Há uma medida para a infâmia?
A justiça cósmica não existe. É o que me parece, pelo menos. Nunca instância nenhuma alguma vez nos pedirá contas do nosso silêncio, cumplicidade, indiferença, nem tão pouco da nossa indignação, perante tanta desumanidade, tanta crueldade, tanta infâmia a que todos os dias assistimos ou que nos chega pelas notícias. É assim, mais nada.
Mas vamos imaginar que não, que não é assim. Que de uma qualquer maneira éramos chamados a decidir. E que teríamos de traçar a linha que separa uns dos outros os crimes mais ignóbeis.
Uns em que carrascos e vítimas se confrontam, em que se vêem a cara a cara – serão para nós diferentes de outros em que o crime se comete à distância, ou sob o anonimato dos massacres indiscriminados? As vítimas que têm um nome são diferentes daquelas que só têm um número? Os 400 civis que morreram no bombardeamento do abrigo antiaéreo onde se refugiavam valerão menos no nosso juízo do que um mesmo número de mulheres e crianças violadas, mutiladas e massacradas numa aldeia noutro país? As centenas de pessoas de uma aldeia arrasada durante uma “operação de limpeza” pesarão na nossa balança tanto como os habitantes de outra aldeia executados depois de serem exibidos, cuspidos, apedrejados, mutilados? Haverá uma medida, um peso, uma conta para a infâmia?
Desde sempre assim foi, alguém dirá. Falam disso livros tão antigos como a Bíblia ou as narrativas dos portugueses no Oriente. Ou dos horrores das Grandes Guerras, do Holocausto. É verdade. Invocamos o passado, como se passado fosse. Crimes de que só resta hoje a memória, que como tudo o resto se apaga e definha em museus e em monumentos votivos.
Mas… e mais perto de nós, tão perto que muitos de nós souberam deles no momento em que ocorriam?
Katyn (1940), Babi Yar (1941), Deir Yassin (1948), My Lai (1968), Wiriamu (1972), Al Amiriya (1991), Ruanda (1994), Kibutz Nir Oz (2023).Sabem o que me disse o Jean Némar, com quem discutia estas coisas? Que sim, que era verdade que nunca seríamos o juiz de tamanhos crimes, que nunca teríamos de pesar, medir ou contar tais responsabilidades. Nem tão pouco seríamos sequer advogados chamados a invocar agravos ou atenuantes em julgamento nenhum. Ao que não poderíamos escapar era ao papel de testemunhas. Éramos, somos, todos testemunhas. E aí estava a diferença. Crimes como o massacre, o genocídio, dos tutsis no Ruanda foram cometidos perante o silêncio mais ou menos generalizado da comunidade “civilizada”, quer dizer, informada. Alguns outros foram denunciados, condenados, por testemunhas que se manifestaram, que se movimentaram, que pressionaram quem podia pôr-lhes termo. Está aí a diferença.
É verdade, mas ainda assim…