência? A alguém que cometeu crimes contra os direitos humanos? O que leva a que não tenhamos direito a escolhas mais consensuais? Não haverá gente decente que todos possamos homenagear sem reticências? Porque não dar às ruas nomes sem notáveis pelo meio? Há por aí ruas Direitas a dar com um pau. E ruas das Tílias, das Amoreiras, das Laranjeiras. Dos Sapateiros, dos Douradores. E ruas com nomes de mulheres, para variar? Ou ruas do Paraíso, da Liberdade, etc etc etc. Algures no mundo há quem imponha a passagem de 50 anos sobre a morte de uma pessoa antes de se poder dar o nome dela a um local público. Com 50 anos em cima, quem passaria o crivo da memória?
Já se percebeu onde quero eu chegar, não vale a pena chover mais no molhado. O que se pergunta é: quem são afinal os donos da História, essa que nos querem ensinar? E porque não devem tais lições ser antes ensinadas em museus e em bibliotecas, nas escolas, em vez de nos serem impostas, à nossa revelia, na grande sala sala de aulas que é, que deveria ser, o nosso espaço comum?
Dá muito trabalho e muita confusão mudar o que está mal? Pois dá. Mas vão dizer isso aos habitantes de Marco de Canaveses que mudaram o nome do estádio do Avelino. Ou aos novos países africanos que atiraram para os museus as memórias do passado colonial que renegam. Ou vão dizê-lo aos australianos que criaram uma Comissão destinada a “descolonizar” a nomenclatura topográfica e urbanística racialmente ofensiva. E que já se puseram ao trabalho! É um trabalho pesado? Pois é. E mudar o nome (colonial) de um país mais pesado é. Mas faz-se. Mais pesado ainda seria ter de suportar pelos tempos fora a memória de um passado que oprime.
Que há num simples nome? O que chamamos rosa, sob uma outra designação
teria igual perfume.
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