O que é que Bissau não devorou?

Prefácio do livro A cidade que tudo devorou, de Amadu Dafé 

Já vamos procurar uma resposta a esta questão. Por agora, olhemos para a cidade que tudo devorou. Uma cidade cuja dinâmica resume a situação em que se encontra o resto da Guiné-Bissau, tal como é apresentada ao longo da história: de hospitais onde a cura é sinónima de morte; escolas representadas por edifícios em que o funcionamento das aulas disputam terreno com constantes greves dos professores; estradas com buracos que concorrem entre si para acolher o país a fundar na miséria, corrupção, assassinatos, tráfico de drogas ou tabaco de irã de todas as espécies, machismo embrenhado no patriarcado que suplanta as mulheres na posição de subalternas, delinquência forjada pela ausência de um Estado que velasse pela dignidade da população, impunidade… enfim, uma longa lista que a narrativa em apreciação nos dá a conhecer, numa escrita madura e refinada, à altura de um autor que já vai na sua quarta publicação em ficção.

O país e as suas peripécias sempre estiveram representados nas obras do Amadu Dafé, mas a particularidade que introduz nestas palavras reside, entre outras diferenças, na complexidade do enredo que a caracteriza. Antes de atingirmos o clímax, a narração é capaz de baralhar o nosso pensamento sobre a sua coerência e a disposição dos seus elementos. Quem conta as histórias que fazem a história de A cidade que tudo devorou? Quem são os protagonistas? Afinal onde se movimentam as personagens? O que é factual e o que é ficção naquilo que é contado? Quantas histórias ouvimos a contar? Questões que só conseguimos responder, se acompanharmos o desenrolar dos acontecimentos com atenção e sem saltar uma linha, ao mesmo tampo em que, repitamos, sejam estes acontecimentos apresentados numa narração complexa (mas não complicada), à imagem da complexidade que é falar de uma cidade que devora tanto quanto é devorada ela mesma em todos os seus traços.

Bissau, fotografia de Marta Lança 2022Bissau, fotografia de Marta Lança 2022

Miratejo e Bissau são dois lugares em dialética, como diriam os filósofos, tal como Portugal e Guiné-Bissau aparecem ao longo da história. O primeiro espaço assegura acontecimentos que discutem as crenças na ciência e no conhecimento científico; no catolicismo em disputa com espiritualidades orientais e projecção de um mundo que se arroga em ser o berço da civilização e de todas as grandezas distintivas da humanidade. A segunda geografia é de crenças que misturam religiões de livros considerados pelos fiéis de sagrados com as de matriz africana. Um mundo em que um filósofo pode abandonar a carreira e ser balobeiro, porque assim o querem os espíritos do seu djorson. Mais do que compartimento do globo em ocidentalismo em concorrência de imposição com o africanismo e orientalismo, o convite que nos é feito é de reflexão sobre a pluralidade e coexistência de culturas, mitos e rituais que fazem o universo a agasalhar-nos nas nossas diferenças.

Sónya, que ao fim da história e já em Bissau aceita o nome de N ́sunha, falecida namorada de Sprança, é a escritora que conta as suas aventuras sobre o seu ofício, particularmente da obra que a leva a Bissau para uma missão de salvar um país e um povo entregues ao abismo de lutas pelo poder que assassinam um Presidente da República, um deputado, um General, um Almirante e todas as outras almas mandadas para o além pela desgraça à mistura, chamada cocaína – ou tabaco de irã – como é discretamente conhecida para a normalização do seu negócio. “Onde há drogas, há mortes”. A máxima parece encontrar comprovação em Bissau representada na história. E a história por ela contada é a mesma em que Sprança aparece como narrador, ou seja, A Cidade que Tudo Devorou conta duas histórias em duas narrações alternadas entre as falas de N ́sunha (ex-Sónya) e Sprança, sendo a última uma voz criada pela primeira para relatar as consequências que um livro da sua autoria teria sobre a política e a sociedade guineenses. Estará o autor a prever o impacto do seu estimulante universo de criação literária sobre os seus conterrâneos?

(Quartel de Mansôa), Marinha, QG, Hotel Malaika, Tchon di Pepel, Bande, Caracol, Ministério do Interior, entre outros, são lugares-comuns no dia-a-dia de Bissau. Lugares que na história encenam guerras, negócios ilícitos, delinquência (incluindo a dos que tutelam as instituições do Estado) e impunidade numa cidade com todas as esquinas a cheirar de cocaína, tabaco de irã, não fosse nela que conhecemos nomes como Tabaco, Almirante, Kansera ́Só, ou Lante Ndan Kdutar. É na mesma cidade que a narrativa ganha unidade, porque Sónya (N ́sunha) viaja para Bissau e encontra Sprança que a recebe num táxi, transporte para os dias de tragédia que se iam seguir naquela aventura de salvação da pátria do pai da “rapariga portuguesa” de raízes guineenses.

Bissau, fotografia de Marta Lança 2022Bissau, fotografia de Marta Lança 2022

O realismo, o existencialismo e a ideia do transcendental em que a história é apresentada misturam-se com uma convidativa intertextualidade com algumas das mais emblemáticas obras de criação literária guineense (e não só), para além de picantes recursos a belas melodias da música guineense e africana, como forma de reforçar o sentido a um ou outro episódio em narração. Tudo acontece como se estivéssemos, nós mesmos, leitores e leitoras, a movimentarmo-nos e a tomar parta no enredo, porque a estória é feita das nossas almas, nossas crenças, nosso dia-a-dia, na Guiné-Bissau e nas nossas diásporas.

Bissau, fotografia de Marta Lança 2022

A cidade que tudo devorou é trágica como as tragédias que fazem a nossa história. Nem as “cedeaos”, nem as embaixadas que ainda se mantêm em Bissau, tão pouco as nossas guerras e lutas em que nos vemos metidos sem que muitas vezes tenhamos noção sobre elas parecem ter alguma solução para o nosso infortúnio. “Quem nos irá salvar?”, pergunta-se no final da história”. “A esperança é última a morrer”, diz o ditado. E é justamente por essa imortalidade da esperança que ela aparece na história como sentimento e como personagem que as balas devorantes de Bissau não conseguem aniquilar. Mas o Dafé incita-nos ao caminho de esperançar, tal como diria Paulo Freire. Um caminho de acção para nos libertarmos dos males que nos impedem de marchar enquanto povo para o progresso há tanto tempo almejado. Talvez por isso, põe um exército de galinhas na narrativa a enfrentar o poder de crueldade dos homens e projecta a resistência de mulheres bideiras contra a delinquência homicida de Os Comés. É como se nos estivesse a convidar, enquanto povo, a inspirarmo-nos nestes simples exemplos de heroicidade para a nossa salvação colectiva.

É com Sprança enamorado por N ́sunha que cada um/a de nós, guineenses e amigos/as do país, somos incitados pela história aqui contada a abraçar outras lutas sem sangue nem ódio, todas as formas de ódio, e ressuscitar “os sonhos de Cabral” por um país que não mate por drogas, por corrupção, por miséria, por doenças que hospitais não curam, nem por ignorância porque há escolas sem aulas.

A CIDADE QUE TUDO DEVOROU, de AMADU DAFÉ

Coordenação Editorial: Luís Vicente

Prefácio: Sumaila Jaló

Revisão: Luís Vicente | Amadu Dafé | Sofia Brito

Conceção gráfica: Nimbedições | Jorge Mateus, Nimbedições

AMADÚ DAFÉ

Natural de Ingoré, norte da Guiné-Bissau.

Membro da AEGUI – Associação de Escritores da Guiné-Bissau e do Centro PEN da Guiné-Bissau.

Encontra-se atualmente a desempenhar funções como Técnico Superior na Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) – Entidade Responsável pela Gestão do Serviço Nacional de Saúde em Portugal.

por Sumaila Jaló
Cidade | 27 Setembro 2022 | Amadu Dafé, Bissau, cidade, Guiné Bissau, Literatura